O alerta veio por parte do homem mais bem informado da Ucrânia. O líder dos serviços secretos militares ucraniano, Kyrylo Budanov, avisou a população que, nos próximos meses, a situação no campo de batalha vai tornar-se extremamente difícil para a Ucrânia. “A meio de maio, princípios de junho”, tudo vai piorar, mas “não será o fim do mundo”. Para os especialistas os sinais são claros, estamos prestes a assistir a uma ofensiva de grandes dimensões que vai testar ao máximo a determinação ucraniana.
“Neste momento, os russos ainda não estão focados na conquista de terreno, mas sim no desgaste das forças. A Ucrânia tem tido um desgaste muito grande de pessoal. Há um conjunto de unidades de militares ucranianas que estão a colapsar. A grande ofensiva russa vem, sem dúvida, a caminho. Têm sido formadas novas unidades, a grande questão é onde”, afirma o major-general Agostinho Costa.
Desde o final de fevereiro, com a queda da cidade industrial de Avdiivka, que a Ucrânia tem tido dificuldade em estancar os avanços das forças russas na região. Uma após a outra, várias localidades foram caindo aos avanços russos. “A situação deteriorou-se significativamente”, alertou o comandante-chefe das forças armadas ucranianas, Oleksandr Syrskyi.
Perto de Bakhmut, o cenário não é melhor. As forças russas juntaram mais de 25 mil soldados nas redondezas da pequena cidade de Chasiv Yar, no leste da Ucrânia, e que se tornou um dos mais importantes bastiões da defesa ucraniana da região do Donbass. Para os ucranianos, Chasiv Yar é uma fortaleza quase perfeita, mas a falta de equipamento para contrariar os constantes ataques de artilharia e bombardeamentos aéreos significam que a Ucrânia está a aguentar este território com um elevado número de baixas.
O think tank de Defesa Institute for the Study of War (ISW) também defende que os sinais de que a Rússia se está a preparar para uma nova ofensiva de larga escala começam a aparecer no terreno. Os analistas do ISW sublinham que as forças de Kiev estão debaixo de uma enorme pressão, com falta de todo o tipo de equipamentos necessários para poder defender o seu território.
“Nesta altura os avanços das forças russas estão a aumentar de velocidade das suas conquistas. A situação cada vez mais desvantajosa para Kiev começa a ter impacto a nível político. Há queixas de unidades que tiveram de recuar por falta de munições e víveres”, explica o general Carlos Branco.
Ao mesmo tempo, o ISW avisa que a Rússia está a recuperar gradualmente as suas capacidades e pode mesmo aproveitar o tempo seco que se faz sentir no sul da Ucrânia para colocar em marcha uma operação ofensiva de larga escala. A melhoria das condições meteorológicas pode permitir a Moscovo poder voltar a utilizar as suas unidades blindadas em regiões menos prováveis. Até agora, durante o inverno, os blindados russos estavam restritos à utilização de estradas para poder atacar.
De Kharkiv a Odessa
A frente de batalha permanece bastante ativa. De Lugansk a Kherson os combates acontecem todos os dias sem exceção. Embora existam sinais de aglomerações de soldados em vários pontos da frente de batalha, o local e o objetivo estabelecido por Moscovo permanece uma grande dúvida.
No último mês, a Rússia tem aumentado a frequência com que tem bombardeado a cidade de Kharkiv, a segunda maior da Ucrânia. Os primeiros alvos foram as centrais elétricas, seguindo-se antenas de comunicação. Volodymyr Zelensky fala numa campanha “de terror” contra a cidade e os seus habitantes, no entanto, vários analistas admitem que estes sejam ataques preparatórios para uma nova operação.
“Os russos atacaram uma antena de televisão que também tinha radares e permitia a comunicação com zonas próximas. Não podemos ver isto de forma isolada. Os ucranianos devem suspeitar de uma possível ofensiva perto de Kharkiv”, alerta Carlos Branco.
Mas não há unanimidade quanto à direção escolhida para a verdadeira direção do ataque. No dia 20 de março de 2024, o Ministério da Defesa tomou uma decisão que baralhou os analistas. Sergei Shoigu anunciou a criação da Flotilha do Rio Dnipro, uma força naval responsável por operar numa região que separa as tropas de Moscovo e de Kiev, em Kherson.
Para alguns especialistas, a criação desta unidade pode indicar a vontade russa de avançar com um ataque em direção a uma das mais importantes cidades ucranianas: Odessa. O presidente russo já o defendeu várias vezes e a sua conquista significaria a amputação económica da Ucrânia, retirando-lhe o acesso ao mar.
“Conquistar Odessa seria um xeque-mate à Ucrânia e ao Ocidente. Seria o desvalorizar da Ucrânia em 60%, cercando-o e retirando-lhe o acesso ao mar. A criação da flotilha do Dnipre deixa-me preocupado. Estou convencido de que os russos vão para Odessa”, considera Agostinho Costa.
Cavar para sobreviver
Além disso, as potentes bombas KAB1500 utilizadas pela Rússia continuam a fazer estragos e a Ucrânia não tem uma estratégia para a contra-atacar. Estas munições com 500 e 1.500 quilos de explosivos têm efeitos devastadores e são capazes de destruir algumas das mais fortificadas posições defensivas.
Por isso, as últimas semanas têm sido marcadas por um gigantesco esforço da Ucrânia para escavar o terreno, entrincheirar-se e travar a ofensiva russa. Os comandantes ucranianos têm-se esforçado para supervisionar a construção de novas linhas defensivas.
Trincheiras, bunkers, obstáculos para tanques, dentes de dragão e extensos campos de minas. A estratégia é muito semelhante à posta em prática por Moscovo em vésperas da contraofensiva do verão de 2023 por Kiev. No entanto, os especialistas admitem que a Ucrânia está demasiado atrasada na construção destas estruturas e que, se a Rússia atacar, estas defesas arriscam não ser tão sólidas quanto as russas. Além disso, segundo os especialistas, a Ucrânia não tem linhas defensivas secundárias capazes o suficiente para fazer frente ao ataque russo.
“A Ucrânia está muito atrasada no esforço para entrincheirar. A Ucrânia não tem boas linhas defensivas secundárias”, refere Michael Kofman, um especialista em Defesa da Carnegie Endowment.
No verão passado, a Ucrânia lançou todas as esperanças numa contraofensiva na direção de Zaporizhzhia, de forma a tentar romper as linhas defensivas russas. Nos meses que antecederam o ataque, o ocidente treinou dezenas de milhares de soldados e enviou centenas de blindados e milhões de munições. Porém, a ofensiva acabou por fracassar, com as unidades ucranianas a ficaram presas entre os campos de minas russos e potentes barragens de artilharia.
Estes ataques levaram Kiev a ter uma perda de soldados significativa em diversas unidades e a perder muito do material que necessita para defender o seu território. Os números reais ainda não são conhecidos, mas segundo fontes oficiais norte-americanas que falaram à CNN em condição de anonimato foram “significativas”. Os peritos em assuntos militares acreditam que a Ucrânia nunca chegou a recuperar.
“A Ucrânia cometeu um erro brutal, no verão passado. No entanto, a culpa não é só deles. Foram pressionados a fazer algo que não passa pela cabeça de um planeador militar ocidental: levar a cabo uma ação ofensiva sem cobertura aérea”, recorda o major-general Isidro de Morais Pereira.
Um "game-changer"
Mas muitos dos problemas sentidos no terreno pelas forças ucranianas podem agora vir a ser resolvidos com a aprovação do novo pacote de apoio militar norte-americano. Após mais de seis meses de um braço de ferro na câmara baixa do Congresso americano, entre Republicanos e Democratas, os Estados Unidos da América aprovaram um novo pacote de ajuda no valor de mil milhões de dólares.
Munições de HIMARS, incluindo a versão com mais alcance ATACMS, mísseis anticarro Javelin, minas antitanque, mísseis de defesa antiaérea, veículos blindados de infantaria Bradley e muitas munições de vários calibres. Este foi o primeiro pacote de ajuda enviado após a aprovação do documento e, segundo o porta-voz do Pentágono, deve começar a chegar em tempo recorde.
De todo o armamento anunciado, os militares destacam os mísseis ATACMS. A Ucrânia já pedia que fossem enviados há muito tempo, mas a administração Biden recusava-se a enviá-los, com receio de que fossem utilizados contra território russo. A capacidade de atingir alvos a quase 300 quilómetros de distância vai tornar muitas instalações russas vulneráveis aos ataques ucranianos.
“A Rússia acreditou que os EUA não iam aprovar o pacote de apoio à Ucrânia. Se isso acontecesse levaria a uma grande probabilidade sucesso de uma ofensiva russa. No entanto, acredito que os ATACMS vão ter um impacto muito grande. Tudo o que é posto de comando, radares, aeródromos militares, concentração de tropas e de armamento, pontes de caminho de ferro vão ser alvos da Ucrânia”, destaca Isidro de Morais Pereira.
Ao mesmo tempo, tanto a Ucrânia como vários países europeus continuam a aumentar a produção de todo o tipo de equipamentos militares necessários na frente. Entre os líderes ucranianos há um sentimento de urgência cada vez maior para aumentar a produção militar. A Rússia registou um aumento de produção “sem precedentes” para rearmar o seu exército, depois de uma vaga de fracassos iniciais no primeiro ano da invasão. Atualmente, a máquina de guerra russa é capaz de produzir dez vezes mais munições do que as que a Ucrânia tem disponíveis.
Algumas armas são mais difíceis de produzir no próprio país. Um exemplo disso são as cruciais munições de 155 mm utilizadas pelos países da NATO. A Ucrânia converteu quase toda a sua artilharia, originalmente de calibre soviético 152 mm, para o calibre utilizado pelos aliados, de forma a garantir que consegue operar os equipamentos enviados pelo Ocidente. A produção destas munições está limitada pela importação de matérias-primas e pela compra dos direitos de produção a empresas ocidentais.
O maior problema
Mas dois anos de combates interruptos continuam a desgastar o mais importante recurso que Kiev tem: os seus soldados.
“Dois anos sem rotação, é claro que o moral está baixo e isso está a acabar com a nossa motivação. Precisamos de ser rodados ou ter férias para descansar adequadamente”, revela um soldado ucraniano ao Financial Times.
A Ucrânia está a tentar resolver os seus problemas de falta de soldados apertando as medidas de recrutamento, mas não estabeleceu um número de homens que podem ser chamados a servir numa futura mobilização. No ano passado, Zelensky sugeriu que seria necessário mobilizar meio milhão de soldados, mas este ano o comandante-chefe, Oleksandr Syrskyi, admitiu que esse número deverá ser significativamente mais baixo.
Entre as medidas aprovadas recentemente pelo parlamento ucraniano, está a decisão de não renovar no estrangeiro os passaportes ucranianos aos homens com idades entre os 18 e 60 anos. De acordo com a BBC, mais de 650 mil homens ucranianos fugiram do país ilegalmente desde o início do conflito. Segundo o Financial Times, isto deixa a Ucrânia com apenas 3,7 milhões de homens capazes de serem chamados para servir no exército.
“O problema agora são os efetivos. A Ucrânia vai recrutar, mas uma unidade militar não se prepara em três meses. Em três meses prepara-se um soldado, uma unidade é outra coisa. Esta guerra está a ter um desgaste muito grande para a Ucrânia. A Rússia roda as suas forças com muita frequência”, frisa Agostinho Costa.