Neste hotel dorme com a cabeça num país e as pernas noutro - a incrível história do Arbez - TVI

Neste hotel dorme com a cabeça num país e as pernas noutro - a incrível história do Arbez

  • CNN
  • Miquel Ros
  • 28 jan 2023, 11:00

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"Está no quarto nove, é um dos nossos quartos com dupla nacionalidade", confirmou o gerente do hotel com um sorriso, entregando uma chave de metal à moda antiga.

Mal consegui conter a minha alegria. Se a perspectiva de chegar a um hotel sem saber em que país iria dormir naquela noite já era emocionante, que tal dormir em dois países ao mesmo tempo?

Tinha sido uma longa viagem por estradas sinuosas para chegar a La Cure, uma pequena aldeia aninhada no topo das montanhas densamente arborizadas de Jura, que separam a França da Suíça.

Agora, graças a um tratado internacional (pouco conhecido) de meados do século XIX, estava prestes a desfrutar de uma das experiências hoteleiras mais genuinamente únicas que se podem ter em qualquer parte do mundo.

Construído no estilo rústico tão predominante nesta parte da Europa, o pequeno hotel familiar Arbez Franco-Suisse - também chamado L'Arbézie - tem a peculiaridade de estar localizado mesmo em cima de uma fronteira internacional.

Esta configuração invulgar é uma consequência não intencional do Tratado de Dappes de 1862, pelo qual a França e a Suíça acordaram uma pequena troca territorial, a fim de permitir o controlo francês de uma estrada estratégica próxima.

O tratado previa a manutenção de quaisquer edifícios junto à fronteira, circunstância que um empresário local aproveitou para abrir uma loja e um bar, a fim de tirar partido do comércio transfronteiriço. O hotel seguir-se-ia em 1921.

O resultado é que cerca de metade do hotel está em França e a outra metade na Suíça, com a fronteira internacional a dividir o restaurante e vários quartos.

Tinha-me sido atribuído um desses quartos com dupla nacionalidade, com a fronteira invisível a atravessar a casa de banho e a cama. Isto significa que os hóspedes dormem com a cabeça na Suíça e as pernas em França.

Visíveis da janela, e a poucos metros de distância, estavam os dois postos fronteiriços, o suíço do lado direito, o francês um pouco mais abaixo do lado esquerdo, com o hotel a ocupar um terreno triangular encravado entre os dois.

Complexidades legais

Esta realidade transfronteiriça está embutida na personalidade do lugar. Desde as guerras mundiais até à recente pandemia de covid-19, a posição única do hotel tem sido uma fonte inesgotável de situações e histórias curiosas. Também se reflete em vários dos elementos decorativos encontrados em toda a propriedade. Alguns são óbvios, como as bandeiras que adornam algumas das paredes, mas há também outros mais subtis.

"Espelhos e janelas destinam-se a ser não só um elemento decorativo, mas também um símbolo de ligação entre mundos e realidades adjacentes", diz Alexandre Peyron, gerente do hotel administrado pela sua família há gerações, numa visita a uma das suites. Neste caso, enquanto todo o quarto se encontrava na Suíça, a parede era totalmente francesa.

Uma reprodução do famoso quadro de Paul Cézanne "Les Joueurs de Cartes" (Os jogadores de cartas, na tradução) está em destaque no restaurante, pendurado mesmo no local onde passa a fronteira.

A cena, que retrata dois homens a jogar às cartas e também se encontra numa grande pintura mural numa das paredes exteriores do hotel, faz alusão a um incidente que teve lugar no hotel nos anos 20, conta Peyron: um funcionário da alfândega suíça multou um grupo de clientes que tinha apanhado a jogar às cartas. A ofensa? Não foi o jogo em si, como alguns erradamente presumiram na altura, mas o facto de estarem a utilizar um baralho de cartas de fabrico francês no lado suíço do hotel sem terem pago as taxas alfandegárias. Até esta data, o hotel continua a permitir jogos, desde que não haja cartas a atravessar a fronteira.

Refúgio na II Guerra Mundial, tal como em "Alô, Alô"

O quadro legal não é uma questão trivial quando se trata de escolhas alimentares.

Está sentado no lado francês do restaurante? Esqueça o pedido de Tomme Vaudoise. Este queijo suíço local não pode ser trazido para o lado francês devido à rigorosa regulamentação europeia que afeta os produtos lácteos não pasteurizados. O mesmo acontece, ao contrário, com algumas especialidades francesas, como a Saucisse de Morteau, variedade de salsichas cuja distribuição não é permitida na Suíça.

É mais fácil quando se trata de pagar a conta, uma vez que tanto o euro como o franco suíço são aceites. Da mesma forma, o hotel tem dois números de telefone, um para cada país, e os quartos estão equipados com dois tipos de tomadas elétricas, uma vez que França e Suíça utilizam normas diferentes. Os impostos são pagos a ambos os países, de acordo com uma fórmula pro rata [em partes iguais] específica, segundo indicações das autoridades fiscais de ambos os países.

Durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães ocuparam o andar térreo do hotel, mas não podiam subir as escadas porque estavam em território neutro

Quando a Suíça aderiu ao espaço de livre circulação Schengen em 2008 tornou as coisas um pouco mais simples, mas na realidade teve pouco efeito prático na gestão diária do hotel, uma vez que este sempre foi um espaço transfronteiriço particularmente poroso.

Um exemplo particularmente dramático disto aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial, lembra Peyron, quando as zonas de França ocupadas pelos alemães e controladas pelos colaboracionistas de Vichy convergiram com a Suíça livre, mesmo no local onde o hotel está situado.

Os alemães ocuparam a metade francesa do hotel, mas como as escadas que levavam aos quartos estavam parcialmente em território suíço, os andares superiores permaneceram fora do seu alcance, tornando-os um refúgio relativamente seguro para os refugiados e pilotos aliados em fuga.

Uma situação que lembra a clássica série de comédia televisiva britânica dos anos 80 "Alô, Alô" quando os donos do hotel conseguiam infiltrar os fugitivos debaixo dos narizes dos alemães na segurança da Suíça neutra, aproveitando o facto de aqueles estarem distraídos a comer ou a beber no bar.

O proprietário Max Arbez foi reconhecido como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem Memorial de Jerusalém pelo seu papel na salvação dos refugiados judeus. Uma carta de agradecimento do comandante aliado Marshall Montgomery é hoje orgulhosamente exibida ao lado dessa "escada da liberdade".

Local para conversações secretas

Esta não foi a última vez que o hotel se enredou em geopolítica internacional de alto risco. No início dos anos 1960, o Hotel Arbez foi também o cenário de negociações secretas que levaram a Argélia a tornar-se independente da França em 1962.

Temendo a captura, os negociadores argelinos não queriam pisar solo francês, enquanto as autoridades francesas desejavam conduzir as conversações discretamente dentro das suas fronteiras. Um quarto privado no hotel ofereceu a solução ideal.

O estatuto peculiar do hotel pode também ter sido utilizado ocasionalmente por pessoas menos bem intencionadas. No início de 2002, pouco depois do 11 de Setembro, Peyron diz que o hotel foi visitado por agentes dos serviços secretos para investigar a possibilidade de um membro da Al-Qaeda ter usado a sua estadia para atravessar a fronteira sem ser detetado.

Mais recentemente, com o surto da pandemia de covid-19, o Hotel Arbez viu-se de novo na linha da frente.

Tal como o resto da indústria do turismo, o hotel foi fortemente afetado, embora tenha conseguido permanecer aberto durante algum tempo, a fim de proporcionar alojamento ao pessoal sanitário.

Os seus gestores, contudo, tiveram de lidar também com a complexidade de dois conjuntos de restrições diferentes e em constante evolução, geralmente optando por implementar o mais rígido de ambos, que, na maioria das vezes, tendia a ser o do lado francês.

O quarto com dupla nacionalidade onde dormiu a CNN

Embora as quarentenas e as ordens de permanência em casa tenham sido progressivamente relaxadas, a fronteira permaneceu fechada durante bastante mais tempo. Uma vez que é acessível por ambos os países, durante este tempo, o hotel foi um santuário para casais que se encontravam retidos em lados opostos da fronteira.

Peyron continua a partilhar histórias enquanto exibe o seu hotel e passa por um estreito pátio aberto que serve de ligação entre os lados francês e suíço do edifício. Ali está uma das representações mais antigas e tangíveis desta fronteira: um marco de pedra de 1863.

De um lado está a águia do Segundo Império Francês (a França era então governada por Napoleão III), "Vaud" está simplesmente escrito do outro lado.

"O Estado de Vaud é uma das partes constituintes da Confederação Suíça, mas não esqueçamos que do outro lado deste marcador existe também uma espécie de confederação, a União Europeia", sublinha Peyron.

Há muito para refletir enquanto me dirijo para o meu quarto para desfrutar de um sono internacional. Mas por via das dúvidas, e antes de dar a volta à chave da porta, voltei a verificar o meu bolso para ter a certeza de ter trazido o meu passaporte.

Hotel Arbez Franco-Suisse
601 Rue de la Frontière, 39220 Les Rousses, France; +33 3 84 60 02 20
61, Route de France, 1265 La Cure, Switzerland; +41 22 36 013 96

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