O que significa para a fome mundial a retirada da Rússia do acordo que permite a exportação de cereais - TVI

O que significa para a fome mundial a retirada da Rússia do acordo que permite a exportação de cereais

  • CNN
  • Ivana Kottasová
  • 31 out 2022, 22:00
O navio Razoni, com bandeira da Serra Leoa, saiu esta segunda-feira do porto de Odessa com 26 mil toneladas de milho (Foto: AP)

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A decisão da Rússia de se retirar de um acordo que garantisse uma passagem segura para os navios que fariam o transporte de exportações vitais de cereais da Ucrânia suscitou "sérias preocupações" quanto ao fornecimento alimentar global, numa altura em que o mundo já enfrenta uma crescente crise de fome.

Organizações humanitárias globais, a União Europeia, a NATO e as Nações Unidas apelaram a Moscovo para que reverta a decisão, alertando para que qualquer declínio nas exportações provenientes da Ucrânia poderá ter consequências potencialmente mortais.

Eis o que sabemos até agora.

Como funciona o negócio dos cereais?

O acordo entre a Rússia e a Ucrânia foi mediado em julho pelas Nações Unidas e pela Turquia.

Instaurou um procedimento que garantia a segurança dos navios que transportavam cereais, fertilizantes e outros alimentos da Ucrânia através de um corredor humanitário no Mar Negro. No âmbito do acordo, todos os navios que chegavam de e para os portos da Ucrânia eram inspecionados e monitorizados por equipas internacionais compostas por funcionários da Rússia, Ucrânia, Turquia e ONU.

Depois de a Rússia ter anunciado que se retirava do acordo "por tempo indeterminado", as restantes partes anunciaram que iriam continuar com o programa e levariam a cabo as inspeções sem a Rússia.

O Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, disse na segunda-feira que Ancara estava determinada a tentar manter a iniciativa viva. "Um terço do trigo do mundo é produzido pela Rússia e pela Ucrânia. Vocês são as testemunhas mais próximas dos nossos esforços para entregar este trigo aos países que enfrentam a ameaça da fome," afirmou Erdoğan, num evento em Istambul.

No entanto, o Kremlin emitiu um alerta contra a continuação do acordo. Questionado sobre se era possível manter os carregamentos de cereais sem a participação da Rússia, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse esta segunda-feira aos jornalistas que, sem a Rússia garantir a segurança da navegação, "tal acordo dificilmente é viável".

O que está a acontecer agora?

Apesar da decisão da Rússia de abandonar o acordo, Kiev afirmou que 12 navios conseguiram deixar os portos do Mar Negro da Ucrânia a partir da manhã de segunda-feira.

Estes incluíam o Ikaria Angel, um navio fretado pelo Programa Alimentar Mundial e carregado com 30 mil toneladas de trigo destinado ao Corno de África, que está atualmente a atravessar uma grande crise alimentar.

Os movimentos dos navios na segunda-feira sugerem que, embora a Rússia tenha dito que iria retirar-se do acordo, não voltou a impor - até agora - um bloqueio total aos portos do Mar Negro na Ucrânia.

No domingo, a ONU disse que foi implementado um plano para permitir que 16 embarcações se desloquem na segunda-feira – 12 dos portos ucranianos e quatro na direção oposta. Acrescentou que havia 21 embarcações dentro ou perto dos portos ucranianos com uma capacidade de mais de 700 mil toneladas que foram afetadas pelo anúncio.

No entanto, as autoridades ucranianas avisaram que dezenas de navios poderiam ser impedidos de se moverem.

Porque é o negócio dos cereais tão importante?

A Ucrânia desempenha um papel fundamental no mercado alimentar global. De acordo com a ONU, a Ucrânia normalmente fornece ao mundo cerca de 45 milhões de toneladas de cereais por ano. Está entre os cinco principais exportadores globais de cevada, milho e trigo. É também, de longe, o maior exportador de óleo de girassol, representando 46% das exportações mundiais.

Em tempos normais, a Ucrânia exportaria cerca de três quartos dos cereais que produz. Cerca de 90% destas exportações foram previamente expedidas por mar a partir dos portos do Mar Negro da Ucrânia, de acordo com dados da Comissão Europeia.

Quando a Rússia iniciou a invasão à Ucrânia, no final de fevereiro, impôs efetivamente um bloqueio aos navios que saíam dos portos da Ucrânia. O impacto da guerra nos mercados alimentares globais foi iminente e extremamente doloroso, sobretudo porque a Ucrânia é um importante fornecedor de cereais para o Programa Alimentar Mundial. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, um organismo da ONU, disse que cerca de 47 milhões de pessoas podem ser empurradas para uma "insegurança alimentar aguda" devido à guerra.

O acordo do Mar Negro proporcionou o tão necessário alívio. A ONU estima que a redução dos preços dos alimentos básicos em resultado do acordo impediu indiretamente cerca de 100 milhões de pessoas de caírem na pobreza extrema.

Acrescentou que, desde segunda-feira, mais de 9,5 milhões de toneladas métricas de géneros alimentícios tinham sido exportadas ao abrigo do acordo desde que este entrou em vigor, no verão.

Shashwat Saraf, diretor de emergência da África Oriental no Comité Internacional de Resgate, disse que um colapso do acordo "atingiria aqueles que estão mais ameaçados pela fome".

"O bloqueio renovado está a suscitar sérias preocupações sobre a crescente crise global de fome, especialmente na África Oriental, onde mais de 20 milhões de pessoas estão a passar fome, ou em locais como o Iémen, que depende da Rússia e da Ucrânia para quase metade da sua importação de trigo e onde mais de 19 milhões de pessoas precisam de ajuda alimentar", disse.

"Qualquer tentativa de minar o acordo é um ataque a famílias com fome em todo o mundo, cujas vidas e meios de subsistência dependem desta iniciativa", disse no domingo a administradora da USAID, Samantha Power.

Na sexta-feira, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tinha apelado a todas as partes para renovarem o acordo que permite a exportação de cereais, dizendo: "Se os alimentos e fertilizantes não chegarem agora aos mercados globais, os agricultores não terão fertilizantes no momento certo e a um preço acessível, no início da época de plantação, pondo em risco as culturas em todas as regiões do mundo em 2023 e 2024, com efeitos dramáticos na produção de alimentos e nos preços dos alimentos em todo o mundo. A atual crise de acessibilidade transformar-se-á numa crise de disponibilidade."

Porque está a Rússia a retirar-se agora?

Segundo o acordo original, o pacto deveria estar em vigor por pelo menos 120 dias e estava previsto para ser renovado em meados de novembro.

No sábado, o Ministério da Defesa da Rússia disse que os russos iriam abandonar o acordo devido aos ataques com drones à cidade de Sevastopol, na Crimeia. A Rússia afirmou que os seus sistemas de defesa aérea "repeliram ataques com drones" à cidade no sábado. Alegou que um dos drones poderia ter sido lançado de um navio civil que transportava cereais. A CNN não consegue verificar com independência o relato da Rússia.

A Ucrânia não confirmou que as suas forças atacaram o porto e a extensão dos danos causados aos navios navais russos ainda não é clara.

Moscovo culpou a Ucrânia pelos ataques, mas também acusou o Reino Unido de ajudar Kiev a planeá-los. A Grã-Bretanha, por sua vez, acusou Moscovo de "vender falsas alegações de uma escala épica". Andrii Yermak, o chefe de gabinete do presidente ucraniano, acusou a Rússia de inventar "ataques terroristas fictícios" nas suas próprias instalações na Crimeia e acusou Moscovo de "chantagem".

Há muito que a Rússia ameaçava retirar-se do acordo, depois de se queixar anteriormente de que o acordo não tinha produzido os benefícios prometidos para as exportações russas de cereais e fertilizantes. Como parte do acordo, a ONU e a Rússia assinaram um memorando de entendimento destinado a proteger as exportações russas de fertilizantes e outros produtos agrícolas dos impactos das sanções ocidentais.

No entanto, a Rússia alegou na semana passada que as exportações ainda estavam a ser obstruídas. Embora a UE e os EUA tenham concordado em isentar estas exportações dos seus embargos, as sanções às instituições financeiras e as proibições aos navios ligados à Rússia significam que a capacidade da Rússia para exportar esses produtos continua limitada.

O Presidente russo, Vladimir Putin, ameaçou na semana passada restringir a exportação da Ucrânia para a Europa, alegando falsamente que os países em desenvolvimento não estavam a receber a sua quota-parte dos cereais.

Em declarações à CNN, a ONU disse que, no âmbito da Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, cerca de 30% dos "cereais e outros géneros alimentícios" chegaram a países de baixo e médio-baixo rendimento.

Houve alguma reação imediata?

Os preços do trigo e do milho nos mercados globais de mercadorias subiram na segunda-feira. A cotação do trigo na Bolsa de Chicago subiu 5,5% na segunda-feira para 8,74 dólares o alqueire. A cotação do milho subiu 2,3% para 6,96 dólares o alqueire. O comércio de futuros de óleo de palma na Malásia também subiu, relatou a Reuters, devido aos receios do potencial impacto nas exportações de óleo de girassol ucraniano.

Hanna Ziady, Julia Horowitz, Anna Chernova, Tim Lister, Isil Sariyuce, Sarah Fortinsky, Sharon Braithwaite, Jorge Engels, Uliana Pavlova, Sugam Pokharel, Dennis Lapin, Katharina Krebs, Jo Shelley e Victoria Butenko contribuíram para este artigo.

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