Se o último capítulo de Yevgeny Prigozhin foi de facto escrito, ele viveu como aparentemente morreu: de forma violenta, extravagante e no centro de uma intriga.
Os factos ainda só agora começam a ser claros. Na tarde de quarta-feira, um jato executivo Embraer Legacy registado em nome do chefe mercenário Wagner caiu do céu, despenhando-se a sul da aldeia de Kuzhenkinskoe, na região russa de Tver. Todos os 10 passageiros morreram.
A agência estatal russa de aviação disse que Prigozhin estava a bordo.
Mas não demorou muito para que as teorias começassem a circular pela Internet. Terá o avião sido abatido? Ou, talvez, terá sido colocada uma bomba a bordo? E será que Prigozhin estava mesmo morto? O arqui-propagandista russo Vladimir Solovyov parecia sugerir isso mesmo, dando a entender, numa declaração no Telegram, que as notícias sobre a morte do oligarca eram prematuras.
Os ucranianos e os seus aliados, insinuou Solovyov, estavam a "espalhar uma mensagem falsa sobre a morte de Yevgeny Prigozhin", com base numa reportagem do Rossiya-24, um canal de televisão estatal russo.
Solovyov, que é bem conhecido por jogar rápido e ser flexível com os factos, rapidamente recuou. Mas as circunstâncias do acidente, bem como a confrontação aberta de Prigozhin com o Kremlin, em junho, pareciam tiradas das páginas de um filme, um thriller de segunda categoria.
Afinal, nos dias que se seguiram a uma marcha abortada das suas tropas sobre Moscovo, a televisão estatal russa revelou a predileção de Prigozhin por perucas, disfarces e múltiplos passaportes, todos encontrados numa das suas residências de estilo gangster.
E não teria sido completamente fora do normal para Prigozhin - que dirigia as famosas "quintas de trolls" envolvidas na intromissão nas eleições presidenciais de 2016 - trollar o mundo encenando a sua morte. Afinal de contas, os meios de investigação russos relataram que o chefe do Grupo Wagner aparentemente contratara pelo menos um duplo.
Coisas lúgubres, claro, mas talvez não mais lúgubres do que as próprias actuações de Prigozhin. Afinal de contas, foi este homem que defendeu a necessidade de melhores recursos para os seus combatentes na Ucrânia, publicando imagens horríveis dos seus corpos mutilados. E as suas tiradas com palavrões contra as altas patentes militares russas, que acusou de serem "gatos gordos", selaram a sua reputação como uma espécie de vilão do elenco central.
Mas esta especulação deixa de lado a questão principal. Prigozhin, para todos os efeitos, já não é uma força na política russa. Batya - o apelido paternal que alguns dos seus homens usavam para ele - abandonou o edifício.
Quem tem o motivo?
O Comité de Investigação, o principal órgão policial da Rússia, abriu um inquérito criminal sobre o acidente. A investigação está a ser conduzida ao abrigo do artigo 263º do Código Penal da Federação Russa - violação das regras de segurança da circulação e operação dos transportes aéreos.
O facto de ser o Comité de Investigação a "gerir o espetáculo" não é um desenvolvimento promissor, pelo menos em termos de transparência na aviação internacional. Afinal de contas, a agência de aplicação da lei tem estado na linha da frente dos esforços para processar os opositores do Presidente russo, Vladimir Putin, incluindo o líder da oposição, Alexey Navalny. Esperar um relatório imparcial do Comité de Investigação é o mesmo que esperar que um apresentador da televisão estatal russa deixe de ouvir os pontos de vista do Kremlin.
Independentemente de sabermos ou não a verdadeira causa do acidente, a investigação atualmente em curso aponta para uma questão importante: quem teria o motivo e os meios para se livrar de Prigozhin e dos seus principais tenentes?
A resposta fácil - mas não a única - é, para muitos observadores, Putin.
A queda do avião de Prigozhin ocorreu cerca de dois meses depois de Prigozhin e Wagner terem encenado a sua insurreição, o maior desafio ao regime de Putin em mais de duas décadas.
Poucos dias depois do motim, um Putin furioso deixou claro que considerava as acções de Wagner como uma forma de traição. Embora não tenha mencionado Prigozhin pelo nome, acusou "os organizadores da rebelião" de traírem a própria Rússia.
É uma acusação séria, mas nas semanas que se seguiram à insurreição do Grupo Wagner não houve represálias rápidas por parte do Kremlin.
Os combatentes Wagner foram autorizados a deslocar-se para a vizinha Bielorrússia, ao abrigo de um acordo supostamente estabelecido pelo Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko. E Prigozhin - apesar de ter mantido um perfil mais discreto - continuou a aparecer em público, cumprimentando um funcionário africano à margem de uma cimeira Rússia-África em São Petersburgo e fazendo declarações sobre o golpe no Níger.
Mas Prigozhin, apesar de toda a sua fanfarronice, devia ter-se lembrado de que a vingança é um prato que se serve pelo menos morno, independentemente do número de inimigos que tenha.
"Tempo de problemas"
Se - e isto ainda é um grande "se" - o Estado russo teve alguma coisa a ver com a queda do Embraer, isso pode aumentar a sensação de que a Rússia está a entrar num Смутное время (Tempo de Problemas), como alguns comentadores sugeriram obscuramente durante o motim de Wagner. Na Rússia, esta expressão refere-se a um período de ilegalidade e a uma violenta crise de sucessão no início do século XVII.
No mínimo, o acidente suscita as memórias desagradáveis da anárquica década de 1990, quando os russos sofreram com uma transição violenta e mal feita para uma economia de mercado e os assassinatos políticos eram notícia de rotina.
Sob Putin, a defenestração tornou-se uma espécie de piada mórbida, devido à tendência dos opositores do regime para caírem de janelas. Será que se trata de uma defenestração por outros meios?
As misteriosas quedas de aviões também têm sido um padrão em alguns casos de grande visibilidade na política russa.
O jornalista de investigação russo Artem Borovik morreu em 2000, pouco depois de o seu avião para Kiev se ter despenhado após a descolagem do aeroporto de Sheremetyevo, em Moscovo. E o General Alexander Lebed - um antigo candidato presidencial e governador regional - morreu em 2002 num acidente de helicóptero, retirando da cena política um candidato proeminente.
Por isso, a questão do cui bono - quem beneficia com a morte do chefe Wagner - estará provavelmente na mente dos observadores políticos.
Numa análise perspicaz após a insurreição falhada do Grupo Wagner, Vanda Felbab-Brown, da Brookings Institution, observou que poderia ser útil para o Kremlin reestruturar efetivamente algumas das actividades de Prigozhin - ou colocá-las sob nova gestão.
"Em vez de liquidar completamente a Wagner em África e no Médio Oriente, os serviços secretos russos vão purgar as estruturas da Wagner para enfraquecer as afinidades com Prigozhin e reforçar os laços com o Kremlin", escreveu.
"Uma tal reestruturação imitaria a aparente preferência do presidente russo Vladimir Putin em relação ao Grupo Wagner na Rússia e na Ucrânia - colocando alguns quadros sob a alçada dos militares russos, desarmando outros e permitindo que outros ainda operem no formato semi-independente existente, mas sob uma nova liderança e com o poder de Prigozhin minimizado."
Portanto, parafraseando, na perspetiva do Kremlin: se Prigozhin está morto, vivam os novos Prigozhins.