Governo esperava invasão mas não "erro tão grave" - TVI

Governo esperava invasão mas não "erro tão grave"

  • Agência Lusa
  • DCT
  • 24 fev 2023, 09:29
Ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho (MIGUEL A. LOPES/LUSA)

Na reconstituição da daquele dia, João Gomes Cravinho, na altura ministro da Defesa, recordou que se manteve “em estreita comunicação com o ministro Augusto Santos Silva [então chefe da diplomacia], com o primeiro-ministro, e com o Presidente da República, e que, apesar dos indícios de uma invasão iminente, esta foi recebida com “um sentimento de incredulidade” pelas autoridades portuguesas

O Governo português esperava a invasão da Ucrânia, quando as forças russas iniciaram o ataque há um ano, mas era incapaz de entender “um erro tão grave”, tal como prever a incapacidade de Moscovo de atingir os seus objetivos.

Em entrevista à agência Lusa a propósito do aniversário da invasão da Ucrânia, iniciada a 24 de fevereiro do ano passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, João Gomes Cravinho, afirmou que os acontecimentos daquela madrugada não foram totalmente uma surpresa, uma vez que, “ao longo de vários meses e, com cada vez maior intensidade”, se avolumavam os sinais desta agressão.

Na reconstituição da daquele dia, João Gomes Cravinho, na altura ministro da Defesa, recordou que se manteve “em estreita comunicação com o ministro Augusto Santos Silva [então chefe da diplomacia], com o primeiro-ministro, e com o Presidente da República, e que, apesar dos indícios de uma invasão iminente, esta foi recebida com “um sentimento de incredulidade” pelas autoridades portuguesas.

Faltava o raciocínio, faltava compreender por que razão é que a Rússia estava a cometer um erro tão grave”, comentou Cravinho, adicionando que, tal como outros observadores e, no plano político nacional, “havia dificuldade em conciliar os sinais que se estava a observar com uma interpretação racional daquilo que era a atitude russa”.

Como primeira reação, as autoridades de Lisboa foi acautelar a segurança dos cidadãos portugueses, havendo já um plano e um mapeamento dos locais onde se encontravam, tendo sido enviados militares e a adida militar na Turquia para apoiar a retirada.

Nesses primeiros momentos da invasão, face ao poderio militar das forças de Moscovo, o chefe da diplomacia portuguesa reconheceu “havia a ideia de que muito provavelmente a Ucrânia capitularia e os russos teriam capacidade para tomar Kiev e os centros principais de decisão do país”.

Mas, no plano político, “não havia claramente um plano para diálogo com a Rússia, depois da captura de Kiev e instalação de um governo 'fantoche', que era o plano de [Vladimir] Putin”, Presidente russo, num período de “muito pessimismo” e de incerteza.

“De qualquer maneira, do lado ocidental, aquilo que havia do lado da NATO, era a convicção de que era importante impedir que, através da força das armas, Putin tivesse sucesso na reorganização do espaço de segurança na Europa, na Europa oriental”, recordou, adicionando que os acontecimentos posteriores não confirmaram a superioridade russa nem a conquista da capital ucraniana em poucos dias, como o Kremlin ameaçava.

E essa, para o ministro dos Negócios Estrangeiros, “foi uma outra surpresa”, no sentido de que “a capacidade militar dos russos, afinal, era muito inferior àquilo que imaginava e àquilo que o Presidente Putin imaginava”.

O líder russo – “hoje percebemo-lo -, foi alvo de informação enganosa por parte dos seus próprios serviços militares sobre a sua capacidade“ e o chefe do Estado Maior das forças armadas russas, general [Valery] Gerasimov, que era considerado como “um grande génio militar”, acabou com “uma reputação que não se parece nada com isso”.

Cerca de um mês após a invasão, as forças russas não romperam as linhas de defesa de Kiev e abandonaram as imediações da capital para se concentrarem nas frentes do sul do país, onde perderam território entretanto conquistado, e no leste, palco de violentos combates nos últimos meses, com poucos ganhos e à custa de pesadas baixas de ambos os lados.

Este é outro “ponto muito interessante que vale a pena explorar”, segundo João Gomes Cravinho, questionando: “Por que é que se sobrestimou a capacidade russa? O que é que aconteceu aos investimentos que foram feitos nas forças armadas russas? Será que chegaram ao seu destino, será que foram desviados para outros propósitos?”.

Europa ganhou relevância no mundo e Portugal tem um papel

O ministro dos Negócios Estrangeiros português considera que o fortalecimento da NATO e da União Europeia, em resultado da invasão russa da Ucrânia, conduziu também ao aumento da relevância da Europa no mundo, no qual Portugal tem um papel.

João Gomes Cravinho disse que, após a resposta dos aliados europeus de Kiev e dos Estados Unidos, “é preciso um diálogo forte com outras partes do mundo” por todas as razões.

Primeiro, porque temos hoje uma relevância que não é igual àquela que havia no passado, uma relevância muito superior e, segundo, porque o que se está a passar na Ucrânia tem a ver com o resto do mundo, não tem só a ver com uma redefinição de fronteiras no leste europeu, tem a ver com a tentativa russa de criar uma nova ordem mundial, que seria (também para Portugal) extremamente danosa”, afirmou.

Comentando a evolução geopolítica no último ano, João Gomes Cravinho apontou “elementos de paradoxo”, sublinhando que a NATO “ganhou uma nova intensidade, e um enorme espírito de união”.

A União Europeia, por sua vez, “revelou ser capaz de tomar decisões muitíssimo mais ousadas do que alguém imaginaria há um ano e pouco atrás e, portanto, de se afirmar internacionalmente como um polo de referência num mundo multipolar”.

Mas outro “elemento de paradoxo” essencial, defendeu, é que a atenção, sobretudo da União Europeia, se concentrou no apoio à Ucrânia e defesa do seu território contra a Rússia, o que para o ministro é natural. Mas agora é preciso transformar “esse papel de poder num quadro multipolar num palco mais amplo, que é o palco mundial”.

E Portugal tem estado “muito empenhado” nesse alargamento de influência, levando a mensagem juntos dos seus principais interlocutores, afirmou o chefe da diplomacia portuguesa, que na quinta-feira esteve em Brasília na preparação da Cimeira Luso-Brasileira, e esperando que o próximo encontro entre a União Europeia e os países da América Latina e Caraíbas seja um sucesso também a este nível, recordando ainda a recente presença do primeiro-ministro português, António Costa, na Cimeira da União Africana, em Adis Abeba, tal como do presidente do Conselho Europeu, Charles Michel.

Portugal “tem estado muito bem neste processo”, prosseguiu o ministro, manifestando, por um lado, “uma grande solidariedade, uma grande generosidade nos vários planos de relacionamento com a Ucrânia”, no plano do apoio político, militar, financeiro e do humanitário, mas tem demonstrado ser um país capaz de fazer pontes com outras partes do mundo”, quando algumas partes da Europa têm estado quase exclusivamente viradas para a Ucrânia”.

“O nosso apelo tem sido consistentemente: ‘Não se esqueçam do relacionamento com América Latina, não se esqueçam do relacionamento com África e com os países asiáticos e temos desempenhado essa função”, assinalou, relevando igualmente a proximidade de Lisboa com os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Esse relacionamento lusófono tem conduzido a “um diálogo constante “num quadro em que o grande tema mundial é a invasão da Ucrânia pela Rússia”, destacou, acrescentando: “É evidente que temos vindo a falar sobre essa questão, a comparar as nossas ideias e as nossas posições”.

“Há uma maioria de países que está muito próxima de Portugal nas suas votações nas Nações Unidas”

Apesar de divergências de posições dentro deste espaço político, em relação à invasão russa, atendendo a que são “países distintos, diferentes, com trajetórias históricas também diferentes”, João Gomes Cravinho assinalou que “há uma maioria de países que está muito próxima de Portugal nas suas votações nas Nações Unidas”.

Isso não significa que Portugal tenha “homogeneidade na CPLP”, mas há um processo de diálogo em curso. “Eu não quero aqui dizer que eles tomam decisões com base naquilo que Portugal pensa, não é de todo o caso, eles tomam decisões com base naquilo que é a sua análise da situação, mas nós falamos com eles com assiduidade sobre esta realidade”, referiu.

Voltando ao espaço europeu, João Gomes Cravinho também abordou a perspetiva de alargamento da União Europeia, com os pedidos de adesão recentes da Ucrânia e da Geórgia, a que somaram a outros já existentes de países dos Balcãs ocidentais.

O alargamento, defendeu, não deve ser feito à custa do afrouxamento dos critérios de adesão: “A nossa convicção é de que não devemos defraudar as expectativas. Enfraquece a União Europeia dizer ‘sim, senhor, vocês são candidatos, vocês vão aderir’, mas depois não progredir nesse sentido".

Por outro lado, sendo favorável a “um diálogo honesto, sincero, aberto com esses países, que fazem parte da nossa Europa, sem qualquer dúvida”, o chefe da diplomacia portuguesa observou que um alargamento implicará alterações em termos dos mecanismos, que “são lentos e pesados” e, ao passar de 27 para 35 países, é preciso “olhar para o funcionamento das instituições”.

No entanto, apontou, “não se pode ignorar que a escala da Ucrânia é completamente diferente”, em comparação por exemplo com Montenegro, em que um país tem mais de 40 milhões de habitantes, além de ser um grande produtor agrícola, e outro meio milhão.

“Todas as características da Ucrânia indicam que nós temos de olhar muito seriamente, não só para os mecanismos de tomada de decisão, mas também para elementos fundamentais do funcionamento da União Europeia”, insistiu Cravinho, indicando o caso da Política Agrícola Comum “antes de poder abrir as portas” à Ucrânia: “Se estamos disponíveis para ter a Ucrânia como país candidato, devemos também estar disponíveis para refletir na nossa forma de pensamento, porque uma coisa implica a outra”.

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