Foram a vanguarda da batalha mais violenta deste século. Durante 224 dias, os "músicos da orquestra", como são conhecidos na Rússia, tentaram de tudo para conquistar a pequena cidade de Bakhmut, na região do Donbass. As perdas foram “assombrosas”, milhares de vidas perdidas, com as tropas ucranianas a fazerem com que os mercenários pagassem caro cada avanço. Agora, menos de dois dias depois de anunciar a sua conquista, Yevgeny Prigozhin, líder do infame grupo Wagner, anuncia que vai dar ordem para os seus homens se retirarem da cidade no início de junho. Os especialistas consideram que as intrigas políticas, negócios em África e a incapacidade de defender o território ocupado podem levar os mercenários do Kremlin a desaparecer da guerra na Ucrânia.
“O grupo Wagner não parece ter potencial necessário para aguentar o terreno que conquistou. É preciso soldados para defender o território conquistado. Prigozhin quer sair de Bakhmut como o grande vencedor que conquistou a cidade, e não como o homem que não a soube manter. Ele está mortinho por sair de lá”, explica o major-general Isidro de Morais Pereira.
Yevgeny Prigozhin e os seus mercenários chegaram à periferia de Bakhmut no final de agosto. Tinham sido chamados pelo então líder da “operação militar especial”, o general Serguei Surovikin, que planeava direccionar para a cidade o principal golpe para tentar conquistar a região do Donbass, um dos principais objetivos militares de Vladimir Putin. O grupo comandava entre 45 a 55 mil soldados, compostos por um misto de veteranos, voluntários e muitos prisioneiros, alistados após uma controversa campanha de recrutamento em várias prisões russas, onde lhes foi prometido o alívio das sentenças em troca de seis meses de serviço militar.
Na frente de batalha, eram precisamente estes os homens colocados na linha da frente. “Continua a avançar até morrer”, recorda um dos reclusos capturados pelas forças ucranianas, nos arredores de Bakhmut, quando questionado sobre as ordens dadas pelos seus superiores. O resultado desta estratégia foi o envio de sucessivas “ondas humanas” contra as defesas ucranianas, algumas delas pre-posicionadas há mais de oito anos, depois de a cidade ter sido atacada por grupos armados apoiados por Moscovo, em 2014. Segundo o Conselho Nacional de Segurança norte-americano, estas táticas resultaram num número de baixas “assombroso”, que pode chegar aos 20 mil mortos e 80 mil feridos, apenas do lado russo.
“No auge do combate, em fevereiro e março, os homens de Prigozhin chegaram a ter cerca de 100 a 120 por dia. As perdas foram terríveis e acredita-se que agora o número de homens ao seu dispor não deve ultrapassar os 15 mil homens”, refere o major-general, que insiste que um número tão elevado de baixas fazem com que as unidades militares do Wagner sejam ineficazes do ponto de vista militar. Por isso, o futuro deste grupo paramilitar com ligações ao Kremlin deve passar por um período de reorganização, que deverá durar cerca de seis meses. “Prigozhin vai reagrupar. Ele deverá retirar-se para uma aérea mais segura para reunir os seus militares, dar-lhes descanso, recrutar novos militares e refazer o seu pequeno exército. Esse deverá ser o seu principal objetivo”, conclui Isidro de Morais Pereira.
A piorar a situação, o Kremlin fechou a porta de Prigozhin à sua principal fonte de mão-de-obra: o sistema prisional russo. Outrora uma fonte quase inesgotável de soldados com que atirar contra as linhas de defesa ucranianas, o grupo Wagner vê-se obrigado a fazer uma gestão mais cautelosa dos seus ativos. "Para o major-general Isidro de Morais Pereira, os 15 mil homens que o grupo Wagner dispõe podem não ser sequer suficientes para manter os ganhos na cidade, particularmente enquanto as tropas ucranianas continuam a avançar nos flancos da cidade, podendo mesmo acabar por cercar os homens que defendem o seu interior.
Na última semana, a Ucrânia lançou com sucesso uma série de contra-ataques contra as posições russas ocupadas nos arredores da cidade, a Norte e a Sul, que começam a ameaçar os soldados russos que se encontram no interior das ruínas desta cidade. Para o major-general, este pode ser o verdadeiro motivo pelo qual Prigozhin terá de recuar.
“Bakhmut está praticamente tomada pelas forças do grupo Wagner, mas os mercenários não têm potencial para aguentar o terreno que conquistaram. As perdas dos combates foram tremendas e o grupo ficou reduzido a uma pequena fração daquilo que era no início dos combates”, insiste o especialista militar.
Ambições maiores que a Ucrânia
O empresário russo anunciou o plano de criar posições defensivas no interior da cidade e de, entre o dia 25 de maio e 1 de junho, transferir a defesa dessas posições para o exército russo. Mas estas operações não são fáceis de executar e podem criar sérios riscos para as tropas regulares das Forças Armadas russas, aumentando as tensões numa relação muito difícil entre o líder dos mercenários e as mais altas patentes militares do Kremlin. No auge dos combates por Bakhmut, Prigozhin criticou diretamente o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, e o líder das forças armadas russas, Valery Gerasimov, acusando-os de ser responsáveis pela morte dos seus homens ao não enviarem as munições de artilharia necessárias e chegou mesmo a ameaçar retirar-se da frente de combate. Para os especialistas, este tipo de declarações só são possíveis com a conivência do presidente russo, Vladimir Putin, que poderá ver alguns benefícios em “dividir para reinar”.
“Este tipo de situações protagonizadas por Prigozhin são impensáveis na Rússia atual, onde se prendem cidadãos por dizer que decorre uma guerra. Acredito que estas declarações são incentivadas pelo presidente russo. Ele não poderia repetir essas afirmações se não tivesse ordens claras para o fazer”, afirma o historiador António José Telo.
De acordo com o Institute for the Study of War (ISW), uma organização que estuda assuntos ligados à Defesa, o líder do grupo Wagner está a utilizar esta guerra para se tornar numa figura política proeminente na Ucrânia. A verdade é que esta campanha em Bakhmut valeu a Prigozhin o estatuto de herói na Rússia e essa popularidade pode transformar-se em poder político. Aos olhos das alas mais ultranacionalistas russas, o Grupo Wagner mostrou-se mais competente em conquistar território à Ucrânia do que o exército regular russo e, por isso, Prigozhin começa a ser cada vez mais uma “alternativa credível ao poder”.
Além disso, o empresário russo conta com o controlo de uma vasta rede de bloggers militares com milhões de seguidores no Telegram, que propagam e ampliam as conquistas dos mercenários e do seu líder. Esta combinação, torna-o bastante incómodo para a chefia militar russa, particularmente para o ministro da Defesa, Serguei Shoigu.
“Prigozhin encarna um tipo de herói que agrada à população russa. É patriota, desafia a autoridade instalada, mas sem deixar de ser um russo que cumpre os seus deveres patrióticos. Ele também controla uma parte significativa dos bloggers militares e essa proeminência faz com que a sua imprensa seja uma boa imprensa. Tudo isto faz com que possa ser um incómodo do ponto de vista político”, afirma Diana Soller, professora e investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade NOVA de Lisboa.
Regresso a "oportunidades mais lucrativas"
Na sua essência, Yevgeny Prigozhin é um empresário e o grupo Wagner é uma ferramenta para fazer dinheiro. Isidro de Morais Pereira reforça que, apesar das perdas humanas, o líder dos mercenários é agora um homem "cada vez mais rico". Mas, ao mesmo tempo, enfraqueceu o dispositivo mercenário em alguns países onde tinha operações montadas. O perigo que este apresenta para as chefias militares russas pode fazer com que Prigozhin se veja obrigado a focar os seus esforços noutros locais, onde já fez muito dinheiro. Os especialistas apontam que o futuro do grupo de mercenários pode voltar a passar por um foco em regiões como a República Centro Africana, Líbia, Sudão, Síria ou o Mali, onde “a orquestra” tem uma parte muito significativa das suas operações.
Antes do conflito na Ucrânia, o grupo foi utilizado pelo Kremlin para fortalecer as relações russas com regimes autoritários em muitos países africanos a troco de concessões de explorações de recursos naturais, como minas de ouro, diamantes, entre outros. E o futuro do “chefe de Putin”, alcunha que ganhou quando montou um lucrativo negócio de catering com o Kremlin, pode mesmo ficar restrito a esses países até conseguir recuperar da longa batalha de Bakhmut.
“Podemos vê-lo desaparecer por razões políticas ou por razões financeiras, para se dedicar a países que lhe possam trazer o lucro que ele procura”, frisa Diana Soller.