Tem sido uma das vitórias mais apregoadas pelo Governo de António Costa. Apesar da inflação, da escalada dos juros, do emagrecimento dos salários reais e dos efeitos da guerra em curso no leste da Europa, o mercado de trabalho tem revelado resiliência, com o emprego a crescer e o desemprego próximo dos valores mais baixos registados desde o início do século. Tanto que, ainda que esteja previsto que a economia desacelere no próximo ano e que os empregadores enfrentem vários desafios, o Executivo está a contar com uma taxa de desemprego idêntica à projetada para este ano: 6,7%.
Os economistas ouvidos pelo ECO alertam, contudo, que há “sinais preocupantes” aos quais é preciso ter atenção. A subida das taxas de juro, por exemplo, poderá reduzir o consumo, pressionando o emprego no setor do comércio. E a guerra entre Israel e o Hamas, que se vem somar ao conflito ucraniano, traz um novo grau de incerteza ao cenário internacional, com consequências “ainda imprevisíveis”.
No Programa de Estabilidade apresentado na primavera, o Governo indicava que no próximo ano a taxa de desemprego cairia 0,3 pontos percentuais, para 6,4%. Já na proposta do Orçamento do Estado para 2024, entregue este mês no Parlamento, a previsão foi atualizada para 6,7% (ver tabela abaixo).
Houve, assim, uma revisão em alta da projeção do desemprego, mas, mesmo considerando esta alteração, o Executivo está a contar com um mercado de trabalho estável face aos 6,7% esperados para este ano.
Em contraste, Pedro Martins, professor catedrático de Economia da Universidade Nova de Lisboa e ex-secretário de Estado do Emprego, alerta: “Infelizmente, o aumento das taxas de juro pode levar ao aumento da taxa de desemprego.”
De que modo? Por exemplo, numa altura em que têm visto os juros do crédito à habitação dispararem, as famílias podem reduzir o consumo, provocando “alguma retração da atividade económica e o aumento do desemprego”, explica ao ECO o especialista.
Aliás, Frederico Cantante, investigador no CoLabor, identifica como um dos sinais que devem gerar preocupação no mercado de trabalho o decréscimo do emprego no setor do comércio nos últimos trimestres. “Isso pode ser explicado pela inflação e pela deterioração do poder de compra das famílias“, sublinha. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), no segundo trimestre do ano, a população empregada caiu 0,2% no setor dos serviços, em termos homólogos.
Em linha com Pedro Martins, este investigador realça o papel potencial dos juros nesta evolução, salientando que se vive hoje “um momento de esquizofrenia institucional, em que se veem orientações de política pública e orientações de política monetária que vão em sentido contrário entre si”.
“O Banco Central Europeu (BCE) tem vindo a aumentar as taxas de juro de referência, com o intuito de induzir processos recessivos nas várias economias europeias. Por outro lado, temos o Governo a tentar mitigar os efeitos desta política monetária. Parece haver uma grande desarticulação“, observa. “É uma esquizofrenia pouco produtiva“, insiste.
Frederico Cantante nota ainda que lhe parece “muito claro” que a previsão do Governo para o desemprego tem como âncora a ideia de que o reforço do rendimento das famílias — pela via fiscal, mas também por via das transferências sociais e do aumento dos salários previsto no acordo de rendimentos — poderá contrabalançar, precisamente, esse impacto negativo do aumento das taxas de juro, mas também os efeitos da guerra na Ucrânia e do conflito que se incendiou nas últimas semanas em Gaza.
“O Governo não teve como pressuposto que se iria instalar um conflito, com consequências imprevisíveis, naquela área do globo. Ainda não sabemos que consequências políticas e sociais. Ainda existe um cenário de grande incerteza“, declara o investigador, quando questionado sobre o eventual impacto da guerra entre Israel e o Hamas na previsão do emprego português.
Já Paulo Marques, professor do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE) e coordenador do Observatório do Emprego Jovem, atira que “a maioria dos economistas esperava que o desemprego já tivesse aumentado”, por força da política monetária que tem sido levada a cabo pelo ECO. “Mas, por agora, tal não sucedeu”, assinala. “Em grande medida, penso que isso se deveu ao sucesso da economia portuguesa em setores muito intensivos em trabalho (por exemplo, os ligados ao turismo) e ao facto de se ter vindo a verificar uma variação positiva do PIB“, esclarece.
Mas no próximo ano, importa salientar, ainda que o PIB deva continuar em “terreno positivo”, deverá crescer somente 1,5%, de acordo com a previsão do Governo que consta da proposta de Orçamento do Estado para 2023. É o equivalente a um abrandamento de 0,7 pontos percentuais. Tanto o Banco de Portugal (BdP), como o Fundo Monetário Internacional (FMI) estão a apontar para um abrandamento semelhante.
Indústria também preocupa economistas
Outro “sinal preocupante” para Frederico Cantante é o decréscimo do emprego na indústria. Tanto que o Governo criou um novo programa de apoio à formação, destinado a segurar o emprego nestas atividades. “Já reflete a deterioração dos indicadores europeus“, sublinha o investigador, explicando que este setor, tendo uma forte vocação exportadora, está mais exposto ao que acontece lá fora.
Do lado do desemprego, Frederico Cantante destaca ainda que o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) tem verificado agravamentos há dois meses.
“Pode refletir uma inversão da tendência, da estabilização para o aumento”, antecipa o especialista, reconhecendo que, para já, o desemprego está em valores “historicamente baixos”. Mas a evolução “vai depender muito do contexto internacional, que é bastante volátil“, atira.
Por sua vez, Pedro Martins considera que o aumento do desemprego e a redução do emprego “seriam desenvolvimentos negativos na sociedade e economia portuguesas”, importando analisar, “cada vez mais”, não só a evolução do emprego total, também também do emprego dos portugueses em Portugal. É que o grande crescimento da imigração nos últimos anos “pode explicar grande parte do crescimento do emprego total no país“, frisa.
Já Paulo Marques alerta que é preciso estar atento ao desemprego jovem. “É a principal preocupação”, assevera. Isto porque, no final do segundo trimestre de 2023, enquanto o desemprego global ficou pouco acima dos 6%, o indicador relativo aos indivíduos com idades entre os 15 e os 24% ultrapassou os 17%. “O desemprego jovem é 2,8 vezes superior ao dos adultos, o que é bastante alto. Esse é um domínio que deve ser tido em consideração“, defende o economista.
De forma global, entre as várias instituições internacionais, só a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) é mais pessimista que o Governo quanto ao desemprego do próximo ano. Antecipa um aumento para 7,5%. Já o Fundo Monetário Internacional (6,5%), a Comissão Europeia (6,3%) e o Conselho das Finanças Pública (6,3%) são mais otimistas do que o Executivo. Estas previstas, convém ressalvar, podem não ter em conta as tensões vividas no Médio Oriente.