Postecoglou, o treinador que não veio do espaço - TVI

Postecoglou, o treinador que não veio do espaço

A história do técnico que aos cinco anos deixou a Grécia, foi refugiado na Austrália e aos 58 anos está a seduzir o futebol inglês e vive um romance com os adeptos do Tottenham

Ange Postecoglou sabe que não foi a primeira escolha do Tottenham e fala sobre isso naturalmente, como fala de tudo, com uma gargalhada pelo meio. Também não foi a primeira escolha do Celtic há dois anos, assume o australiano de 58 anos que fez toda a carreira longe da Europa. «Ninguém vai assumi-lo, mas acho que em ambos os casos eu era o tipo que restava. Foram rejeitados por uns quantos treinadores e eu acabei por ser o único que sobrava. Por mim tudo bem, aceito isso.» A aposta não era óbvia e isto está só a começar, como ele diz. Mas promete.

Ao fim de sete jornadas no banco, com o Tottenham em segundo lugar na Premier League depois de vencer o Manchester United, empatar o dérbi em casa do Arsenal e bater o Liverpool, Postecoglou levou ao futebol inglês uma abordagem positiva, em campo e na empatia com que comunica. E vive um romance com os adeptos do Tottenham.

Já tem um cântico só dele e aquele intenso jogo com o Liverpool terminou com o estádio todo a cantá-lo. Ao som de «Angels», de Robbie Williams, a letra alude aos últimos anos sombrios dos Spurs e à esperança que o novo treinador trouxe.

We’ll play the way we want to, with big Ange Postecoglou, whether I’m right or wrong.

It's Big Ange ball, so you can keep your Pochettino, Conte and Mourinho, and even Christian Gross.

Everywhere we go, we're lovin' Big Ange instead.

Foi numa conversa para a BBC com Gary Lineker que Postecoglou falou sobre a forma como chegou tão tarde ao futebol britânico. «As pessoas só me descobriram nos últimos dois anos, apesar de eu ter 25 anos de uma carreira com algum sucesso», disse: «Nunca pensei chegar aqui, para ser honesto. Não por causa das minhas capacidades, mas porque basicamente ninguém estava a olhar na minha direção. Aconteceu tarde, foi preciso alguém pensar fora da caixa.»

De barco até à Austrália e a viver num campo de refugiados

Big Ange percorreu um longo caminho para chegar onde está. Nasceu na Grécia, de onde a família saiu depois da instauração da ditadura militar e de o pai perder o negócio que tinha, no final dos anos 60. Viajaram de barco até à Austrália e chegaram a viver num campo de refugiados, contou Postecoglou a Lineker. «Não pareço o refugiado típico, mas tinha cinco anos quando viajámos», recordou: «Na altura a Austrália estava à procura de imigrantes para trabalhar, o meu pai era um trabalhador não especializado e demos esse salto, ficámos num campo de refugiados uns tempos e depois conseguimos uma casa.»

O futebol foi a sua forma de ligação com o pai, que passava o dia a trabalhar e tinha pouco tempo para dedicar ao filho. «A única coisa que ele mantinha do seu antigo país era o amor pelo futebol. Essa era a minha ligação com ele. A nossa equipa local era uma equipa grega de imigrantes e aos domingos íamos aos jogos e ele podia falar grego, sentia-se confortável por duas horas. Eu adorava isso, o que lhe fazia enquanto pessoa e queria estar próximo disso.»

O pai como inspiração e um mantra: «Mantém a bola no chão»

Em 2018, Postecoglou escreveu uma crónica no The Athletes Voice a contar como o pai foi sempre a sua inspiração e como moldou a sua filosofia de jogo. «Segunda-feira à noite, ele deixava-me ficar acordado até mais tarde e eu rapidamente fiz a ligação de que o futebol seria o caminho para ficar perto do meu herói. E assim foi. Sentava-me com ele e ele explicava-me o jogo. Ele adorava os jogadores que driblavam e quando as equipas passavam pelos adversários. Adorava os goleadores», escreveu, no artigo em que revela que no seu percurso não foi particularmente inspirado por nenhum treinador, mas pelas três palavras que o pai lhe repetia em grego, quando se tornou jogador e mais tarde treinador. «Mantém a bola no chão.»

A esse conceito juntou-se outra influência, numa coincidência, como ele diz, bizarra. Ange tornou-se jogador, um defesa que fez toda a carreira no South Melbourne. Onde a certa altura teve como treinador Ferenc Puskas. Um dos maiores goleadores de sempre, o húngaro passou pela Austrália no final dos anos 80, numa das últimas experiências de uma carreira discreta de treinador.

Treinado por... Puskas, que nem queria ouvir falar em defender

«No mundo bizarro em que cresci, acabei com um dos maiores futebolistas de sempre, Ferenc Puskas, como treinador. Ele não gostava nada de defender. A atitude dele era: ‘Eles marcam quatro, nós marcamos cinco», contou Postecoglou a Lineker. «Eu era um lateral que detestava defender. Acabámos por vencer o campeonato. Os nossos avançados marcaram golos com fartura e isso despertou algo em mim. Pensei: ‘Por que não? Por que não jogar o futebol que toda a gente quer jogar e apenas marcar golos, sem preocupações em sofrê-los?’»

Como jogador, Postecoglou ainda chegou à seleção da Austrália, mas terminou cedo a carreira, por causa de uma lesão. Depois dedicou-se à carreira de treinador, começando pelo South Melbourne, onde venceu a Liga dos Campeões da Oceânia. Seguiram-se as seleções jovens da Austrália, uma passagem breve pela Grécia, para treinar o Panachaiki, e o regresso ao país de adoção, para orientar o Brisbane Roar, onde venceu dois campeonatos australianos, e o Melbourne Victory.

O Mundial 2014 e a despedida da Austrália

Em 2014 assumiu a seleção da Austrália, que levou ao Mundial do Brasil. Os Socceroos deram luta, num grupo com Países Baixos, Chile e Espanha, mas perderam os três jogos. No ano seguinte, liderou a Austrália na conquista da Taça da Ásia. E em 2017 conseguiu a qualificação para o Mundial 2018, vencendo as Honduras no play-off intercontinental.

Duas semanas depois deixou o cargo de selecionador, abdicando de disputar um segundo Mundial consecutivo. «Sinto que é a altura certa para passar a responsabilidade a alguém que tenha a energia necessária», disse então, assumindo o desgaste de três anos no cargo e a vontade de voltar ao futebol de clubes.

Rumou ao Japão, onde orientou o Yokohama Marinos ao longo de quatro épocas. Em 2021, chegou então a oportunidade no Celtic. E o futebol britânico descobriu Postecoglou, o treinador que se distinguiu pela forma como põe as equipas a jogar um futebol voluntarioso – corajoso, como ele gosta de dizer – e que é um comunicador nato. Mostra-o em campo e na sala de imprensa, sempre com uma sinceridade e um humor desarmantes, num tom coloquial pontuado pelo muito australiano «mate».

«Não vim do espaço, mate»

Em Glasgow, começou logo por desarmar os jornalistas, quando lhe perguntaram como ia conseguir aprender rapidamente o que era preciso sobre os adversários. «Ainda estamos no mesmo planeta, mate. Eu não vim do espaço. Ficaria surpreendido com o que eu sei sobre o Hearts.»

Ao longo de duas épocas, Postecoglou liderou o Celtic na conquista de dois campeonatos, duas Taças da Liga e, para a despedida, uma Taça da Escócia. Depois dessa «treble», assinou pelo Tottenham.

Deixou saudades em Glasgow e em muitos dos jogadores que inspirou. Como o português Jota, que foi buscar ao Benfica, primeiro por empréstimo depois em definitivo, que explodiu com a camisola do Celtic e publicou esta mensagem nas redes sociais quando Postecoglou deixou o clube.

 

Em Londres, Big Ange teve de começar por lidar com um verão agitado por causa da indefinição em torno de Harry Kane. O capitão saiu mesmo para o Bayern Munique, mas Postecoglou seguiu em frente, com apostas ganhas no mercado como James Maddison ou a valorização de jogadores que já estavam no clube, como o ex-sportinguista Porro, a alimentarem uma conceção positiva do jogo.

Já seduziu os adeptos do Tottenham, o clube que acumula frustrações ano após ano e não vence um troféu desde 2008. Dedicam-lhe cânticos, há cachecóis com a cara dele. Sobretudo, recuperaram a ilusão. E isso é tudo, diz Ange.

«Adoro o que o futebol faz às pessoas»

Depois da vitória sobre o Manchester United na segunda jornada, Postecoglou ficou uns momentos no relvado, a absorver o ambiente, contou o The Athletic. «Quis sentir aquele momento, porque adoro o que o futebol faz às pessoas. Tiro um momento para pensar nos 60 mil aqui e nos que estão em casa, porque vão passar o resto da semana a sorrir. Adoro que o jogo faça isso», disse: «E depois começamos a pensar na próxima semana, mate.»

O Tottenham ainda não perdeu na Premier League, está a um ponto da liderança, marcou pelo menos dois golos em cada jogo. Com a vitória sobre o Liverpool, Postecoglou prolongou além disso uma notável série de 51 jogos sem perder em casa. Quando lhe pediram para comentar esse registo, respondeu assim. «Não sei, acho que tenho tido boas equipas.»

Na conversa com Lineker, definiu em poucas palavras aquele que é o seu objetivo para o Tottenham: «Pôr os adeptos a vibrar com o clube. É isso. Se o fizer, significa que provavelmente tivemos sucesso. Como será esse sucesso, não sei.»

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