Controlou a pandemia, geriu um massacre e colocou as crianças e a igualdade acima de tudo. Esta é a história de Jacinda Ardern - TVI

Controlou a pandemia, geriu um massacre e colocou as crianças e a igualdade acima de tudo. Esta é a história de Jacinda Ardern

Foi a mais jovem chefe do governo do seu país, mas, mais de cinco anos depois, e com muitos sucessos e polémicas pelo meio, decidiu colocar um ponto final na carreira política

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É talvez uma das líderes mundiais mais populares dos últimos anos. Com a igualdade de género e as crianças como pilares centrais, Jacinda Ardern surgiu com a filha ao colo na Assembleia Geral da ONU, indignou-se com perguntas que considerou sexistas e nem um sismo a fez perder a compostura. A primeira-ministra neozelandesa controlou a pandemia de covid-19 como poucos conseguiram fazê-lo, demitiu um ministro devido a uma relação amorosa imprópria e superou o maior ataque terrorista jamais ocorrido na Nova Zelândia, em que 51 pessoas morreram. Pelo meio aboliu os sacos de plástico, mudou a lei das armas, proibiu a venda de tabaco aos mais novos, colocou em prática a semana de quatro dias de trabalho, aumentou o salário mínimo, taxou as grandes fortunas e, esta quinta-feira, anunciou a demissão. Sai como entrou: pela porta grande.

O anúncio da despedida de Jacinda Ardern esta quinta-feira

O início

Nasceu na cidade de Hamilton, cresceu num ambiente rural e acabou por se formar em Ciência Política e Relações Internacionais. Chegou ao governo neozelandês pela mão da ex-primeira-ministra Helen Clark como conselheira do gabinete da então chefe do executivo.

Jacinda Ardern juntou-se ao Partido Trabalhista aos 18 anos e, dez anos depois, entrou para o parlamento (2008). Nos nove anos seguintes, enquanto deputada, as crianças, as mulheres e o direito de todos os neozelandeses a terem trabalho digno foram as suas grandes bandeiras.

Em 2017, com 37 anos, passou a ser a líder do Partido Trabalhista e a representante do eleitorado de Auckland no parlamento. Nesse mesmo ano tomou posse como primeira-ministra, tornando-se na mais jovem a ocupar o cargo desde 1856. Em simultâneo, tinha ainda os cargos de ministra Defesa, ministra das Artes, Cultura e Património e ministra da Redução da Pobreza Infantil.

Nem três meses depois de chegar ao governo, a primeira-ministra anunciou que estava grávida da primeira filha. A 21 de junho, Jacinda Ardern deu à luz a pequena Neve, tornando-se na segunda chefe de governo da história moderna a ser mãe enquanto estava em funções - em 1990, Benazir Bhutto foi mãe quando era chefe do governo do Paquistão.

 

Uma mulher de causas que não se assusta nem com sismos

Com Jacinda Ardern a Nova Zelândia foi dos primeiros países do mundo a abolir o uso de sacos de plástico. Em 2018, o país também aprovou uma lei que passou a proibiu os estrangeiros, com poucas exceções, de comprarem casa, numa tentativa de combater a especulação imobiliária no país. A partir do primeiro dia de 2023, passou também a ser proibida a venda de tabaco a todos aqueles que nasceram depois de 1 de janeiro de 2009, abolição que faz parte de um pacote de medidas antitabagismo - que foi replicado noutros países, como na Dinamarca e que continua a gerar polémica.

Em 2020, Ardern demitiu o ministro da Imigração, Iain Lees-Galloway, por ter uma relação imprópria com uma subordinada. Jacinda explicou que Lees-Galloway teve um caso consensual durante cerca de um ano com uma mulher que inicialmente esteve empregada numa das agências sob supervisão do ministro, e que mais tarde trabalhou como funcionária no seu gabinete. "As suas ações acabaram por me levar a perder a confiança nele enquanto ministro", justificou.

A Nova Zelândia é também um dos países que tem vindo a adotar a semana de quatro dias de trabalho. Logo em 2020, Jacinda abordou o tema e propôs aos empregadores considerarem a hipótese de uma semana de trabalho reduzida, como forma de impulsionar o turismo interno e ajudar os trabalhadores a arranjar um novo equilíbrio entre a vida profissional e pessoal.

Defendeu e impôs aumentos do salário mínimo e subidas das taxas de impostos para os mais ricos, uma das medidas para combater a crise provocada pela pandemia de covid-19.

Em 2022, após um encontro com a homóloga finlandesa, Sanna Marin - a mais jovem chefe de governo do mundo -, voltou a ser notícia. Isto porque um jornalista questionou se estavam reunidas por serem ambas jovens e mulheres. Arden não deixou sem resposta uma pergunta que considerou sexista.

Outro momento inesquecível na carreira de Jacinda Ardern envolve um sismo. A primeira-ministra neozelandesa discursava quando o chão começou a tremer.

Assim que sentiu o sismo, de magnitude 5,9 na escala de Richter, Jacinda Ardern agarrou-se por instantes ao púlpito onde discursava, antes de sorrir e dirigir-se a uma jornalista, perguntando-lhe: “Desculpe, houve uma pequena distração. Pode repetir a pergunta?”

Mãe com orgulho

Ao segundo dia como líder dos trabalhistas, Jacinda Ardern foi notícia em toda a imprensa internacional devido a duas entrevistas em que teve de responder à mesma pergunta: "Planeia ter filhos?". À segunda vez, Ardern não escondeu a revolta e, de dedo em riste, descompôs o entrevistador. O jornalista voltou a questionar se era uma "pergunta inaceitável” e a primeira-ministra respondeu, sublinhando que nenhuma mulher deveria fazê-lo.

“Para mim, não. Porque eu abri-me a respondê-la, mas para outras mulheres é totalmente inaceitável. Em 2017, dizer que uma mulher deve responder a essa pergunta num posto de trabalho é totalmente inaceitável. É uma decisão da mulher, quando escolhe ter filhos e não deve predeterminar se lhe devem dar ou não um emprego ou ter uma oportunidade de trabalho. Não tenho nada predeterminado, tal como a maioria das mulheres que trabalham."

Três meses depois de ser mãe, a filha voltou a estar no centro de todos os holofotes. Jacinda Ardern, já com 38 anos, tornou-se na primeira líder mundial a participar numa Assembleia das Nações Unidas com uma bebé ao colo. Entre brincadeiras e carinhos, as fotografias tiradas na sede da ONU, em Nova Iorque, foram muitas, numa reunião em que também Marcelo Rebelo de Sousa esteve presente.

“A Neve está praticamente quase todo o tempo comigo na Nova Zelândia, só não é sempre apanhada pelas objetivas. Aqui, quando está acordada, tentamos que ela esteja comigo. Foi essa a situação”, explicou, posteriormente, Ardern ao jornal New Zealand Herald.

Jacinda Ardern com a filha Neve na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, a 25 de setembro de 2018

Nos primeiros dias de março de 2019, a sua vida familiar voltou a ser notícia e, desta vez, não foi por causa da filha, mas sim do companheiro. Jacinda foi vista com um anel de diamantes, o que despertou a curiosidade dos jornalistas. Questionado o gabinete da primeira-ministra, veio a confirmação: Ardern e o apresentador de televisão Clarke Gayford ficaram noivos na Páscoa de 2018, após um namoro de longa data.

Mais recentemente, em novembro de 2021, Neve voltou a ser notícia. A filha da primeira-ministra resolveu interromper uma entrevista da mãe, que estava a ser feita através de um direto nas redes sociais. O modo como Jacinda lidou com a situação acabou por ser notícia em todo o planeta.

Depois, "um dos dias mais negros da Nova Zelândia"

Pouco faltava para a 01:00 da manhã em Portugal, do dia 15 de março de 2019, quando o australiano Brenton Tarrant, de 29 anos, deu início ao massacre mais mortífero da história da Nova Zelândia.

Tarrant entrou de rompante por duas mesquitas, munido com armas semiautomáticas, e abriu fogo. O ataque foi transmitido em direto no Facebook, durante 17 minutos. O resto do mundo foi acordando em choque. As mesquitas de Al Noor e Linwood, na cidade de Christchurch, estavam particularmente lotadas devido à tradicional oração de sexta-feira. Morreram 51 muçulmanos.

Jacinda Ardern classificou aquela fatídica sexta-feira como "um dos dias mais negros da Nova Zelândia". A primeira-ministra condenou o “ato de violência sem precedentes", contra vítimas que podiam ser migrantes ou refugiadas. “Esta é a sua casa. Elas são como nós. A pessoa que perpetuou essa violência contra nós não é.”

Num dia também único, a chamada à oração islâmica foi transmitida na rádio e televisão públicas, enquanto milhares de pessoas, incluindo a primeira-ministra, Jacinda Ardern, se reuniram em frente à mesquita Al Noor, onde morreram 42 das 51 vítimas. Seguiram-se dois minutos de silêncio.

Jacinda Ardern prometeu então uma reforma da lei sobre as armas. Até então, qualquer cidadão a partir dos 16 anos podia ter uma arma, desde que houvesse uma investigação do seu passado criminal e um atestado médico. Mas, assim que tivesse licença, qualquer pessoa podia comprar o que quisesse.

A promessa feita a 15 de março teve efeito seis dias mais tarde. Jacinda Ardern dirigiu-se à nação, num discurso televisivo, no qual anunciou a proibição da venda de armas.

Após o ataque, Jacinda Ardern e Emmanuel Macron uniram esforços para impedir a divulgação online de atos de extremismo violento e terrorismo.

Outro dos momentos marcantes de Jacinda, ocorreu após o massacre quando um estudante lhe perguntou: “Como está?”. Ardern emocionou-se, perante as objetivas, e pediu apenas: "Continuem a contar as histórias deles. São eles que temos de homenagear. Não falem nele [autor do ataque]. Não se debrucem sobre quem ele é. Pensem nos vossos alunos e amigos, na comunidade islâmica."

A 27 de agosto de 2020, Brenton foi condenado a prisão perpétua sem direito a liberdade condicional, pena que foi pela primeira vez aplicada na Nova Zelândia, tendo sido considerado culpado de 51 crimes de homicídio, 40 de tentativa de homicídio e um de terrorismo. Na leitura da sentença, o juiz Cameron Mander classificou as ações de Tarrant como “desumanas”, lembrando que o arguido “deliberadamente matou um bebé de 3 anos enquanto este se agarrava à perna do pai".

Perante a condenação sem precedentes, Jacinda confessou que “sentiu alívio" por saber que aquela pessoa "nunca mais veria a luz do dia”. "O trauma de 15 de março não é fácil de sarar, mas hoje espero que seja a última vez que temos de ouvir ou pronunciar o nome do terrorista."

Dois anos depois, novo ataque terrorista. Um homem feriu seis pessoas no centro comercial de Auckland. Jacinda Ardern classificou o incidente como "um ataque extremista" que foi levado a cabo por "um extremista violento". Mais uma vez o ataque tinha como alvo a população muçulmana.

E seguiu-se uma pandemia, e um bom exemplo

A Nova Zelândia foi dos primeiros países do mundo a reagir ao vírus misterioso que surgia em Wuhan. Chegou mesmo a ser considerado o melhor país do mundo a controlar a pandemia e foi dos primeiros locais a iniciar o processo de vacinação. Pelo meio, Jacinda aceitou a demissão do ministro da saúde, David Clark, que admitiu ter desrespeitado o confinamento em duas ocasiões. 

Ardern teve um papel importante, mas nunca esqueceu uma das suas maiores lutas: as crianças. No país surgiu um jogo que tinha como propósito entreter as crianças em tempos de quarentena, cujo objetivo era ter o máximo de peluches espalhados pela casa, para que as crianças se divertissem a apanhá-los, sem ter de ir à rua. A primeira-ministra também participou.

A política implementada foi rígida. Fecharam-se fronteiras, houve confinamentos, mas foi dos primeiros países a regressar ao (novo) normal. Estávamos em dezembro de 2021 e foi a própria Jacinda a partilhar nas redes e a relembrar o mundo do que era um churrasco.

Imagens do momento, retiradas do vídeo partilhado por Jacinda Ardern no Facebook

O adeus de Jacinda

Esta quinta-feira, Portugal acordou com o adeus de Jacinda Ardern. O anúncio foi feito pela própria: "Precisamos de uma nova liderança para enfrentar os desafios tanto deste ano como dos próximos três.”

Jacinda explicou que não se vai recandidatar ao cargo e que irá cessar funções a 7 de fevereiro. Depois de cinco anos a comandar a política da Nova Zelândia e a liderança do Partido Trabalhista, Ardern anunciou ainda a realização de eleições a 14 de outubro.

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