Christian Streich: a despedida do treinador que é a voz da consciência da Bundesliga - TVI

Christian Streich: a despedida do treinador que é a voz da consciência da Bundesliga

Christian Streich (Foto THOMAS KIENZLE/AFP/Getty)

Ao fim de 12 épocas no banco e 29 de ligação ao clube que levou a outro patamar, uma das figuras mais icónicas do futebol alemão, no campo e na sala de imprensa, está de saída

Christian Streich vai deixar de pedalar na sua bicicleta para os treinos do Friburgo. Ao fim de 12 épocas no banco e 29 de ligação ao clube que levou a outro patamar, o treinador mais icónico da Bundesliga decidiu parar no fim da época. Vai deixar de estar junto à linha o treinador que respira paixão, que abre espaço nas conferências de imprensa para falar sobre valores e justiça social, que em 2021 não conteve as lágrimas quando o clube se despediu do seu velho estádio e viveu esse momento junto aos adeptos, de megafone na mão.

Streich anunciou a decisão de deixar o clube nesta segunda-feira e as reações que se seguiram dão uma ideia do que ele representa para o futebol alemão. Muitos dos rivais fizeram questão de o saudar, numa mensagem repetida: «Um grande treinador e uma grande pessoa.»

Aos 58 anos, Streich diz que é altura de dar espaço a novas energias e novas pessoas. O anúncio chegou depois de ter levado o Friburgo pela segunda época consecutiva aos oitavos de final da Liga Europa e da dura eliminação frente ao West Ham na semana passada, com uma pesada derrota em Londres, após a vitória na primeira mão em Friburgo. Nesta altura, o clube está na nona posição na Bundesliga, de novo com uma qualificação europeia na linha de mira. Tem 480 jogos pelo Friburgo, 383 na Bundesliga, o terceiro treinador com mais partidas no banco no campeonato alemão.

É difícil imaginar o Friburgo sem Streich. É um homem da terra, natural da região, ali perto da Floresta Negra. Foi lá que cresceu, a ajudar no talho do pai e a jogar futebol. Teve uma carreira discreta e quando deixou de jogar foi estudar. Formou-se em Estudos Germânicos, História e Desporto na universidade de Friburgo e ainda trabalhou como professor, mas acabou por se focar no futebol. Entrou para o Friburgo em 1995 e nunca mais deixou o clube. Trabalhou durante muitos anos na formação, conquistou vários títulos de juniores, consolidou a academia como base para a equipa principal e em 2011/12 foi convidado a assumir como treinador principal.

Pegou na equipa em zona de despromoção e conduziu-a numa recuperação notável, até terminar na 12ª posição. Na época seguinte, levou o Friburgo ao quinto lugar e à presença na Liga Europa – defrontou o Estoril na fase de grupos, em 2013/14.

A trajetória não foi sempre ascendente. Em 2015, o Friburgo desceu de divisão. Parecia um destino familiar, para um clube que tinha passado metade da década anterior no segundo escalão. Mas logo na época seguinte o Friburgo venceu a 2. Bundesliga. E desde então não mais deixou de ser de primeira. Um pequeno clube de uma cidade de 200 mil habitantes, com um orçamento muito inferior ao dos gigantes da Bundesliga, a intrometer-se entre os grandes. Andou várias vezes nos lugares de topo, conseguiu duas qualificações europeias e em 2022 chegou à final da Taça da Alemanha, perdida para o RB Leipzig.

«Eu não poda treinar o Bayern Munique»

A figura central nesse percurso é Christian Streich, uma personagem única. «Não sou exatamente um produto de marketing ideal. Sou um tipo normal, sem tatuagens nem piercings», disse quando chegou ao clube.» Sempre fez questão de se manter terra a terra. Durante muitos anos, quando a equipa jogava no Dreisamstadion, ia de bicicleta para os jogos. «Vivo a 300 metros do estádio, seria estranho se fosse de carro», dizia. Ainda continua a pedalar todos os dias para os treinos. E a fazer a vida normal na cidade, e a cultivar outros interesses para lá do futebol. Em 2021, o adiamento de um jogo para um domingo fê-lo perder um concerto do guitarrista Marc Ribot e Streich não se conformou, conta a BBC: «Não teria trocado aqueles bilhetes pela final da Liga dos Campeões nem por dinheiro nenhum do mundo. Fiquei genuinamente chateado quando soube o horário do nosso jogo.»

Streich chegou a estar nas cogitações do Bayern Munique, admitiu em tempo Uli Hoeness. Mas ele diz que não teria perfil para isso. «Não é realista, eu não podia treinar o Bayern Munique. Estava acabado ao fim de quatro semanas», disse.

O treinador que é a consciência social da Bundesliga

Esse desprendimento define a personalidade de Streich. Tal como a forma como relativiza a importância do jogo. «Não há pressão para nós. Pressão é temer de tal forma sobre a vida que nos metemos com os filhos num barco para atravessar o Mediterrâneo», disse um dia. Ou critica o rumo do futebol, refletindo sobre a facilidade com que se despedem treinadores ou sobre os valores em jogo, como fez noutra ocasião, a propósito da transferência de Neymar para o PSG: «Não me interessa se são 220 ou 440 milhões. Entrámos numa zona surreal. O Deus do dinheiro está a ficar cada vez maior, e a determinado momento vai devorar tudo.»

Streich faz questão de não falar apenas de futebol. Tanto apela aos seus jogadores para que votem ou tenham consciência ambiental na alimentação como fala de temas como refugiados, racismo e educação, ou se detém em dissertações filosóficas sobre a sociedade e o neocapitalismo. Chamam-lhe a consciência social da Bundesliga, uma expressão recuperada nesta segunda-feira por vários meios de comunicação alemães. «Não interessa de onde vimos, o que interessa é quem somos como seres humanos», diz.

Em janeiro deste ano, Streich participou nas manifestações que juntaram milhares de pessoas na Alemanha em protesto, depois de revelado um plano do partido de extrema-direita AfD para a deportação de migrantes e minorias. E explicou a sua posição, em mais uma das suas conferências de imprensa icónicas: «Os adeptos de futebol e os treinadores são cidadãos. Se não se manifestam agora, não perceberam nada do que aprenderam nas aulas de história na escola.»

Streich sempre disse que não pretendia ser treinador toda a vida. Ainda não se sabe o que fará de seguida, mas a sua despedida do Friburgo marca em definitivo o fim de uma era. Como disse Nils Petersen, o antigo avançado que se fez grande no clube, onde chegou à seleção alemã: «A marca que ele deixa é enorme. Não imagino como será, porque o Friburgo sem o Streich já não será o Friburgo, de certa forma.»

 

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