O inverno chega a todos: cidadãos russos estão a financiar equipamentos para o exército - incluindo botas, roupa interior e até meias - TVI

O inverno chega a todos: cidadãos russos estão a financiar equipamentos para o exército - incluindo botas, roupa interior e até meias

  • CNN
  • Tim Lister e Katharina Krebs
  • 23 dez 2022, 22:00
Guerra na Ucrânia (AP Photos)

Russos começaram a organizar angariações de bens depois das tropas se terem queixado da escassez de equipamento básico

Relacionados

As crianças em idade escolar angariam dinheiro para comprar meias, as mães compram roupas de inverno e sacos-cama, os grupos comunitários recolhem donativos para comprar coletes à prova de bala. Os cidadãos russos estão a fazer crowdfunding para equipar os soldados que são enviados para a Ucrânia, à medida que o inverno se aproxima do campo de batalha. As tropas têm-se queixado da escassez de equipamento básico, e a mensagem chegou ao presidente Vladimir Putin.

Putin e outras autoridades russas disseram que estão a ser ultrapassados os problemas iniciais com o abastecimento das tropas recém-destacadas para a Ucrânia, em parte graças a uma reorganização na cadeia de abastecimento. Mas o Kremlin também aumentou a pressão sobre aqueles que ousam queixar-se - e enquadra cada vez mais a invasão da Ucrânia como uma causa patriótica e quase existencial.

Na passada quarta-feira, Putin disse que os esforços de mobilização devem ser modernizados depois de o recrutamento parcial do outono ter revelado alguns problemas.

“A mobilização parcial revelou alguns problemas, e isso é bem sabido por todos e deve ser rapidamente resolvido”, disse Putin durante uma reunião com chefes da defesa russos.

O próprio Putin organizou, no Kremlin, um encontro bem coreografado com as famílias dos soldados, no final de novembro, dois meses após a tão criticada mobilização parcial. Quem compareceu na reunião foi cuidadosamente escolhido pelo seu tom de apoio.

As campanhas locais para angariar fundos para os soldados estão a decorrer na Rússia e também na autoproclamada República Popular do Donetsk, no leste da Ucrânia. Uma delas, a “Together is Warmer” angariou 3 milhões de rublos (cerca de 45.000 dólares) para fornecer equipamento básico e roupas aos soldados russos.

Um canal do Telegram reportou, no mês passado, como um soldado com o nome de código Kaluga do 6.º Batalhão Motorizado da República Popular do Donetsk, pediu ajuda para os 74 homens da sua unidade.

“Quando já estávamos a recolher as ordens e a prepararmo-nos para partir, as pessoas apareceram no nosso armazém com caixas e pacotes com as palavras: ‘Isto é para o Kaluga do 6.º Batalhão Motorizado!' Medicamentos, roupas, botas e até duas cadeiras de rodas, que os soldados levaram para o hospital local.”

O canal fez uma lista de outras coisas que foram oferecidas: “Fardas, roupa interior térmica, meias, chapéus, balaclavas, camisolas, gorros, um gerador, power banks.”

Um canal do Telegram na república russa da Buriácia, de onde vêm muitos dos recrutas, declarou: “Desde o início da mobilização parcial dos soldados do segundo exército do mundo para a guerra, eles têm sido equipados pelo povo.”

Na região da Chuvashia, onde alguns dos soldados mobilizados realizaram manifestações no outono, vários canais do Telegram disseram que as famílias se endividaram para comprarem equipamento. “Das autoridades de lá, a única coisa que receberam foram palavras de despedida e três sacos de batatas”, dizia um deles.

Da mesma forma, um canal do Telegram em Altai, no sul da Sibéria, publicou: “O inverno está quase a chegar, o que significa que está na hora de recolher tudo o que for mais quente para os soldados mobilizados. Voluntários no Território de Altai anunciaram a recolha de botas de feltro, camisolas de lã, luvas e cachecóis que seriam depois enviados para a frente.”

Em Tambov, na região central da Rússia, alunos do 8.º ano também angariaram dinheiro para comprar meias para os soldados.

Recrutas russos alinham-se antes da partida numa estação ferroviária em Omsk, na Rússia, em novembro.

Muitos apelos concentram-se na prevenção da hipotermia entre os soldados que estão a combater sem roupa adequada nem abrigo, em temperaturas negativas. Mas alguns também tentam obter dispositivos de imagens térmicas, rádios bidirecionais, coletes à prova de bala e até mesmo drones.

Um canal do Telegram publicou: “Continuamos a recolher coletes à prova de bala”, dizendo que tinha testado os coletes de fabrico chinês. “Queremos comprar até 50 conjuntos. Precisamos de angariar 1 milhão de rublos.”

Maxim Samorukov, membro do Fundo Carnegie pela Paz Internacional, escreveu na revista “Foreign Policy”, na semana passada: “Espera-se que os cidadãos russos comuns ajudem os amigos e os familiares que tiveram a infelicidade de serem mobilizados. Na verdade, resta-lhes poucas opções a não ser cobrir as deficiências nas provisões do estado, recorrendo aos próprios bolsos para proteger os seus entes queridos.”

“Só podem confiar em mim”

Equipar os novos recrutas - o Kremlin diz que cerca de 150 000 já foram destacados - tem sido um desafio para as cadeias de abastecimento russas que, à partida, já não eram exemplares.

No início deste mês, a jornalista russa Vera Desyatova, da Vesti FM, questionou Putin sobre esta escassez, numa conferência de imprensa. “O fluxo de mensagens dos soldados nas linhas da frente é incessante. São vários os pedidos que chegam aos militares e aos voluntários”, pedidos de fardas, medicamentos e outro equipamento, questionou.

“Em quem podemos acreditar?” perguntou a jornalista. “Nos relatórios do Ministério da Defesa ou nos soldados que estão na linha de frente?”

“Não podemos confiar em ninguém. Só podem confiar em mim”, respondeu Putin, antes de acrescentar: “Houve realmente problemas e, a julgar pelo que está a dizer, os problemas provavelmente continuam a existir. Embora me garantam que são cada vez menores.”

Isso pode acontecer porque o Kremlin reorganizou as cadeias de compras e abastecimento para responder às críticas do público.

Em outubro, estabeleceu um Conselho de Coordenação com amplos poderes para melhorar a logística, liderado pelo primeiro-ministro tecnocrata Mikhail Mishustin. Segundo Mishustin, a função do Conselho é “identificar as principais tarefas para o abastecimento de armas e equipamento, tratar do orçamento e dos preços, fazer a seleção de fornecedores e empreiteiros, e a criação de uma infraestrutura especializada.”

“Todos os nossos soldados nas linhas da frente, nas unidades de retaguarda e nos campos de treino devem ter todo o equipamento de que precisam, o mais depressa possível”, disse Mishustin.

Desde outubro que o primeiro-ministro russo Mikhail Mishustin lidera o Conselho de Coordenação criado para resolver os problemas logísticos nas operações militares.

E são várias as evidências de que as unidades nas linhas da frente ainda precisam de ajuda. Num vídeo recentemente publicado, um soldado russo rodeado por cinco camaradas disse: “Vivemos em péssimas condições… Não tivemos apoio material, nada. Fomos defender a nossa pátria.”

“Não temos tendas, nada”, acrescentou, antes de deixar um apelo à cidade natal da unidade, Serpukhov, ao sul de Moscovo.

Outro grupo de homens recentemente mobilizados em Tomsk, na Sibéria, queixou-se num vídeo publicado no YouTube, dizendo que tinham sido recategorizados como “stormtroopers” em vez de uma unidade de defesa territorial. “Nunca tivemos uma metralhadora nas mãos. Acabámos de chegar ao campo de treino para lançar granadas, mas não pudemos fazê-lo porque não há granadas disponíveis.”

Crítica abafada

O Kremlin começou a sugerir que as queixas das famílias e dos soldados não são patrióticas.

No final de novembro, Putin reuniu-se com mães de soldados, na residência do presidente nos arredores de Moscovo, embora as palavras trocadas tivessem deixado bem claro que as mães tinham sido cuidadosamente escolhidas. Não houve qualquer divergência. Uma mãe até falou com orgulho da morte do filho na linha de frente.

A certa altura, Putin sublinhou que “quanto às roupas, fiquei feliz ao saber que a situação com o abastecimento e os alimentos melhorou.” Putin também falou sobre o fornecimento de mais drones às linhas de frente.

O líder russo centrou-se no heroísmo dos soldados da linha da frente e na nobreza do sacrifício. Uma morte nas trincheiras era melhor do que uma morte pelo vodca, disse Putin às mulheres. “Um soldado que tenha feito tal sacrifício não morreu em vão”, disse ele.

Putin também falou sobre a criação de um grupo que representasse as famílias dos soldados. Mas um grupo inicial - o Conselho de Mães e Esposas - não foi propositadamente convidado para a reunião.

A líder do Conselho de Mães e Esposas, Olga Tsukanova, disse: “As mães que vão estar presentes farão as perguntas ‘adequadas’ que foram previamente combinadas.”

Uma semana após a reunião, Tsukanova foi parada pela polícia e revistada em busca de drogas. Uma jornalista que estava com ela, Svetlana Belova, foi multada em 3000 rublos (45 dólares) por divulgar “materiais extremistas”. O canal nas redes sociais do Conselho, o VKontakte, foi suspenso.

Ao mesmo tempo, bloguistas militares influentes e muitas vezes críticos, alguns dos quais com centenas de milhares de seguidores, ficaram muito calados.
Andrei Soldatov, um jornalista russo independente e autor de vários livros sobre a Rússia de Putin, diz que um dos bloguistas, Alexander Kots, foi nomeado para o Conselho de Direitos Humanos oficial “para melhorar o acesso direto de Putin aos soldados”.

Outro bloguista, Semen Pegov, afirmou em outubro que funcionários do Ministério da Defesa tinham criado uma lista negra das pessoas “que não eram suficientemente entusiastas” - uma lista que o incluía. Um mês depois, após ser ferido na linha de frente, Pegov recebeu de Putin a medalha “Ordem da Coragem”.

Soldatov disse à CNN: “O Kremlin está a usar formas tradicionais [para controlar as mensagens], mas também está a tentar lidar com a questão do Telegram, com o objetivo de agregar vozes.”

A um nível prático, o governo russo está a fazer um esforço coordenado para melhorar as linhas de abastecimento, enquanto abafa a dissidência. Para tal, o Artigo 207.3 do código penal russo, aprovado em março, foi acionado contra as pessoas acusadas de espalhar “notícias falsas” sobre as Forças Armadas.

Mas o Kremlin também está a reformular o motivo para a guerra, disse Soldatov. “A narrativa está a ficar mais apocalíptica. Agora, é quase uma Guerra Santa, e os padres que morreram recentemente no campo de batalha tornaram-se grandes heróis nos canais pró-Rússia do Telegram.”

E estes esforços de crowdfunding podem ser encarados como uma vertente deste impulso de “toda a sociedade”.

Num artigo na “Foreign Affairs”, Soldatov disse que, apesar dos fracassos e dos contratempos dos últimos dez meses, Putin ampliou o seu alcance sobre a sociedade e a economia.

“Os russos comuns não querem pensar muito numa possível segunda onda de mobilização”, disse Soldatov à CNN.

“A primeira foi a principal fonte de descontentamento público e levou a um colapso total do controlo das informações online por parte do Kremlin. Agora, eles andam à procura de uma maneira de se conseguirem adaptar… Podem parecer menos entusiasmados com a guerra, mas isso não significa que vejam uma hipótese real de mudança.”
 

Continue a ler esta notícia

Relacionados