A improvável resistência ucraniana. O falso isolamento da Rússia. Os perigos do cansaço ocidental. Há uma guerra na Europa. Vai ter fim? - TVI

A improvável resistência ucraniana. O falso isolamento da Rússia. Os perigos do cansaço ocidental. Há uma guerra na Europa. Vai ter fim?

Kharkiv em dezembro de 2022

Num conflito sem fim à vista, a guerra aproxima-se do seu clímax do ponto de vista militar. Os serviços secretos ucranianos temem que a Rússia esteja prestes a lançar uma ofensiva de larga escala, superior até à lançada há um ano. Sem fim à vista para o conflito, parece só haver uma certeza: no dia em que o Ocidente se desunir, as hipóteses de Kiev desaparecem

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A guerra na Ucrânia atingiu um ponto crítico. Dezenas de milhares de mortos, um enorme rasto de destruição e uma escalada de intensidade que não parece ter fim. Quase um ano depois do início da guerra, os confrontos podem tornar-se ainda mais violentos e os especialistas alertam que o risco de o conflito se estender a países da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) nunca foi tão grande. As populações ocidentais, por outro lado, começam a sofrer do "cansaço da guerra" e, sem ajuda do ocidente, os peritos militares avisam que "Kiev não duraria dois dias". Para onde caminha a guerra na Ucrânia?

"Somos muito capazes de estar prestes a assistir a uma batalha que vai decidir tudo. Um ano depois início da guerra, estamos a viver o clímax do ponto de vista militar. Estamos num ponto verdadeiramente crítico que pode escalar para uma terceira guerra mundial", afirma o major-general Agostinho Costa.

Antes de começar a invasão, o sentimento era generalizado. Para a vasta maioria dos observadores ocidentais, a diferença de forças era de tal forma grande que a Ucrânia não teria muitas hipóteses de aguentar uma investida das forças armadas russas. Muitos davam apenas dias, semanas, ou poucos meses de vida ao Governo de Kiev. Outros argumentavam que o envio de armas para a Ucrânia era um erro, porque de pouco serviriam contra a supremacia militar russa. Um ano depois, a resposta militar ucraniana provou que todas estas análises estavam erradas.

A análise feita pelo Kremlin falhou. Os 190 mil militares investidos naquilo a que presidente russo chamou de "operação militar especial" foram insuficientes para atingir o objetivo de colapsar o regime de Kiev e incapacitar as forças militares ucranianas. 

"A avaliação inicial feita pelo Kremlin sobre aquilo que seria a capacidade de defesa ucraniana estava errada. Como a resposta ucraniana foi recuar e defender dentro das cidades, alterou-se a relação de forças e o número de soldados russos tornou-se insuficiente. Isto obrigou a Rússia a uma redução sucessiva das suas ambições", explica o major-general Arnaut Moreira.

Coluna de carros de combate russos destruídos na Ucrânia (Getty Images)

Um passo maior do que a perna

Quando a Rússia percebeu que "foi demasiado longe", viu-se obrigada a recuar do norte da Ucrânia, naquilo que publicamente veio a apelidar de "um gesto de boa vontade" da diplomacia russa. À data, ainda pairava a hipótese de se chegar a um acordo na mesa de negociações. A chefia militar russa procura focar-se na região do Donbass e no corredor terrestre que liga a Rússia à Crimeia. Mas o número de soldados continuava a ser insuficiente para a tarefa, uma vez que o lado ucraniano procurou aumentar fortemente o número de efetivos. Em julho já tinha mais de 700 mil soldados no ativo.

Esta alteração da relação de forças permitiu a Kiev lançar um contra-ataque na região de Kharkiv, em agosto, que acabou por terminar com a reconquista de mais de seis mil quilómetros quadrados e recapturar localidades na região de Lugansk. Esse foi um dos momentos que levou os mais altos círculos políticos estratégicos do Kremlin a decretar a inevitável mobilização parcial, chamando ao serviço 500 mil reservistas, que entrariam na frente de batalha de forma faseada.

“A Rússia esteve à beira de perder a guerra em agosto, quando a ofensiva ucraniana arriscou colapsar completamente a linha de combate russa em Lugansk”, recorda Agostinho Costa, vice-presidente da Eurodefense Portugal, adiantando que foi a nomeação do implacável general “Surovikin que impediu a Ucrânia de ganhar a guerra no verão”.

A "mobilização parcial" acontece em setembro e, apesar de chamar para o exército um elevado número de militares, esta chamada ocorre “numa fase muito tardia”, segundo os especialistas. Isto porque entre chamar reservistas para o ativo e torná-los uma força efetiva com capacidade militar de levar a cabo operações militares mais complexas “pode demorar muitos meses”. Essa demora obrigou a Rússia a ter de retirar as suas tropas da cidade de Kherson e a destaca-las para regiões da frente de combate mais vulneráveis, em Zaporizhzhia, Lugansk e Donetsk.

Foi uma nova diminuição das ambições do Kremlin. Agora, o número de soldados era maior para uma frente de combate mais pequena e, todos os meses chegam cada vez mais reservistas mobilizados que concluem a sua formação. Esta mudança permitiu à Federação russa travar a ofensiva ucraniana e recuperar ela própria a rédea dos combates. Passado quase um ano de guerra, volta a ser a Rússia quem escolhe quando e onde ataca, embora as suas novas unidades militares sejam de qualidade questionável.

“Os novos efetivos russos são mal treinados e mal equipados. Uma operação militar com pessoal pouco treinado não pode ter grandes rasgos para além do típico ataque frontal.  O que resulta daqui? Taxas imensas de mortalidade entre as tropas russas”, explica o major-general Arnaut Moreira.

Ucrânia tenta ganhar tempo

Ambos os lados lhe chamam o “moedor de carne” e é lá que a Rússia tem concentrado os seus maiores esforços. A cidade de Bakhmut, na região de Donetsk, que antigamente era casa de 70 mil pessoas, tornou-se uma espécie de fortaleza para a Ucrânia, que obriga os soldados russos a lutar um sangrento combate casa a casa, onde os veículos blindados de pouco servem. A Rússia evita o combate urbano ao tentar cercar a cidade, mas o progresso tem sido muito lento e, por vezes, muito pesado em perdas humanas e materiais.

O chão da cidade está coberto por um misto de neve e de sangue. A Ucrânia diz que a Rússia já perdeu mais de dez mil efetivos a tentar conquistar Bakhmut e Soledar e está a perder 824 militares por dia em toda a frente. Mas as perdas ucranianas são pesadas e muitos analistas sugerem que Kiev pode estar a gastar demasiados recursos para proteger uma cidade com um valor estratégico reduzido. Outros especialistas defendem que a defesa intransigente de Bakhmut faz parte da estratégia ucraniana.

“A Ucrânia está a ganhar tempo. Recua onde pode recuar e defende onde sente que pode defender, sempre tentando perder o mínimo de território possível. Kiev precisa ganhar tempo para ter oportunidade de ir treinar as suas forças com os meios de combate que o Ocidente está a fornecer”, explica Arnaut Moreira.

As fontes dos serviços secretos ucranianos temem que a Rússia esteja prestes a começar uma ofensiva de larga escala, superior até à lançada a 24 de fevereiro de 2022, quando tentou atacar em todas as direções. Segundo Kiev, o lado russo tem prontos dois mil carros de combate, quase quatro mil blindados, centenas de aviões, helicópteros e 300 mil soldados para tentar quebrar a linha defensiva da Ucrânia, mas ainda não há sinais de que tal ofensiva tenha arrancado.

Militar ucraniano em Mariupol (AP Images/Mstyslav Chernov)

Para já, o exército russo continua a apostar também nos ataques em profundidade contra as infraestruturas que suportam toda a logística de guerra ucraniana. Estruturas elétricas, fábricas, estações de comboio e depósitos de munições, continuam a ser alvo dos mísseis e dos drones russos e estes ataques acabam por se sentir na linha da frente, com atrasos da entrega de abastecimento e quebras na produção de munições.

Inicialmente a Rússia demonstrou ter bastantes problemas logísticos quando a Ucrânia começou a utilizar os sistemas HIMARS para destruir depósitos de munições na retaguarda russa, mas a liderança russa parece ter conseguido corrigir esses problemas e está a conseguir aumentar significativamente a produção de carros de combate, munições e de mísseis. Embora existam muitas dúvidas que a capacidade produção acompanha a velocidade a que o material está a ser destruído no campo de batalha.

Uma guerra de indústrias

Alguns dos principais líderes russos têm-se desdobrado em viagens, de fábrica em fábrica, para se certificarem que a capacidade de produção tem aumentado. Mas este processo demora muito tempo e o caminho mais rápido é modernizar equipamento antigo. Nessa ótica, a Rússia já anunciou a remodelação de 800 unidades do T-62, um carro de combate da década de 60. Este processo está previsto ser concluído dentro de três anos. Alguns estudos apontam para a falta de 400 mil trabalhadores no setor da defesa russo, face à enorme procura que a guerra está a criar.

“A produção russa está a funcionar e a cadeia logística também. Esta guerra está a levar a uma ‘desmilitarização da NATO’, que está a gastar os seus depósitos de munições. Se houver uma guerra na Europa a situação é muito difícil. Capacidade industrial do Ocidente não está a responder às necessidades da Ucrânia”, frisa o major-general Agostinho Costa.

Dmitry Medvedev visita fábrica da UralVagonZavod, Nizhny Tagil, em outubro (Getty Images)

A situação indústria da Defesa dos países da NATO não é a melhor. Décadas de paz levaram a um forte desinvestimento no setor da defesa, um pouco por toda a Europa. Empresas que produziam equipamento militar viram-se obrigadas a transformar as suas fábricas e produzir produtos de natureza civil, para se manterem rentáveis. Hoje a situação está a mudar. "É claro que estamos numa corrida logística”, disse Jens Stoltenberg aos jornalistas em Bruxelas. A Ucrânia utiliza mais munições por dia do que muitos países da NATO produzem num ano.

Nesta fase da guerra, alimentar a frente de batalha com munições, carros de combates, equipamento de proteção é tão importante quanto a capacidade de comandar taticamente um exército de forma inteligente. Se houve falta de munições na frente de combate, falta de veículos ou combustível, isso vai-se traduzir numa incapacidade de conduzir operações de combate.

“As linhas de produção militar encolheram durante a paz e agora precisam de ser expandidas. Precisam de produzir de acordo com o ritmo do consumo numa guerra de elevada intensidade e de grande atrição. No meu ponto de vista, vamos conseguir”, reforçou Arnaut Moreira.

Indústria na Europa é quase sinónimo de Alemanha e, no entender do major-general, este país já deu um passo importante para o ponto de viragem da indústria europeia ao nomear Boris Pistorius para o cargo de ministro da Defesa. Nos seus primeiros dias no cargo, o ministro fez vários contactos com a indústria da Defesa alemã para que “a capacidade industrial alemã fosse colocada ao serviço do apoio ao Ucrânia”.

E a Alemanha não está sozinha. França e Austrália assinaram contratos para produzir munições em conjunto e o líder francês, Emmanuel Macron garantiu em Munique que “não faltarão munições aos ucranianos”. Os Estados Unidos também anunciaram que vão aumentar significativamente a produção de munições e armamento. Outros países, como a Finlândia, Polónia e República Checa também anunciaram aumentos significativos de produção de armamento militar, bem como a abertura de fábrica de reparação de equipamento militar ucraniano.

Os Estados Unidos da América não são exceção neste processo de desinvestimento. Atualmente contam apenas com seis fábricas de produção de munições, muito abaixo do auge da Segunda Guerra Mundial, quando existiam 86 fábricas. Antes da guerra na Ucrânia começar, as empresas americanas produziam 14 mil munições por mês, muito abaixo das sete mil que as forças armadas ucranianas utilizam diariamente. A insustentabilidade deste consumo já levou o Pentágono a ordenar o “maior aumento de produção desde a guerra na Coreia”, para 90 mil munições por mês.

A guerra cansa

“Acredito que, numa guerra prolongada e com um ocidente unido, a Federação russa não tem possibilidade nenhuma de competir com a força económica de todos os países que apoiam a Ucrânia. No dia em que o Ocidente se desunir, Kiev não dura dois dias”, considera Arnaut Moreira.

Esse é um ponto chave para o sucesso ucraniano a longo prazo. O apoio ocidental não é garantido, uma vez que os líderes dos países democráticos têm de prestar contas perante os seus eleitores e estes começam agora a sentir na pele os custos da guerra, que catapultou o custo de vida. O “cansaço da guerra” na opinião pública é real e a sua tendência é para crescer com o tempo.

No sentido inverso, a Rússia pode não estar tão isolada quanto inicialmente se pensava. O Irão forneceu centenas de drones kamikazes à Rússia, que foram utilizados para atacar as infraestruturas ucranianas e os Estados Unidos temem que a China possa estar prestes a aumentar o apoio à Rússia. Para José Filipe Pinto, especialista em relações internacionais, essa é uma possibilidade real, porque Pequim apoia a ideia russa de um mundo “pós-hegemónico” em que os Estados Unidos deixam de ser quem dita as regras.

“A China tem tido uma posição muito cautelosa, mas insiste que quer um mundo pós-hegemónico. Só que esse modelo, a que eles chamam de mundo harmonioso, nada mais é do que uma tentativa de imposição de uma hegemonia chinesa”, considera o professor catedrático.

Politburo do Partido Comunista da China (Getty Images)

Existe também quem defenda que não é do interesse da China participar ativamente no conflito, uma vez que isso implicaria uma reação forte por parte do ocidente, que representa seis países do chamado ocidente alargado como 10 dos maiores parceiros económicos. Seria também um novo entrave às ambições chinesas em Taiwan. Um estudo de 2022 revela que apesar de ser considerada um rival pelo ocidente, a China é cada vez mais vista como um potencial parceiro para os restantes países e isso é já sinal de que o mundo está mesmo a dividir-se em blocos.

A intervenção da China neste conflito poderia escalar e prolongar ainda mais uma guerra onde dificilmente irão existir vencedores. O mais provável, explicam os especialistas, é que Pequim queira ocupar um lugar na mesa de negociações e tal foi confirmado no sábado por Wang Yi, um dos principais diplomatas chineses, que marcou presença na conferência de Munique. "É preciso dar uma hipótese à paz", disse o diretor do Gabinete da Comissão de Negócios Estrangeiros do Partido Comunista da China, que adianta estar a "finalizar os preparativos para uma iniciativa" de negociações.

Um velho Mundo Novo

Em causa está o regresso de “um mundo novo” formado por blocos, que possuem os seus próprios interesses. Para José Filipe Pinto, a Rússia de Vladimir Putin é a líder do “bloco Euroasiático”, que começou agora aquela que é a sua primeira guerra de expansão e que marca o começo de “um mundo de múltiplas ordens”. Nesta nova ordem, os princípios universais vão deixar de ser universais, com cada potência a interpretar esses princípios “de acordo com os seus interesses”.

“A guerra é um instrumento destinado a restaurar uma antiga balança de poderes. O que está em causa nesta guerra é a expansão do bloco Euroasiático de Putin, que, no seu entender, inclui o Donbass e a Crimeia. A Ucrânia encontra-se no seu caminho, numa zona de confluência de poderes.”, reforça.

Tanto a capacidade de produção, ao cansaço do apoio, bem como a intervenção de outras potências tornam este conflito extremamente difícil de prever. As próprias manobras militares e o seu sucesso também não são fáceis de antever. Mas a Rússia adaptou-se depois dos erros iniciais do início da “operação militar especial” e a Ucrânia começou a sofrer cada vez mais problemas. José Filipe Pinto admite que até lá, mesmo que seja encontrado um acordo, no final, “todos perdem e todos vão ser obrigados a fazer concessões” e a solução deverá acabar por ser temporária.  Para o major-general Agostinho Costa, um cenário idêntico ao da Coreia, com uma Ucrânia altamente militarizada e em constante estado de prontidão é “muito provável”.

“Todos perdemos. O conflito não ficará resolvido nos próximos tempos, porque vai implicar concessões de ambas as partes, o que quer dizer que nenhum deles vai ficar contente com o resultado. Há muitas situações que dificilmente são resolvidas numa geração e esta poderá ser uma delas”, admite José Filipe Pinto.

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