No dia 24 de fevereiro de 2022 deu-se início ao primeiro conflito militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Na Ucrânia ouviam-se sirenes e eram dadas ordens de recolha domiciliária à medida que as tropas russas iam ganhando terreno no país vizinho. Nos meses que se seguiram, ocorreram massacres e alegados crimes de guerra em cidades que, por cá, a maioria nunca teria ouvido falar, como Bucha, Kherson, Mikolayiv ou Mariupol. Apesar de muitos ucranianos terem recusado entregar o país à Rússia, escolhendo ficar na Ucrânia em pleno conflito militar, certo é que nas semanas seguintes se deu início a uma das maiores vagas de refugiados na história recente da Europa.
De acordo com o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), desde o início da guerra mais de cinco milhões de ucranianos escolheram ficar no país, mas fugiram para outras cidades ucranianas onde o conflito armado ainda era pouco visível. Por sua vez, 6,2 milhões optaram por deixar a Ucrânia para trás, procurando refúgio em países vizinhos, como a Polónia, Moldávia ou Roménia. Outros foram mais longe na Europa, chegando inclusive até Portugal mais de 50 mil.
Os que chegaram às terras lusas receberam apoio institucional para a documentação e, em Lisboa, a Associação de Ucranianos em Portugal (AUP), que é desde de 2003 “uma ilha ucraniana” no país, de acordo com o voluntário Yuriy Kondra, também abriu as portas. Deu assistência no preenchimento de documentação, formulários, e apoio a nível da habitação, através da criação de um programa com o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU).
“Desde o dia 25 de fevereiro [de 2022] que estamos a prestar apoio à Ucrânia. Logo no início de março, começaram a chegar os primeiros refugiados”, conta Yuriy Kondra, que trabalha na associação como voluntário desde 2007, depois de ter imigrado para Portugal em 1999.
Segundo o balanço do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), desde o início da guerra e até junho de 2023, chegaram a Portugal, de carro e de avião, mais de 56.528 refugiados ucranianos e estrangeiros que residiam na Ucrânia, valor que embora significativo, tem vindo a diminuir nos últimos meses. No início de maio, o SEF avançou à Lusa que cerca de 2.000 ucranianos tinham pedido o cancelamento dos pedidos de proteção temporária. Na altura, totalizavam 58.191.
Ademais dos pedidos de cancelamentos dos títulos, há também ucranianos que não estão a renovar as proteções temporárias, que inicialmente tinham a duração de um ano e entretanto caducaram.
Além dos títulos de proteção temporária, à chegada de Portugal, o SEF atribuiu-os também de forma automática um número de identificação fiscal (NIF), número de identificação da Segurança Social (NISS) e número de utente do Serviço Nacional de Saúde (SNS). “Foi tudo muito mais facilitado para este tipo de refugiados. Seria bom que isto fosse também transferido para todos os outros migrantes que aqui chegam”, defende o coordenador.
A quota de refugiados é preenchida, na sua grande maioria por mulheres (33.949), muitas acompanhadas pelos filhos menores de idade, ou pelas mães, sogras, ou outras familiares, uma vez que a Lei Marcial obriga a que os homens ucranianos entre os 18 e os 60 anos fiquem no país. O número de refugiados ucranianos masculinos situou-se, até junho, nos 22.579.
O perfil destas imigrantes diferencia-se da maioria dos que chegam a Portugal com origem em países do Sul da Ásia ou do Norte de África. “Trabalhamos com outras associações que apoiam migrantes, em rede, e existe a noção de que este não é o típico migrante que chega a Portugal”, conta Afonso Nogueira, coordenador da AUP, aludindo ao estatuto de refugiados destes imigrantes.
A associação caracteriza uma grande parte das refugiadas que chegaram a Portugal, como sendo de classe média e com formação numa área especializada. Médicoa, engenheiras, gestoras, economistas ou profissionais de áreas científicas, como investigadoras e engenheiras químicos — “profissões das quais Portugal poderia beneficiar”, considera o coordenador da AUP, mas as dificuldades nas transferências de competências e equivalências, a falta de oportunidades especializadas e as barreiras linguísticas impedem que sejam aproveitadas.
“Não se tratam de migrantes por motivos económicos. Enquanto as vagas anteriores de migrantes estavam abertas a qualquer tipo de trabalho, esta vaga tem como objetivo manter as profissões que tinham na Ucrânia, ou até mesmo eventualmente regressar ao país de origem. Têm mais expectativas e dado o trauma que tiveram, estão menos abertos a começar por baixo”, explica Afonso Nogueira.
Anastasiia Pshenychna, 32 anos | Jornalista
Há muita gente, nesta altura do campeonato, que tem muito mais interesse em cá ficar. Tiveram que fazer um reset à sua vida e, portanto, mesmo que possam voltar, não vão ter um emprego sustentável do dia para a noite. Já aceitaram que vão ter que construir um caminho aqui. E Portugal pode beneficiar disso se lhes forem dadas oportunidades diferenciadas”.
Nesse sentido, a AUP organizou dezenas feiras de emprego e parcerias institucionais com empresas, ao longo de 2022, tendo como objetivo não só ajudar estas instituições a preencher vagas mais especializadas, como também apoiar estas refugiadas a ter rendimentos numa altura em que regressar ao país da origem, em segurança, ainda não é uma possibilidade.
Mas o IEFP também procurou integrar estas refugiadas através de oportunidades de emprego. No âmbito da Operação Refugiados Ucrânia, foi criado pela entidade um mecanismo de acolhimento e integração social e profissional destes cidadãos, num trabalho conjunto com as empresas que manifestaram o interesse e disponibilidade para a contratação destes profissionais. Em abril de 2022, dois meses depois do início da guerra na Ucrânia, as vagas de emprego em Portugal chegaram a ascender às 22 mil, um pouco por todo o país, com um salário médio de 884 euros brutos por mês.
Afonso Nogueira recorda que, entre março e julho de 2022, “houve uma avalanche de ofertas”, porém, a falta de “disponibilidade emocional” impedia que estes refugiados estivessem “preparados para trabalhar”. “Só a partir de setembro é que começaram a ‘cair fichas’”, conta. Nessa altura, as famílias ucranianas deslocadas em Portugal já se viam “obrigadas” a pensar em constituir uma vida longe de casa, começando, dessa forma, a procurar matricular os filhos em escolas, procurar residência permanente e emprego.
“Deixou de ser encarada como uma situação temporária. Aperceberam-se de que iam ter que começar a criar raízes em Portugal. E, nessa altura, as ofertas já se tinham esvaído”, explica.
Até agosto de 2023, apenas 10.500 dos 56 mil cidadãos ucranianos refugiados residentes em território nacional tinham celebrado contratos de trabalho em Portugal através do IEFP, encontrando-se atualmente ativas 3.278 ofertas de emprego para o setor do turismo e restauração, tecnologias de informação, construção civil, setor social e transporte. A maioria (634) está localizada em Lisboa, Portalegre (446), Faro (350) e Coimbra (267).
Nadiia Nikitina, 43 anos | Engenheira química
“Trabalhei a minha vida toda nesta área, em laboratórios”, conta-nos Nadiia, engenheira química há mais 20 anos, que preferiu não dar a cara nesta reportagem. No final de março de 2022, chegou a Portugal juntamente com o filho de 16 anos, de Severodonetsk, na região de Lugansk depois de ter percorrido cerca de quatro mil quilómetros de carro em seis dias. “Nunca tinha feito um trajeto tão longo”, admite. Hoje, apesar das circunstâncias que a forçaram a abandonar o país sem o marido, sente-se aliviada por ter saído da Ucrânia e encara com bons olhos a perspetiva de recomeçar a vida em Portugal. “A minha casa está destruída, não sei como seria o meu futuro na Ucrânia se algum dia regressasse. Gostava de voltar, claro, mas se a cidade estiver sob o controlo dos russos, recuso-me”, sublinha, admitindo que antes de abandonar o país, mesmo depois de ter passado dias protegida com a família na cave da sua casa, acreditava que “a guerra ia ser de pouca dura”. Apesar de ter passado mais de duas décadas em laboratórios e a fazer trabalho de investigação, hoje, graças à ajuda de outros ucranianos residentes em Portugal, trabalha num escritório como assistente administrativa. “É um trabalho fora do comum para mim. No início estava muito nervosa por começar”, recorda, detalhando que enviou vários currículos para empresas e laboratórios com vagas que se adequam ao seu perfil mas que, “até hoje, está à espera de resposta”. “Percebo que o problema esteja do meu lado”, admite numa conversa que preferiu ter em inglês, uma vez que o domínio do português ainda está em andamento. Teve um curso de português durante o verão de 2022, através do IEFP, certificando-se no nível A1, e desloca-se duas vezes por semana à AUP para continuar essa formação. “No meu trabalho, quando ligam para o escritório, esforço-me muito para falar português”, garante. Embora esteja atualmente empregada, a expectativa da engenheira química de 43 anos é de continuar a tentar encontrar emprego no setor. “Quero ser útil para Portugal, e retribuir a ajuda que me foi dada. Quero agradecer”, diz, admitindo estar a ponderar ficar em Portugal mesmo se não encontrar um emprego no ramo no qual se especializou.
Fora da rede IEFP, também se procurou agilizar a integração destes refugiados. Uma das empresas que trabalhou de forma autónoma nessa integração foi a Sonae, que indica ao Capital Verde já ter “efetivado dezenas de contratos de trabalho” com refugiados ucranianos, no âmbito do programa Sonae for Ukraine, fosse através da criação de uma plataforma bilingue, em ucraniano e inglês, de forma a permitir candidaturas simplificadas, ou de ações de recrutamento realizadas um pouco por todo o país.
“Este programa procura responder às várias necessidades daqueles que decidiram fugir da guerra e refugiar-se em Portugal, sendo uma das áreas prioritárias o emprego”, indica Teresa Menezes, people & leadership manager da Sonae.
Maria Shyrkova, 31 anos | Economista
Mas nem todas as oportunidades de trabalho permitem o recurso ao inglês, e não havendo um calendário que permita perceber quando será possível regressar à Ucrânia, o domínio da língua portuguesa é essencial para viver em Portugal.
Em parceria com a Speak Social, a AUP desenvolveu cursos de português na ótica da educação não formal, cujas aulas contam, semanalmente, com dezenas de cidadãos ucranianos que procuram melhorar o domínio da língua lusa. Porém, a falta de certificação deste curso impede que seja validada a capacidade linguística destes refugiados. “O IEFP [Instituto do Emprego e Formação Profissional] ainda não efetivou connosco a organização de cursos específicos para ucranianos”, conta o coordenador da AUP.
Da parte do IEFP, mais de 7.300 refugiados ucranianos participaram em cursos de português para estrangeiros até agosto de 2023, e a maioria já obteve os seus certificados do nível mais básico. Além disso, indica o IEFP, mais de 460 refugiados foram também integrados em outras ações de formação profissional.
Iulia Simankova, 31 anos | Especialista de marketing
Refugiados são oportunidade
Num estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), publicado em 2016, as conclusões sobre o impacto dos refugiados numa economia resumem-se no título: “Os refugiados não são um fardo, são uma oportunidade”.
No documento, são elencadas uma lista de benefícios económicos que os refugiados podem trazer ao país de abrigo, quer enquanto trabalhadores, empreendedores, empresários, contribuintes, consumidores ou investidores. Nesse sentido, são listadas um conjunto de recomendações, entre elas, a nível da educação e apuramento de competências.
“Os esforços [dos refugiados] podem ajudar a criar empregos, aumentar a produtividade e os salários dos trabalhadores locais, elevar o retorno do capital, estimular o comércio internacional e o investimento, e impulsionar a inovação, o empreendedorismo e o crescimento”, defende o autor do estudo, Philippe Legrain.
Refugiados são oportunidade
Num estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), publicado em 2016, as conclusões sobre o impacto dos refugiados numa economia resumem-se no título: “Os refugiados não são um fardo, são uma oportunidade”.
No documento, são elencadas uma lista de benefícios económicos que os refugiados podem trazer ao país de abrigo, quer enquanto trabalhadores, empreendedores, empresários, contribuintes, consumidores ou investidores. Nesse sentido, são listadas um conjunto de recomendações, entre elas, a nível da educação e apuramento de competências.
“Os esforços [dos refugiados] podem ajudar a criar empregos, aumentar a produtividade e os salários dos trabalhadores locais, elevar o retorno do capital, estimular o comércio internacional e o investimento, e impulsionar a inovação, o empreendedorismo e o crescimento”, defende o autor do estudo, Philippe Legrain.
Esta reportagem integra a segunda edição do anuário do Capital Verde, Yearbook, já disponível. Versão atualizada com novos dados do Serviços de Estrangeiros e Fronteiras e Instituto do Emprego e Formação Profissional.