A Zero é perentória: a proposta do Governo para o agravamento da carga fiscal sobre veículos, anteriores a 2007, deve ser revista para que não penalize os carros com menos emissões. Para Francisco Ferreira, o Estado deve manter a receita da carga fiscal agravada mas penalizar os veículos que poluem mais, ao mesmo tempo que alivia o IUC nos carros que que poluem menos.
No quadro internacional, aproxima-se um dos momentos mais importantes no debate sobre o clima: a 28ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP 28) que além de ser presidida pelo CEO de uma das maiores petrolíferas do mundo, será recebida por um dos membros Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEC): os Emirados Árabes Unidos.
Para o presidente da Zero, as perspetivas não são boas e o otimismo em torno de um acordo que contemple o fim gradual dos combustíveis fósseis, também parece difícil de vislumbrar. “Não vai ser uma conferência fácil. Não estou francamente otimista face àquilo que era preciso e àquilo que provavelmente vai sair”, diz em entrevista ao ECO/Capital Verde.
Os carros a combustão têm sido um tema polémico ultimamente devido ao agravamento do imposto único de Circulação (IUC) determinado pelo Governo na proposta do Orçamento de Estado para 2024. De que forma encara estas medidas?
Ficamos muito satisfeitos por o Governo ter incluído a proposta da Zero no Orçamento do Estado, que é abater um veículo que anterior a 2007 e receber um cartão mobilidade. Queremos que [o cartão mobilidade] tenha um valor suficientemente elevado para as pessoas poderem utilizar ao longo do tempo em táxis, TVDE e, obviamente, nos passes nas áreas metropolitanas do Porto, em Lisboa. É uma medida absolutamente crucial.
Temos olhando para a evolução da frota nos últimos anos, e a idade média dos carros tem aumentado. O que significa que temos realmente veículos muito antigos que estão na posse de pessoas que não conseguem trocar esse veículo por um elétrico. Ainda por cima, ao preço aos veículos elétricos que estão.
Portanto, sem dúvida que devemos dar maior prioridade nos incentivos a quem troca um carro antigo por um carro elétrico, que até pode ser em segunda mão. O que discordamos é que seja um carro com emissões baixas, porque isso, no caso de emissões baixas, é o sinónimo de híbrido plug in. É um carro terrível do ponto de vista ambiental
Depois um incentivo menor para quem compra um carro elétrico pela primeira vez, sendo que a prioridade mais crucial está efetivamente na questão dos carregamentos. Se houvesse mais veículos elétricos, tínhamos uma redução muito substancial da poluição.
Mas a principal questão relativamente aos veículos elétricos é não ter a capacidade financeira para adquirir um.
Exatamente. Aí chegamos à questão do IUC. É injusto os veículos depois de 2007 – que foi quando houve a remodelação do cálculo do imposto – terem um imposto sobre veículos (ISV) e um IUC, ambos como componente ambiental. Ou seja, 40% do imposto é em função das emissões de dióxido de carbono (CO2) e o resto é função da cilindrada.
A cilindrada, neste momento é cada vez mais irrelevante, é um critério mau. E, no que diz respeito ao CO2, este só é ponderado a partir de 2007. A nossa sugestão é introduzir a componente de CO2 de emissões de poluentes nos carros anteriores a 2007, e os carros que tenham maior poluição, sejam os carros que pagam mais, ou seja, vejam até o seu IUC agravado. Já os carros que tenham menores emissões, vejam o seu IUC desagravado. Ou seja, se tiver um carro de 2005, com uma baixa cilindrada e com baixas emissões, o imposto de circulação deve baixar.
No caso dos carros com uma cilindrada elevadíssima, o IUC deve ser agravado porque, efetivamente, muito provavelmente esse carro não é de uma pessoa com rendimentos baixos. Falamos de um carro bastante consumidor de gasóleo ou gasolina, um carro mais potente. Assim estamos a ultrapassar a penalização social que surge com o agravamento do IUC a todos os veículos anteriores 2007. Portanto, a nossa proposta é muito simples: o Estado deve manter a receita, e até penalizar os que poluem mais, e reduzir o imposto nos que poluem menos.
Resumidamente, a Zero não é contra o agravamento do IUC, apenas pede que a medida seja reformulada para que não penalize todo os consumidores da mesma forma.
A Zero é contra o aumento da receita do IUC. A Zero é contra o aumento do IUC dos carros menos poluentes. Nesses, até achamos que devem baixar o IUC. Num carro bastante poluente e de cilindrada elevada, o IUC deve aumentar.
Foi presidente da Quercus, hoje é presidente da Zero e ao mesmo tempo é investigador e docente. Enquanto ativista e cientista, existe aqui uma dualidade na forma como encara a evolução das alterações climáticas?
É muito difícil esta convivência. Esta esquizofrenia, esta dupla personalidade de docente, investigador e de presidente da Zero. Tem grandes vantagens. Enquanto presidente da Zero, procuro que sejamos tão rigorosos e tão assertivos quanto possível. Não deixa de ser curioso que muitos presidentes de várias organizações não-governamentais de ambiente em Portugal, ao longo dos tempos, tenham sido professores universitários.
Em relação às alterações climáticas – essa angústia –, a perceção de aquilo que os cientistas previram está aquém daquilo que está a acontecer. Dá ainda mais força para publicamente eu e os meus colegas na Zero procurarmos fazer um alerta com maior dimensão e sempre consubstanciado naquilo que devem ser as políticas e medidas a implementar.
Quer à escala global, europeia e à escala nacional, procuramos incorporar aquilo que a ciência nos diz nos apelos que fazemos. Isso, sem dúvida, é um bocado trazido pela formação, e no meu caso, pelo contacto mais direto na minha vida académica.
Nestes anos todos da sua carreira, também trabalhou com vários membros do Governo. Consegue identificar um que lhe tenha marcado como sendo o mais proativo no combate às alterações climáticas?
António Guterres. Para mim é efetivamente um político absolutamente excecional. Teve uma formação também técnica e científica extensa, tem uma capacidade enorme de compreender os temas e de avaliar do ponto de vista científico, técnico e também político. Tem sido incansável nos apelos que tem feito. É, de longe, o político mais marcante.
O Papa Francisco, recentemente, disse que as Nações Unidas precisam de reformas e nós sabemos que é preciso essa mudança. António Guterres está lá dentro. E não tenho dúvidas que a cada momento, naquilo que é o desenvolvimento sustentável, cuidar do planeta, da prosperidade, das parcerias, da paz e das pessoas – aquilo que nós chamamos os cinco “Ps” – que ele é a pessoa ideal. É pena que realmente não tenha muitas das vezes a resposta dos países que nós gostaríamos. E ele em Portugal fez também, sem dúvida, esse grande esforço.
Referiu a COP 28, que este ano decorre mais uma vez num contexto de conflito geopolítico. Desta vez não é só a guerra na Ucrânia, temos também a guerra em Israel, mas há que apontar também o país anfitrião: os Emirados Árabes Unidos. Isso dificulta de alguma maneira os compromissos mais ambiciosos que temos em cima da mesa, nomeadamente, o phasing out dos combustíveis fósseis? Que expectativas é que tem em relação à COP deste ano?
Esse é o tema que a Europa vai levar. Nunca conseguimos ter uma mensagem clara contra os combustíveis fósseis. Conseguiu-se uma mensagem próxima e sem data, vaga, em relação ao carvão. Mas temos que falar dos combustíveis fósseis como um todo, e esse é o grande objetivo da União Europeia. É tentar que, no texto final, esse compromisso fique para além da aposta nas renováveis.
António Guterres, é, efetivamente, um político absolutamente excecional. Tem sido incansável nos apelos que tem feito. É, de longe, o político mais marcante
Tentou-se em Glasgow. Estava tudo bem encaminhado até ao último momento, em que a Índia bloqueou o acordo…
O que é facto é que cada ano que passa a pressão é maior. Portugal tem 70% de dependência de combustíveis fósseis e, acima de tudo, nos transportes mas também na indústria. Temos aqui um trabalho urgente para fazer e portanto, de uma vez por todas, com os investimentos que vão ser feitos, temos uma obrigação como país – que tem uma escala que que às vezes lhe permite fazer coisas que outros, que são economias maiores, se calhar é mais difícil – de irmos mais longe na ambição.
Mas está otimista que o ir “mais longe” vá ser possível no Dubai?
Vai ser complicado. O que me custa no Dubai é que a ideia de os próprios Emirados, e muitos países do Golfo, estarem a trocar as renováveis pelo petróleo. É assim num dia, e no outro dia reconhecem que afinal vão precisar de mais combustíveis fósseis. E, realmente ter o presidente da conferência, que é também o responsável pela principal empresa petrolífera dos Emirados, não ajuda. O presidente não manda, mas o presidente conduz as negociações. Não vai ser uma conferência fácil.
Não estou francamente otimista face àquilo que era preciso e àquilo que provavelmente vai sair. Mas apesar de vermos o copo muito vazio, vale a pena ver que, mesmo assim, ele vai enchendo um bocadinho. Cada 0,1 graus Celsius que nós conseguirmos evitar, e sabemos que cada 0,1 de subida temperatura é dramático, não deixa de ser um esforço pelo qual nós deveremos lutar.
Vai ser muito difícil não ultrapassarmos 1,5 graus, que é o limite que o Acordo de Paris apontava, e que os cientistas apontam, para não termos impactos já catastróficos em termos de temperatura em relação à era pré industrial. Mas mesmo assim nós precisamos de fazer esse esforço para garantir que conseguimos o melhor, mesmo sabendo que esse melhor é pouco.
Tendo em conta este cenário que acabou de descrever, faz sentido continuar a haver COP?
Faz. Precisamos de um fórum com todos os países no quadro das Nações Unidas. As conferências anuais, que reúnem todos os países, deveriam ser melhoradas. Sem dúvida. Quinze dias é um exagero e, por vezes, é em países onde a perspetiva sobre o clima não é suficientemente positiva. É verdade.
Mesmo assim, vale a pena o investimento porque foi à custa da COP que conseguimos um Acordo de Paris, aprovar 100 mil milhões de dólares anualmente para apoiar as políticas de adaptação e mitigação climática dos países em desenvolvimento, os fundos que têm vindo a ser criados, nomeadamente, o fundo de Perdas e Danos para os países poderem reconstruir tudo depois de uma catástrofe…
Se não houvesse as Nações Unidas, não haveria essa resposta. Se essa resposta é rápida? Não, é terrivelmente lenta. Muitos anos se discutem, palavra a palavra.
Cada 0,1 graus Celsius que nós conseguirmos evitar, e sabemos que cada 0,1 de subida temperatura é dramático, não deixa de ser um esforço pelo qual nós deveremos lutar.
Mas olhando do outro lado, não para aquilo que falta, mas para aquilo que foi conquistado, mesmo assim faz parte de tentarmos salvar o planeta termos esta concertação à escala mundial. Não apenas no clima, mas também noutros assuntos em particular, talvez também na biodiversidade, nos oceanos – que é um tema que não tem recebido suficiente relevo.
Sem dúvida que o multilateralismo precisa de uma revolução. Já está antiquado. As Nações Unidas já não dão resposta como deveriam dar. Até mesmo do ponto de vista da própria democracia e do peso dos diferentes países. Há aqui muitas dificuldades a ultrapassar.