Nota do editor: Peter Bergen é analista de segurança nacional da CNN, vice-presidente da New America, professor na Universidade do Estado do Arizona e apresentador do podcast "In the Room With Peter Bergen". As opiniões expressas neste comentário são da sua inteira responsabilidade.
Vai ser longo, sangrento e complicado. Foi assim que dois grandes especialistas em guerra urbana descreveram a perspetiva de um ataque terrestre de Israel à base do Hamas nas ruas e túneis de Gaza.
O Coronel (aposentado) Liam Collins e o Major (aposentado) John Spencer, dos EUA, são co-autores do livro "Understanding Urban Warfare" [à letra, "Compreender a Guerra Urbana"].
Collins é o diretor executivo do Madison Policy Forum, membro sénior da New America e oficial das Forças Especiais do Exército dos EUA. Serviu durante 27 anos, tendo sido destacado várias vezes para o Afeganistão e o Iraque. Spencer é diretor de estudos de guerra urbana no Instituto de Guerra Moderna da Academia Militar dos EUA em West Point. Serviu 25 anos como soldado de infantaria, incluindo duas missões de combate no Iraque.
Os dois especialistas fizeram uma avaliação séria das capacidades de Israel, dizendo que não acreditam que as forças armadas israelitas estejam preparadas para o combate urbano em grande escala que provavelmente encontrarão em Gaza. Este tipo de operação pode demorar muitos meses porque um exército avançado como as Forças de Defesa de Israel (FDI) perde muitas das suas vantagens quando combate numa cidade.
Os especialistas afirmam que Israel mantém algumas vantagens, como os bulldozers blindados especialmente desenvolvidos que podem ser utilizados em combates urbanos e a capacidade de lutar à noite, mas isso deve ser ponderado em relação à sua falta de experiência e treino em combate urbano. Simultaneamente, o Hamas tem mais de 200 reféns, escudos humanos, bombistas suicidas, túneis, armadilhas, muitos civis que permanecem encurralados e teve anos para se entrincheirar.
Se a invasão israelita for para a frente, eles calculam que as FDI destruirão "80 a 90" por cento das áreas urbanas de Gaza e que a operação "mudará a paisagem desta zona durante décadas".
PETER BERGEN: Qual é o historial das FDI neste tipo de guerra urbana?
JOHN SPENCER: Não muito.
A maior lacuna das FDI não está nas suas áreas de treino ou nos seus tanques. É um conjunto de conhecimentos sobre a forma de efetuar uma operação urbana desta dimensão o mais rápida e eficazmente possível. Para ser claro, todas as forças armadas, incluindo os Estados Unidos, não estão treinadas, equipadas ou municiadas para este tipo de batalha urbana.
LIAM COLLINS: Não creio que as suas forças armadas estejam preparadas para conduzir operações urbanas em grande escala. Quando se vai a Israel e se tenta encontrar o seu grande centro de treino urbano, como muitas outras forças armadas, eles têm alguma coisa, mas não é o que se precisa para treinar para algo como Gaza.
Israel tem sido extremamente eficaz em operações antiterrorismo em Jerusalém e noutros locais do país, mas isso não se traduz em operações militares em grande escala num ambiente urbano.
SPENCER: Há muitas incógnitas a enfrentar, tanto no que se refere às capacidades do Hamas - tudo, desde os mísseis terra-ar até ao que não sabemos que o Hamas tem em preparação para uma provável retaliação de Israel.
BERGEN: Falemos especificamente dos obstáculos que os israelitas enfrentam em Gaza: reféns, escudos humanos, bombistas suicidas, túneis, túneis transfronteiriços, dispositivos explosivos improvisados e armadilhas, e muitos civis. Também não existe aqui qualquer elemento de surpresa.
Por razões políticas, dadas as pressões internacionais, os israelitas também podem querer que esta operação em Gaza seja tão curta quanto possível. Por outro lado, por razões militares, isto pode prolongar-se durante meses, certo?
SPENCER: Eu digo que a missão em Gaza demoraria meses.
BERGEN: Que vantagens perde um exército avançado como o das FDI num espaço urbano denso e muito povoado?
SPENCER: Perdem a capacidade de utilizar tecnologias avançadas para atacar o inimigo antes de se aproximarem dele, que é o que todos os militares querem fazer. É por isso que a guerra urbana é a mais difícil, porque todas as vantagens superiores que um grande exército tem são reduzidas e, nalguns aspectos, eliminadas.
Perdem a capacidade de fazer "manobras de armas combinadas". Todo o conceito de manobra de armas combinadas, desde a Segunda Guerra Mundial até aos dias de hoje, tem a ver com a existência de forças móveis que podem manobrar à volta do inimigo e envolvê-lo. Não se consegue fazer isso. Não é possível fazer isso numa área urbana. Nenhum militar quer concentrar as suas forças numa única rua ou em várias ruas.
COLLINS: Para dar alguns exemplos a nível tático, existem muitas oportunidades para o inimigo se esconder e se movimentar sem ser observado pelas plataformas de vigilância e reconhecimento de informações, ou drones no céu. Eles não conseguem ver o inimigo porque ele está a mover-se através de túneis. O inimigo pode deslocar-se entre edifícios, rebentando paredes de um edifício para outro. E depois, em termos de poder de fogo, mesmo que os vejamos, nem sempre podemos disparar porque pode haver outro edifício no caminho e, ao mesmo tempo, temos de nos preocupar com os civis na zona.
"Há muitas oportunidades para o inimigo se esconder e se movimentar sem ser observado pelas plataformas de vigilância e reconhecimento de informações, ou drones no céu". Liam Collins
SPENCER: A outra coisa que perdem são os efeitos das suas armas. Na selva de betão da guerra urbana, a maioria das armas pode nem sequer penetrar no edifício onde o inimigo se encontra. Sim, há muitas que penetram, mas a maior parte das armas de série não o fazem.
BERGEN: Porquê?
COLLINS: Vou dar um exemplo. Em 2002, lançámos duas bombas de 500 libras sobre um pequeno complexo numa zona rural do Afeganistão e, de alguma forma, um combatente talibã sobreviveu e atirou-nos uma granada. Estas estruturas oferecem defesas inerentes ao defensor. Olhamos para a destruição de um edifício e pensamos que ninguém poderia ter sobrevivido a isso, mas as pessoas fazem-no habitualmente.
O Hamas quer ganhar o máximo de tempo possível. Quanto mais tempo durarem os combates urbanos, maior será a pressão política para que Israel pare o ataque devido aos danos colaterais e às baixas civis que são uma parte inerente da guerra urbana. O seu objetivo não é destruir as IDF. Não conseguem. É ganhar tempo.
BERGEN: Os israelitas mantêm, presumivelmente, algumas vantagens?
SPENCER: Bulldozers D9. Bulldozers de dois andares controlados à distância que podem avançar e tirar a vantagem ao inimigo. A vantagem do Hamas é que está escondido em edifícios de betão. Ainda assim, se liderarmos com um bulldozer blindado que pode receber o primeiro ataque de qualquer coisa - por exemplo, RPGs (Rocket Propelled Grenades) [uma espécia de bazuca] - isso dá-nos a vantagem de eliminar a proteção dos edifícios de betão em que o inimigo confia. Esta é uma das soluções de baixa tecnologia que as FDI criaram, uma capacidade que as forças armadas dos EUA não têm.
COLLINS: Os israelitas também têm capacidade de combate noturno; atacar à noite é uma vantagem para eles, porque isso favorece-os mais do que ao inimigo.
BERGEN: Como é que se descobre o aspeto dos túneis se não se dispõe de imagens aéreas?
SPENCER: As imagens aéreas não ajudam na profundidade a que alguns destes túneis se encontram. É preciso ter tecnologias específicas de mapeamento subterrâneo.
BERGEN: E quanto à utilização de robots, e quanto à utilização de gás lacrimogéneo nos túneis?
SPENCER: O gás lacrimogéneo é uma forma eficaz de limpar um edifício de pessoal inimigo, sem o destruir. É improvável que Israel o utilize devido ao aspeto político da questão; o que é que parece quando Israel está a utilizar gás?
BERGEN: Cita o estratega australiano David Kilcullen no seu livro: "As cidades são esponjas para as tropas." Porquê?
SPENCER: Por causa do poder de força que é necessário para desimpedir uma rua. Não se vai bombardear para o conseguir. Um defensor urbano de muito menor dimensão pode absorver todo o seu exército, mas isso não quer dizer que não seja uma missão que possa ser cumprida. Apenas requer muita força e poder, incluindo muitos soldados.
COLLINS: E o outro desafio do ambiente urbano é que se pode limpar uma área, mas assim que se sai do edifício, já não se pode presumir que está limpa, porque o inimigo pode voltar a atacar-nos através de túneis ou através das paredes de outros edifícios. Pode ficar atrás de nós e voltar a ocupar um edifício ou uma área assim que sairmos dele.
BERGEN: Os atiradores furtivos são um problema difícil. Presumivelmente, o Hamas tem atiradores que vão estar entrincheirados e conhecem muito bem o terreno.
SPENCER: Há muitas lições aprendidas nos últimos 20 anos de batalhas urbanas, incluindo sensores acústicos que nos podem dizer onde está um atirador furtivo.
Além disso, se alguma vez viu um soldado das FDI, ele tem um saco muito grande que vai até ao cimo da cabeça. É um tipo especial de camuflagem. As FDI usam na cabeça estes sacos que cobrem os capacetes para enganar os atiradores furtivos
BERGEN: E os robots do lado israelita?
COLLINS: Sem dúvida que os vão utilizar, mas provavelmente não têm tantos como gostariam, e são lentos.
BERGEN: O Hamas faz a recolha do lixo. Presta alguns serviços sociais. Foi eleito para o governo em 2006. Desde então, não houve eleições. Mas funciona a vários níveis. Tem uma componente terrorista. Isso complica as coisas?
COLLINS: Temos esta organização híbrida que é uma organização terrorista e uma organização paramilitar que presta serviços ao governo.
Portanto, Israel não está - apesar de declarar que o objetivo é "destruir" o Hamas - eles sabem que isso é irrealista. É apenas uma declaração política que têm de fazer. O seu objetivo é degradá-los e evitar um futuro ataque. Portanto, na realidade, o que eles estão a perseguir é a liderança, a ala terrorista, a ala combatente do Hamas.
Por isso, darão por terminada a operação quando sentirem que atingiram o ponto culminante em termos de diminuição do retorno da degradação de capacidades adicionais versus o custo político de continuar essa operação para degradar capacidades adicionais.
BERGEN: Como é que é o dia seguinte ao fim dos combates em Gaza?
COLLINS: As pessoas estão a regressar às suas casas. Estão a remover os escombros. Está-se a tentar fazer com que os serviços voltem a funcionar. As organizações não governamentais estão a chegar e a tentar restaurar alguma aparência de vida normal para os palestinianos.
BERGEN: Os israelitas já se retiraram de Gaza em 2005, porque era uma dor de cabeça demasiado grande, e os israelitas com quem falei dizem: "Não vamos manter Gaza". Mas, se é esse o caso, então quem vai?
SPENCER: Os militares têm um historial abismal na construção de estados ou nações ou na construção de cidades em geral. Quem é que vai governar Gaza? Quem é que vai fornecer serviços, segurança e reconstrução? Essa é uma questão de grande importância.
BERGEN: Vamos a Mossul, a segunda maior cidade do Iraque, que foi tomada pelo ISIS em 2014. No seu livro, fala de danos no valor de cem mil milhões de dólares na cidade durante a luta para retirar o ISIS de Mossul, entre finais de 2016 e 2017.
SPENCER: O ISIS teve dois anos de planeamento defensivo e de construção de uma defesa em profundidade com enormes cinturões de obstáculos em Mossul, e é por isso que foram precisos nove meses para que cem mil forças de segurança iraquianas - embora nada como as FDI - apoiadas pelos EUA com o melhor poder aéreo do mundo, destruíssem discriminadamente, edifício a edifício, a maior parte de Mossul.
Este é um sinal revelador do que seria cumprir a atual missão que pensamos que as FDI vão ter. Destruirá 80 a 90% das infra-estruturas e dos edifícios nas zonas urbanas de Gaza. Isto vai mudar a paisagem desta zona durante uma geração.
COLLINS: As pessoas devem saber que, mesmo sob as mais rigorosas leis da guerra, as cidades são destruídas para cumprir este tipo de missão.
BERGEN: Israel parece ser um exército baseado em tanques. Explique-me o que podem fazer os tanques num ambiente urbano e quais são as suas vantagens e desvantagens.
COLLINS: Os tanques têm uma enorme vantagem no deserto aberto. Mas muitas das suas vantagens são neutralizadas ou diminuídas quando se entra no ambiente urbano. A sua capacidade de atingir alvos à distância é muito reduzida e não podem elevar o canhão principal para atingir alvos em edifícios altos. Por isso, é necessário um tanque como parte da equipa de armas combinadas no combate urbano, mas é muito mais vulnerável nesse ambiente do que noutros.
Os tanques têm uma enorme vantagem no deserto aberto. Mas muitas das suas vantagens são neutralizadas ou diminuídas quando se entra no ambiente urbano. Liam Collins
SPENCER: De todos os desafios inerentes a este tipo de combate urbano, o tanque é extremamente vulnerável.
Mas não há nenhuma outra ferramenta que seja tão vital como o tanque quando se combate numa cidade, porque pode descer uma rua e aguentar um ataque do defensor. Tem um poder de fogo único nas forças terrestres, que pode perfurar o betão, e tem a mobilidade necessária para se deslocar.
A desvantagem, claro, é que não consegue ver tudo. É vulnerável. É lento. Podemos vê-lo a aproximar-se. Por isso, tem de ser protegido com infantaria.
BERGEN: Então, é preciso ter uma quantidade substancial de infantaria a proteger o tanque?
SPENCER: Certo. Essa é a lição da guerra da Ucrânia; a Rússia é um exército baseado em tanques de artilharia, por isso, quando entrou na Ucrânia no início de 2022, tinha um número reduzido de infantaria e perdeu um número ímpio de tanques.
COLLINS: É preciso a infantaria para proteger o tanque, mas é preciso o tanque para proteger a infantaria.
BERGEN: Isto não tem algumas implicações para a "massa" envolvida quando se lança uma operação militar em Gaza? É mais fácil defender do que atacar?
SPENCER: Costumamos dizer que isto é o "poder de combate". Num terreno aberto, são necessários três poderes de combate - algumas pessoas dizem apenas tropas - para um defensor. Em terreno urbano, historicamente, são precisos quinze ou dez para um poder de combate, porque não se pode fazer massa em áreas urbanas.
Uma rua pode absorver um batalhão inteiro só para tentar deslocar-se por essa rua.
BERGEN: E um batalhão seria de 800 soldados?
SPENCER: Até 900.
BERGEN: Vamos lá fazer contas, o que é que parece em termos da dimensão da força que teria de ser enviada para Gaza?
SPENCER: Há muitas variáveis, mas o que está em causa é o poder, não os números. Isto não é a Batalha de Berlim em 1945, em que os soviéticos colocaram um batalhão em cada rua. É por isso que as batalhas urbanas também acontecem repetidamente, porque já ninguém tem um exército de um milhão de homens. Têm exércitos mais pequenos, em que uma pequena força adversária pode ganhar poder no ambiente urbano, e é preciso lançar muito poder de combate - normalmente artilharia - para os tirar de lá.
BERGEN: Deixe-me perguntar-lhe, Liam, sobre os reféns, porque você vem da comunidade de operações especiais dos EUA.
COLLINS: Estou bastante confiante de que eles não têm informações sobre a localização dos reféns. O mais provável é que os estejam a esconder no subsolo. E é absolutamente necessário ter esse tipo de informação para conduzir uma operação e, mesmo que se tenha a informação, será que se tem os meios para lá chegar em segurança e tirá-los de lá com uma hipótese razoável de sucesso sem perder o refém e sem perder uma parte significativa da força?
Por isso, penso que as nações estão provavelmente a preparar as suas forças para que, se obtiverem informações, possam decidir se vão tentar resgatar os seus cidadãos. Mas penso que o mais provável é vermos resultados através de meios diplomáticos, como foi o caso quando o Hamas libertou a mãe americana e a sua filha na semana passada.
Agora, os reféns israelitas. Penso que esses são os que o Hamas vai manter por mais tempo.
SPENCER: Ter tantos reféns de tantos países misturados com o inimigo e os israelitas prestes a executar esta operação é uma situação sem precedentes, na minha opinião.
Ter tantos reféns de tantos países misturados com o inimigo e os israelitas prestes a executar esta operação é uma situação sem precedentes. John Spencer
BERGEN: Porque é que escreveu um livro sobre guerra urbana?
COLLINS: As batalhas são cada vez mais travadas em áreas urbanas e as forças armadas de todo o mundo, incluindo as nossas forças armadas nos EUA, estão mal preparadas ou não estão preparadas para o fazer. Desafio constantemente as pessoas a citarem uma batalha importante na Ucrânia que não seja numa das cidades.
Os militares são inerentemente resistentes à guerra urbana. É um sítio onde não querem ir. Por isso, não se preparam para ela, e é por isso que o inimigo continua a recorrer a ela.
COLLINS: Mas não se pode deixar de ser atraído para a guerra urbana porque os seres humanos lutam em guerras e os seres humanos vivem em cidades.