Durou cerca de 24 horas uma rebelião que prometeu chegar a Moscovo e retirar Vladimir Putin do Kremlin. No final, a mediação da Bielorrússia pôs fim à aventura do Grupo Wagner, que esteve a 200 quilómetros da capital russa.
“Queriam desmantelar o Grupo Wagner. A 23 de junho, embarcámos numa marcha pela justiça. Em 24 horas, chegámos a 200 quilómetros de Moscovo. Nesse percurso os nossos soldados não derramaram uma gota de sangue. Agora chegou o momento em que o sangue poderá ser derramado. Compreendendo a responsabilidade [pela hipótese] de o sangue russo ser derramado, estamos a inverter as nossas colunas e voltaremos aos campos de campanha como planeado”, disse o comandante da força paramilitar, Yevgeny Prigozhin, no Telegram.
A negociação entre Kremlin, Minsk e Prigozhin viu o líder do Grupo Wagner sair para o exílio na Bielorrússia e ficar livre de todas as investigações e acusações lançadas pela Procuradoria-Geral da Rússia. A imunidade estendeu-se, também, aos mercenários que participaram na rebelião.
Questionado pela CNN Portugal sobre os motivos que levaram ao fim da revolta, o embaixador Francisco Seixas da Costa considera que, “muito provavelmente, Prigozhin não foi capaz de garantir, ao longo destas horas de revolta, o mínimo de suporte, em particular nas estruturas intermédias militares russas, que lhe permitissem garantir uma reversão da situação política na Rússia”.
O comentador destaca também a perceção de Vladimir Putin entre a população russa. “Nunca apareceu [até este momento] uma declaração abertamente contra Putin por parte de Prigozhin. A população russa, apesar do mal-estar vivido por uma guerra que está a correr mal, não parece dissociar-se de Putin”, analisa.
Seixas da Costa refere que Prigozhin, com o acordo estabelecido com o Kremlin, pode ganhar “alguma autonomia, margem de manobra e dinheiro”, mas realça que vai perder “a sua capacidade de se projetar como um poder alternativo no quadro interno russo”.
Acerca da forma pacífica como a rebelião foi desmantelada, o embaixador nota que o Grupo Wagner é fulcral para os objetivos da política externa do Kremlin. “Prigozhin era, e o Kremlin sabe-o, uma das armas que a Rússia tinha para se afirmar no plano internacional. Não sei se vai ter lugar ou não, mas a desestruturação do Grupo Wagner vai destruir grande parte da capacidade operacional que a Rússia tem no plano externo, nomeadamente no Mali, na Síria e Líbia. Há um conjunto de funções que o Grupo Wagner desempenha que são fundamentais para o Estado russo, daí todo o cuidado com que isto foi feito. Não era possível fazer algo que seria fácil em teoria, que era bombardear com caças as colunas do Grupo Wagner. Isso, para a população russa, seria incompreensível, porque o Grupo Wagner está do lado deles”, explica o comentador.
“Putin e Prigozhin são os dois nacionalistas, Prigozhin até tem um discurso mais nacionalista. Daí a necessidade de encontrar uma solução. Estão todos no mesmo grupo”.
Por sua vez, o especialista em assuntos internacionais José Palmeira afirma que Putin “revelou ter medo” do líder do Grupo Wagner. “Prigozhin é alguém que teve uma relação muito pessoal com Putin, conhece bem a sua personalidade. Quando diz o que diz, tem consciência dos efeitos que isso vai ter. Ao utilizar uma posição de força, previu que a posição do Kremlin iria ser de fraqueza. Foi isso que aconteceu”, analisa o professor da Universidade do Minho.
Como pode a guerra ser afetada?
José Palmeira afirma que, da parte da Ucrânia, “há a perceção de que o agressor está fragilizado”.
“Vendo as divisões que ontem [sábado] existiram, a posição russa está muito enfraquecida, não só porque o seu líder não é, afinal, o líder incontestado que se pensaria, como também pela solução encontrada para Prigozhin, que revela uma certa fraqueza. Não houve um exercício de poder efetivo, o Estado de direito não funcionou perante quem se amotinou”, considera o especialista.
O docente de Relações Internacionais nota, também, a “balcanização” das forças militares russas, que estão muito divididas em várias fações, como os soldados do Ministério da Defesa, as forças chechenas de Ramzan Kadyrov e o próprio Grupo Wagner, e diz que a Ucrânia pode ter aí uma “janela de oportunidade”.
Por seu turno, José Manuel Pinto Teixeira, antigo embaixador da União Europeia em Kiev, receia que Putin vá “endurecer” a campanha militar russa na Ucrânia.
“Putin vai agora querer mostrar que aquilo que Prigozhin disse não é verdade. Vai querer provar que a capacidade militar russa não está posta em causa e vai querer demonstrar que consegue resultados”, perspetiva o diplomata.
Sobre Prigozhin, José Palmeira tem dúvidas de que vá ser um “exilado silencioso”. “Sabendo nós da sua propensão especial para utilizar as redes sociais, se a ofensiva russa vier a ter problemas no terreno, Prigozhin vai dizer que tinha razão, de que era preciso mais apoio e são precisos novos líderes militares, e poderá acabar por surgir como vencedor”.