Hiperatividade não é só uma coisa de criança. Duas histórias de mulheres diagnosticadas na idade adulta (e outros mitos sobre a PHDA) - TVI

Hiperatividade não é só uma coisa de criança. Duas histórias de mulheres diagnosticadas na idade adulta (e outros mitos sobre a PHDA)

Hiperatividade

A hiperatividade e défice de atenção está, na maioria das vezes, associada a problemas comportamentais das crianças nas escolas. E esse é o principal, mas não é o único mito: a hiperatividade está longe de ser apenas um problema da infância, não é uma condição exclusiva do sexo masculino e não é sinal de preguiça, má educação ou falta de brio

Marisa Liz é conhecida pela voz, mas também pela energia com que pisa o palco. E sempre sentiu uma inquietação que não conseguia explicar. Até há poucos anos. A cantora foi diagnosticada com hiperatividade e défice de atenção aos 34 anos. E o diagnóstico, que não foi surpresa para quem a rodeia, “veio explicar muita coisa”.

“Fui fazer uma data de exames e o médico disse-me que eu era hiperativa. Saí de lá e liguei aos meus amigos e à minha família a dizer ‘Vocês não vão acreditar, mas eu sou hiperativa’, ninguém estranhou. Era óbvio para toda a gente”, conta Marisa Liz, em conversa com a CNN Portugal.

“Sempre fui uma miúda com muita energia. Estava sempre a mexer os dedos, não estava quieta com a caneta, sentia cerebralmente uma velocidade de pensamento e de dificuldade em focar-me. Era visível em várias coisas, na minha distração constante. Aprendi a lidar com isso…”, recorda.

Marisa agora até brinca com as situações que viveu ao longo da vida. Mas, num breve regresso ao passado, reconhece que a perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA) lhe mexeu “com vários pontos”. Até com a noção de tempo, que, assegura, “não é a mesma da maior parte das pessoas”: “A perceção que eu tenho do tempo é sempre mais acelerada”.

Marisa Liz foi diagnosticada com PHDA aos 34 anos. 

“É uma conversa que me traz bastante culpa. Achas que isto é comportamental e que podes alterar esse comportamento. Eu sempre fui uma aluna mediana, com grande esforço para me concentrar e focar-me no que me estavam a dizer. Das coisas que mais me diziam era ‘Marisa concentra-te!’. A professora estava a falar e eu começava a pensar porque é que os tijolos são laranja e não são de outra cor”, recorda.

“Nunca consegui estudar”  

Mafalda Zuzarte Reis tem 39 anos e só foi diagnosticada no final do ano passado. Ainda nem começou o tratamento e já sente “um alívio enorme”: “Tenho uma resposta. Está a ajudar-me tanto. Sinto-me tão equilibrada que me sinto feliz”.

Para trás, ficaram sucessivas depressões, pensamentos suicidas, ataques de pânico, dificuldades sociais que não conseguia explicar e que só a afundavam mais.

“Sempre me senti diferente. Das minhas irmãs, dos meus amigos. Nunca consegui estudar, não consigo ler livros. A psiquiatra achava que eu tinha um transtorno bipolar. Andámos algum tempo a experimentar alguns fármacos, fiz terapia intensiva duas vezes por semana. Veio a pandemia e foi o meu turning point. Tive o meu primeiro ataque de pânico. Depois começaram a ser ataques de pânico todas as semanas. Achava que estava a morrer com um ataque cardíaco e ninguém me estava a tratar. De todas as vezes que ia às urgências, davam-me medicação, mas nunca chamaram um psiquiatra para falar comigo. Ia ao hospital e vinha sem respostas”, relata Mafalda.

A profissional de marketing sempre procurou respostas. Um dia, estava a ver um programa de televisão do humorista brasileiro Maurício Meireles. O convidado era Bruno Lima, também diagnosticado com PHDA. “Olhei para o meu marido e disse ‘esta pessoa sou eu!’”

Casamento em risco

Mafalda reconhece mesmo que este seu segundo casamento chegou a estar em risco. “Estávamos quase para nos separar. Eu tinha pensamentos obsessivos sobre ele ter outras mulheres e eu fabricava provas dentro da minha cabeça. Agora consigo conversar com ele, tomar um café descansada com ele, confiar nele”, conta.

“Há um dia que quero ser florista e vou pesquisar tudo sobre floricultura. É cansativo também para o meu marido, porque tenho sempre mil ideias e não levo nenhuma avante”, admite.

Mas não foi a única área da vida de Mafalda afetada pela perturbação. “No trabalho, às vezes, não conseguia abrir o email durante o dia inteiro. Tal era o meu estado depressivo. O meu trabalho envolve muita análise, muita rotina e eu não me consigo focar. Um trabalho que devia ser feito num dia ou numa semana eu fazia numa hora, no final do prazo, em grande sofrimento. Tenho alguma dificuldade social, alguma dificuldade em estar bem com todos. Era uma pessoa que tinha alguns conflitos, não com pessoas da minha equipa, mas com outras pessoas. Como tinha um feitio muito específico, acabou por potenciar alguns despedimentos”, resume.

“Agora percebo que não é personalidade, é inadaptabilidade”, explica.

O discurso de Mafalda vai do passado ao futuro em segundos. Admite que a sua cabeça “está sempre a pensar em mil pensamentos diferentes”. Não consegue dormir e reconhece que o seu humor é “muito instável”. “Só quero ir tomar um café e estar numa esplanada a aproveitar o momento. Nunca fui capaz de aproveitar a vida.”

“Tenho receio da medicação”

Marisa Liz não precisou de tomar medicação. Fez terapia e criou ferramentas para a “ajudarem a lidar com o dia-a-dia”. “Ponho uma data de alarmes. Aprendi a aceitar uma data de coisas. Dou o meu melhor em relação aos atrasos, por exemplo”, exemplifica.

Mafalda já tem na mão os comprimidos que a ajudarão a focar-se e a concentrar-se. Mas antes é necessário tratar as comorbilidades. “As pessoas que têm défice de atenção e hiperatividade têm quase sempre depressão, porque não dormem, têm a cabeça sempre a mil. Eu tomo medicação para a perturbação mista de depressão e ansiedade. Como tinha pensamentos obsessivos, decorrentes da depressão, até de fazer mal a mim própria, e a medicação para a hiperatividade é suposto ajudar-me a focar, tenho de tratar primeiro esses pensamentos, para não me focar nas coisas erradas”, revela.

Mafalda Zuzarte Reis foi diagnosticada há poucos meses. 

“Tenho um bocado de receio desta medicação. Já consegui entender os benefícios, mas tenho algum receio”, confessa.

A psiquiatra Ana Araújo aconselha um tratamento biopsicossocial em pacientes diagnosticados com PHDA. Tratamentos que envolvam medicação (“psicoestimulantes, que atuam no cérebro de modo a compensar a desregulação ao nível dos neurotransmissores”), terapia cognitivocomportamental, para ajudar a “lidar com pensamentos associados à PHDA ou pensamentos depressivos” e coaching e orientação vocacional, para ajudar a trabalhar os comportamentos sociais e a “encontrar um emprego e um ambiente que seja favorável às suas características”. A especialista alerta, contudo, que é fundamental confirmar se os profissionais estão certificados para desenvolverem o seu trabalho.

Como o palco ajuda Marisa

Marisa Liz reconhece que também a música é uma aliada para a ajudar a encarar a perturbação de PHDA. “Tenho hiperfoco em coisas que me ajudam. Em cima do palco, não tenho de estar a agir de forma normal. Em palco, há uma liberdade de movimentos, onde todas as vontades físicas de expressão e emocionais podem ser executadas de uma forma plena. Por isso é que sou tão feliz a cantar. Quando me colocam dois bancos e me mandam cantar sentada começo logo a passar mal”, confessa.

Mafalda está agora a aprender a lidar com o diagnóstico da doença que sempre a angustiou e lhe trouxe incompreensão dos outros. “Em criança, a minha família ir a um psicólogo ou a um psiquiatra? Isso não existia! Levava era dois pares de estalos e mandavam-me ir estudar. Ainda hoje, algumas pessoas olham de lado…”, lamenta.

Tanto Marisa como Mafalda aconselham todos os que “não se sentem bem” a procurar ajuda. “A saúde mental é a razão de nós estarmos como estamos no mundo”, lembra Marisa Liz.

“Em miúdos eram hiperativos, em adultos são depressivos, ansiosos e depois matam-se”, alerta Mafalda, que está consciente da componente hereditária da PHDA e já reconhece num dos filhos alguns sinais: “É o melhor da turma, mas não lhe peçam para estudar por um livro, que ele chora de dor”.

Os cinco mitos da PHDA

Os maiores inimigos do tratamento da PHDA são os mitos que lhe estão associados. A psiquiatra Ana Araújo destaca cinco mitos que podem dificultar diagnósticos e a procura de ajuda:

1 - A PHDA é uma doença da infância.

Atualmente sabe-se que algumas crianças com PHDA mantêm os sintomas ao longo da vida e, ainda, que existem casos em que a perturbação surge, pela primeira vez, no final da adolescência ou início da idade adulta.

2- A PHDA afeta apenas pessoas do sexo masculino.

Apesar da prevalência parecer ser superior no sexo masculino, a PHDA também afeta mulheres. É provável, ainda, que a PHDA seja subdiagnosticada no sexo feminino. Habitualmente, as mulheres com PHDA apresentam menos manifestações “visíveis”, como hiperatividade e impulsividade, e mais sintomas chamados internalizantes, como falta de foco e dificuldades na organização.

3 - Não tem PHDA porque quando está a fazer o que gosta até se esquece das refeições.

Mais do que um défice de atenção, a PHDA tem subjacente uma desregulação da atenção e motivação. Isto significa que pessoas com PHDA têm tendência a adiar sucessivamente tarefas consideradas monótonas, mesmo que sejam fáceis e rápidas de conctretizar. Por outro lado, em atividades desafiantes ou altamente motivadoras, podem atingir os chamados estados de hiperfoco.

4 - Não faz bem porque é preguiçoso ou não tem brio. É incompetente.

As pessoas com PHDA têm dificuldade em realizar as tarefas de uma forma sequencial. Isto é, quando iniciam uma tarefa (ex.: limpar o pó da sala) já estão a pensar nas seguintes (ex.: arrumar ou aspirar). Esta tendência para pensar em várias coisas ao mesmo tempo leva a que saltem entre tarefas, que ficam sucessivamente inacabadas ou mal acabadas. Também é frequente esquecerem-se de pormenores importantes (ex. redigiu um documento e esqueceu-se de assinar ou colocar a data). Estas características, associadas à pressão social, podem gerar sentimentos de falhanço ou autodepreciação, nas pessoas com PHDA. Contudo, não significa que não sejam capazes de atingir os objetivos pessoais e profissionais esperados, mas sim que podem necessitar de utilizar estratégias alternativas.

5 - Pensa que sabe tudo. Não deixa os outros falar.

Ter dificuldade em esperar pela sua vez numa conversa ou mesmo interromper os outros antes de terminarem a pergunta podem ser sintomas de PHDA. Não significa que estas pessoas desrespeitem a opinião dos outros ou se achem mais sabedores, mas sim que têm uma maior dificuldade em controlar os seus impulsos.

Diferença entre PHDA e simples distração

A psiquiatra Ana Araújo sublinha ainda que “na idade adulta, há uma diminuição das manifestações de hiperatividade e um predomínio de desatenção”. Por isso, tende a desvalorizar-se os sinais. A especialista ajuda, assim, a traçar uma linha que ajuda a separar PHDA da simples distração ou desatenção.

“Na PHDA, a desatenção e/ou hiperatividade e impulsividade manifestam-se em todos as dimensões da vida (vida familiar, social e laboral), são persistentes (i.e., não acontece apenas num dia ou numa semana) e habitualmente tem consequências negativas para o próprio (por exemplo, perder uma oportunidade de emprego porque trocou o dia da entrevista; errar uma pergunta no exame porque não leu bem o enunciado; dar uma resposta precipitada porque não deixa as outras pessoas terminares as frase; ter acidentes por ficar impaciente no trânsito)”, explica.

Ana Araújo lembra ainda que a perturbação pode trazer angústia acrescida ao paciente: “Em situações em que é socialmente inaceitável sair do lugar ou movimentar-se (ex., numa reunião, no cinema), adultos com PHDA tendem a ficar tensos, ansiosos, irritáveis ou impacientes, e esses estados podem não ser visíveis para os outros ou entendidos de maneira diferente”.

Assim, sublinha, é fundamental sensibilizar a população para os desafios associados à PHDA, sempre sem optar pela desresponsabilização. “Pelo contrário, a responsabilização contribui para o desenvolvimento socio-pessoal e bem-estar global de qualquer indivíduo. A par da responsabilização, a tolerância e o pensamento inclusivo, por parte da sociedade, permitem criar as condições onde pessoas com PHDA possam prosperar”, apela.

A especialista alerta ainda para a importância de se estar atento a momentos de transição na vida dos pacientes, como a mudança de casa, de emprego ou a maternidade ou paternidade, em que, os desafios de adaptação são maiores e os sintomas podem estar mais presentes e ter mais impacto.

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