Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos garantia que, se houvesse interesse de Vladimir Putin em terminar a guerra na Ucrânia, não teria qualquer problema em sentar-se à mesa para negociar com o presidente russo. À disponibilidade norte-americana o Kremlin respondeu com igual abertura: Putin está sempre pronto para negociar, desde que seja no interesse de Moscovo. Mas os Estados Unidos não reconhecem o território anexado na Ucrânia pela Rússia, pelo que não existe uma base mútua para iniciar conversações, esclarecia o porta-voz do Kremlin.
Esta não foi a primeira vez que os Estados Unidos manifestaram abertura para negociar com a Rússia e houve quem colocasse a questão: estará Biden a pressionar Zelensky para ceder território ocupado aos russos e terminar o conflito, ameaçando até com um corte no fornecimento de armas?
Thierry de Montbrial, o diretor do IFRI - Institut Français des Relations Internationales, um organismo independente francês dedicado ao estudo das relações internacionais, defendia no fim de semana, em entrevista publicada no semanário Le Journal du Dimanche, que é da posição dos Estados Unidos que depende o fim da guerra: enquanto o Ocidente e Biden continuarem a apoiar Kiev com armamento e os russos continuarem a defender que a Crimeia e o Donbass são território de Moscovo, o conflito não terá fim à vista. Até porque, dizia Montbrial, os norte-americanos têm interesse em que a separação entre Europa e a Rússia se torne "irreversível", para que os europeus se voltem para as fontes de energia americanas. Reconhecendo que Washington tem, ainda assim, receio de uma escalada do conflito com recurso ao nuclear, o especialista francês declarava que "continuar ou terminar a guerra dependerá em grande parte da atitude dos Estados Unidos".
Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, admite que os EUA são um dos grandes atores desta guerra e que, se não estivessem envolvidos, "provavelmente, nem Europa nem a Ucrânia teriam a capacidade de fazer frente à Rússia" - como, aliás, admitiu na semana passada a primeira-ministra da Finlândia.
Mas lembra que os restantes atores fundamentais do conflito - a própria Rússia e Ucrânia - poderão determinar o curso dos acontecimentos. "A Ucrânia vai ter de ultrapassar agora um inverno que tem o potencial de fazer milhares de mortos, por causa da destruição das infraestruturas críticas por parte da Rússia. Não sabemos até que ponto a Ucrânia terá capacidade anímica para continuar a guerra, ou se a Rússia fica sem o apoio internacional de que precisa para manter a guerra, e aqui falamos da China: não dá diretamente armamento, mas a Rússia não poderia fazer esta guerra sem o apoio da China senão ficaria isolada internacionalmente. Os países que apoiam a Rússia, se tivessem de escolher entre Rússia e China, salvo a Índia, provavelmente, seguiriam a China", explica a especialista. "A Ucrânia e a Rússia desde logo, mas também os EUA e a China têm a capacidade de dificultar muito a continuação da guerra", acrescenta.
Guerra para os EUA vem "na pior altura possível"
Diana Soller defende que o apoio norte-americano a Kiev não está neste momento em causa, até porque considera que as declarações de Biden não foram um repto a Putin: "O que ele disse, no meio de um discurso aquando da visita do presidente Emmanuel Macron, foi que ele próprio até estaria disposto a conversar com Putin mas que não via, neste momento, da parte do presidente russo, abertura para uma coisa dessas. No fundo, o que Joe Biden estava a querer salientar é que a Rússia não está disposta a negociar e obrigou Putin a dizer exatamente isso, que enquanto as condições russas não estiverem em cima da mesa não há negociações possíveis", recorda. "Os EUA apoiarão a Ucrânia até a Ucrânia entender que quer ser apoiada", sublinha.
A investigadora lembra ainda que, dias depois do encontro com Biden, quando o presidente francês admitiu que o Ocidente deve estar preparado para garantir algumas das condições que Putin quer ver satisfeitas, nomeadamente o veto à entrada da Ucrânia na NATO, foi alvo de duras críticas, "o que veio mostrar que ninguém está propriamente disposto a abandonar a Ucrânia nesta altura".
E se, para Diana Soller, o apoio a Kiev não está em causa neste momento, a investigadora não deixa de fazer a ressalva: "Na guerra as coisas vão-se transformando, às vezes mais rapidamente do que esperamos, e este é o tipo de guerra em que pode acontecer uma série de reviravoltas". A especialista em relações internacionais defende ainda que, "ao contrário do que muitas pessoas dizem", os EUA não desejaram esta guerra e o conflito vem mesmo "na pior altura possível", quando Washington queria concentrar atenções na China. "E ainda que os EUA mantenham a visão de que o Pacífico é efetivamente o centro das suas preocupações e a China é o seu maior inimigo, não há dúvida de que a guerra na Ucrânia está a tirar aos EUA muitos recursos que podiam ser usados noutras coisas", aponta Diana Soller. "Diz-se que a Ucrânia é uma proxy [procuração] dos EUA contra a Rússia. Não é! Foi a Rússia que invadiu a Ucrânia e os EUA fizeram a escolha de apoiar a Ucrânia nesta situação em que acharam que era necessário, por um lado, apoiar um Estado soberano com aspirações à democracia repondo a legalidade da Carta das Nações Unidas e, por outro lado, acharam que os parceiros europeus tinham de ser apoiados na defesa da Ucrânia", resume.
Ainda que uma Rússia enfraquecida não deixe de servir aos EUA, como disse já Lloyd Austin, o secretário da Defesa norte-americano, Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional e professor na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, também não acredita que os EUA tenham interesse em manter o conflito na Ucrânia ou vontade de o terminar para evitar a escalada do nuclear e humilhar Moscovo - mesmo que as forças de Putin pareçam estar a enfrentar dificuldades no campo de batalha e a ceder aos avanços da contraofensiva ucraniana para reconquistar território.
"O resultado das eleições intercalares foi melhor para Biden do que se esperava. Ele precisa do apoio parlamentar para continuação do apoio financeiro à Ucrânia e, portanto, não está pressionado para o cortar", esclarece o especialista, que acrescenta que, apesar da inflação e da crise energética, "a opinião pública e o Ocidente continuam a manter-se favoráveis" a Kiev.
"O inverno está à porta, os preços já estiveram mais altos, creio que vamos conseguir sobreviver a este inverno sem grandes convulsões sociais. A grande dúvida é o próximo inverno, como vamos conseguir aguentar um segundo inverno de conflito", refere Pereira Coutinho. "Mesmo na perspetiva russa, a população continua a manter apoio à guerra, apesar da mobilização", assinala. "A China e a Índia já demonstram alguma impaciência com o arrastar do conflito mas não tomaram nenhuma posição extremada. Vamos ver o que vai acontecer agora, com esta ideia europeia de estipular o preço máximo para o petróleo russo e que outros estados irão participar. Cerca de 40% do orçamento do Estado russo provém do petróleo, se as receitas diminuírem terão de diminuir o esforço de guerra", reflete o especialista.
Anexação de territórios "absurda" no Direito Internacional
Já um ultimato americano a Zelensky para abrir a porta a negociações com Moscovo, para Pereira Coutinho, parece estar fora de questão: mesmo que os EUA sejam o grande responsável pela manutenção da Ucrânia em combate desde o início, não existe uma proposta russa para conversações que seja "minimamente aceitável pela comunidade internacional" e o fornecimento de armas está a dar frutos, com os avanços de Kiev a obrigar ao recuo dos russos.
No fim de semana passado, Avril Haines, diretora dos serviços de informação dos EUA, admitiu mesmo que a guerra vai continuar em "ritmo lento": "Tanto os militares ucranianos quanto os russos tentarão reequipar-se e reabastecer para se preparar para uma contraofensiva após o inverno", referiu a responsável, sublinhando, porém, que há muitas dúvidas sobre se os russos estarão preparados para o fazer. "Vemos escassez de munição, baixa moral, problemas de abastecimento e de logística, toda uma série de preocupações que estão a enfrentar", declarou Haines, falando num fórum sobre Defesa na Califórnia.
Francisco Pereira Coutinho defende que a saída para a guerra terá de passar, necessariamente, por uma discussão territorial, porque "a decisão russa de anexar territórios em setembro passado, através de referendos que não foram reconhecidos pela comunidade internacional, alterou a situação no plano jurídico e político. "A Ucrânia não se senta para negociar sem que a Rússia desocupe os territórios que ocupou", refere o especialista. E a Rússia alega que anexou quatro províncias ucranianas por causa de uma "obrigação do presidente de garantir a integridade territorial da própria Rússia, pelo que a Ucrânia deve devolver-lhes os territórios que eles ocupam. Do ponto de vista do Direito Internacional, tudo isto é absurdo", assinala Pereira Coutinho, que indica que é necessário voltar atrás e discutir nomeadamente o estatuto da península da Crimeia.
"É claro que Zelensky está dependente do Ocidente para continuar o esforço militar e sabe que precisa de armas ainda mais sofisticadas para expulsar os russos do seu território. Mas creio que as aberturas à negociação de Biden, se apurarmos bem, existem desde o início", acrescenta o especialista. "Houve momentos em que se soube que não era altura para negociar, como quando se descobriu o massacre de Bucha", explica ainda.
Pereira Coutinho lembra também que a complexidade das negociações de paz entre Rússia e Ucrânia irá desde a definição dos territórios até à reconstrução: "É preciso ter em consideração quem vai pagar a reconstrução da Ucrânia, tem de ser assumida pela Rússia. E a Rússia só a vai assumir depois de ser derrotada no campo de batalha. Parece-me que a solução para a paz está ainda muito remota", conclui.