Advogadas não têm apoios sociais, trabalham logo a seguir ao parto e até doentes: “Sabe o que é teclar sem unhas que caíram por causa da quimio?” - TVI

Advogadas não têm apoios sociais, trabalham logo a seguir ao parto e até doentes: “Sabe o que é teclar sem unhas que caíram por causa da quimio?”

Justiça

Cristina quase morreu de cancro e chegou a ser multada em mais de 100 mil euros porque, no auge da doença, não conseguiu cumprir prazos processuais. Miriam também teve cancro e nunca deixou de trabalhar. Tânia perdeu um filho acabado de nascer, quase não teve apoios nem tempo para fazer o luto. Ângela saiu do tribunal de ambulância para o hospital onde foi operada ao coração. Cláudia teve uma apendicite e nem no serviço de urgências pôde deixar de se preocupar com prazos processuais

Cristina Filipe Nogueira recorda o ano de 2016 como “catastrófico”. Filha única, perdeu a mãe, separou-se do pai do filho que tinha então cinco anos e ouviu o diagnóstico que ninguém quer: tinha cancro. E um dos piores e mais agressivos. É advogada e tinha, na altura, diligências a decorrer. Foi fazendo o que pôde e pediu adiamento de algumas.

“Consegui ter despachos de juízes muito solidários, mas tive outros a dizer que devia ter acautelado a situação e a recusarem adiamento”, conta.

As diligências podem ser adiadas, mas os prazos da justiça são quase implacáveis com advogados doentes e têm de ser cumpridos. Cristina, que exercia funções como administradora judicial, foi tentando como pôde, muitas vezes com sacrifícios inimagináveis: “Sabe o que é escrever sem unhas porque caíram por causa da quimio?! A mim aconteceu-me isso!”

Ainda assim, houve prazos que não conseguiu cumprir e foi multada. As coimas, no valor de mais de 100 mil euros, foram o resultado dos mais de 20 processos de contraordenação que lhe foram instaurados pela Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça (CAAJ), o organismo independente que fiscaliza os administradores de Justiça.

O caso de Cristina foi notícia em 2018, no mesmo ano em que o seu cancro lhe apresentou uma metástase no cérebro. E ela acredita que só porque a sua história foi tornada pública se viu livre de uma dívida que sabe que dificilmente iria conseguir pagar. “As multas ficaram a zero porque perceberam que tinha a comunicação social por trás. Estamos num mundo podre”, lamenta.

Cristina deixou de exercer advocacia. E é com voz embargada que o diz: “Não exerço e digo isto com mágoa. Tanto que, quando percebi que a metástase tinha sofrido uma mutação e já não era tão letal e eu não iria morrer tão depressa como me tinha sido sentenciado, reativei a cédula. Fiz três anos de estágio não remunerado, prestei provas para ser advogada e queria morrer como advogada!”  

“Escrevia com o computador ao colo, ao lado da ‘torneirinha’”

Também Miriam Brice se viu a braços com um cancro de mama. Também ela nunca deixou de trabalhar. “Escrevia com o computador ao colo, ao lado da ‘torneirinha’ por onde entrava a quimioterapia. Quando tirei a mama, tinha um seroma nas costas que enchia de linfa (onde cortaram o músculo) e todos os dias tinha encontro marcado com o oncologista, depois do trabalho, para o drenar. Todos os dias ele retirava uma seringa daquele líquido, das minhas costas, e no dia a seguir lá estava novamente, por volta das 21:00. Todos os dias”, recorda.

Miriam admite que é “controladora” – “queria controlar a minha vida, as finanças e não ser um peso para ninguém”. E trabalhar ajudou-a a “ocupar a cabeça”. Mas também sabe que só aguentou porque “foi tudo muito rápido”. “Eu era muito nova e o meu médico era muito experiente e não perdeu muito tempo com os exames antes de eu ser operada. Fiz tudo muito depressa e meio em choque. Foi a primeira vez que me vi a braços com uma situação que eu não podia mesmo controlar. A vida deu-me uma chapada e veio mostrar-me que há coisas em que somos muito passivos”, confessa.

Miriam e Cristina olham para o caso de Joana Canas Varandas, uma advogada de 39 anos que morreu na última semana, vítima de um cancro que descobriu meia dúzia de dias depois de ser mãe. Joana, com um bebé muito pequeno, trabalhou quase até morrer e ia relatando as suas angústias em grupos de advogados nas redes sociais. A sua morte consternou a classe e está a gerar revolta entre os advogados.

“Não se trata de aproveitamento político da situação. Não existe nenhuma exploração da memória da colega. É a realidade de toda a advocacia, dos agentes de execução e dos solicitadores. A primeira vez que me deparei com esta situação foi em 2008, quando o meu colega Jorge Ferreira, então com 48 anos, morreu de cancro. O meu colega de escritório só não morreu na maior indigência porque eu e a minha colega, a título pro bono, assumimos o trabalho dele. O que não faltam são Joanas e Jorges por aí!”, denuncia Fernanda Almeida Pinheiro, a nova bastonária da Ordem dos Advogados, que tomou posse há poucos meses.

Mães sem colo e sem espaço para a dor

Na campanha para a Ordem, uma das bandeiras de Fernanda Almeida Pinheiro, a quem muitos já chamam “bastonária comunista” ou “bastonária sindicalista”, foi a possibilidade de escolha de cada profissional de contribuir para a Segurança Social (SS) ou para a Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS). Atualmente, qualquer advogado que pretenda exercer é obrigado a contribuir para a CPAS, mas não pode contribuir, ainda que cumulativamente, para a SS enquanto advogado. Só o poderá fazer se exercer outra atividade em paralelo, como formação ou consultoria. E há muitas atividades incompatíveis com a advocacia. A natureza não assistencial da CPAS (é um sistema que visa sobretudo a preparação de uma futura reforma) deixa muitos profissionais sem qualquer apoio social.

“Esta caixa foi gizada em 1947, numa altura em que nem existia Segurança Social pública, foi-se mantendo numa realidade que era a da época e não conseguiu evoluir. Não acautela os direitos dos advogados, dos solicitadores, dos agentes de execução”, resume Fernanda Almeida Pinheiro.

As mulheres são a face mais visível desta equação, porque não têm qualquer proteção na maternidade, por exemplo.

Tânia Cunha tem 30 anos e é advogada há dois. Em finais do ano passado foi mãe de um bebé que acabou por morrer cinco dias depois de nascer. Recebeu da CPAS 635 euros pelo nascimento do filho. “Pedi o apoio pelo internamento e foi negado por ser um internamento da gravidez. Se eu for internada porque parti um braço ou uma perna, tenho direito a apoio. Se for por gravidez não tenho. A licença de maternidade não foi concedida com o argumento de que tinha de ter 24 meses de contribuições para a CPAS”, recorda.

A polémica CPAS

Ainda que Tânia tivesse direito, os benefícios deixam muitas advogadas numa situação financeira delicada, que as obriga a regressar à barra dos tribunais poucas semanas depois de serem mães. De acordo com os estatutos da CPAS, “a todas as beneficiárias, com mais de dois anos de inscrição e de contribuições na Caixa, que se venham a encontrar em situação de maternidade, será concedido um benefício de valor igual a dez vezes o valor das contribuições mensais devidas pela beneficiária requerente com o valor mínimo de 1.905,00€ e o valor máximo de 3.810,00€”. Estes valores são atribuídos de acordo com a contribuição da beneficiária e dizem respeito ao benefício global.

Enquanto estão doentes ou de licença de maternidade (que permite às advogadas adiarem diligências por 60 dias), as advogadas têm de continuar a contribuir para a CPAS. E o valor mínimo da contribuição é de cerca de 270 euros. “Podemos pedir a suspensão das contribuições para a CPAS, mas um dos requisitos para receber qualquer apoio é ter contribuições em dia e cédula ativa. Ora se eu tivesse suspendido as contribuições durante o meu internamento, nem os 605 euros teria tido direito a receber pelo nascimento do bebé”, remata Tânia.

Tânia até tinha descontos para a SS anteriores ao início da atividade como advogada e tentou, junto do sistema de previdência do Estado, pedir baixa e licença de maternidade. Mas também daqui não teve qualquer proteção: “Enquanto advogada, não posso fazer descontos para a Segurança Social e, para receber da Segurança Social, tinha de ter descontos no mês anterior à baixa ou ao nascimento.”

Fernanda Almeida Pinheiro defende a integração da CPAS na Segurança Social ou a liberdade aos advogados de escolherem o sistema para onde querem contribuir. A liberdade de escolha foi, aliás, o resultado de um referendo feito aos advogados em 2021. A vontade da maioria dos advogados esbarra na Assembleia da República e, até agora, ainda não ganhou força de Lei. O único partido que tem apresentado projetos de Lei nesse sentido é o Bloco de Esquerda, que ainda na semana passada apresentou mais dois documentos à consideração do Parlamento.

Amamentar em tribunal

Por isso, e porque, mais uma vez, os prazos processuais não perdoam (também na maternidade é possível adiar diligências, mas os prazos não param), “há mulheres acabadas de parir, ainda com os agrafos da cesariana” a fazer julgamentos. “Tenho uma colega que foi mãe também em 2021 e dez dias depois estava a fazer julgamentos. O marido tirou a licença parental, já que ela não tinha direito, e ia com ela e com a bebé caso ela precisasse de ser amamentada”, conta a advogada Cláudia Marques Almeida, que também foi mãe recentemente.

A amiga de Cláudia não é caso único. Bernardete Ribeiro tem 52 anos e é advogada desde 1997. Tem dois filhos, um nascido em 2006 e outro em 2011. “Em 2006, tive uma diligência em Guimarães, era um julgamento para o dia todo. O meu marido teve de ir comigo e levar o bebé para o poder amamentar. O meu filho teria uns três meses. Eu estive cerca de um mês em casa, ia trabalhando, mas estava em casa. Depois deixei-o com a minha mãe”, lembra.

“Em 2011, estava a contar que o meu segundo filho nascesse no final de outubro e ele nasceu a 11 de outubro. Nasceu às 37 semanas. Tinha duas diligências nessa semana. Avisei os colegas do escritório, entraram em contacto com o tribunal, ambas as diligências foram realizadas, ambas eram com mulheres. Os meus clientes foram às diligências na expectativa de que as diligências fossem adiadas. Realizaram-se sem a minha presença. Tive alta numa quinta-feira e na sexta fui ao escritório buscar processos para levar para casa e trabalhar”, acrescenta.

“Chegámos a pagar as contas a duas advogadas doentes”

Depois de diagnosticada com cancro, Miriam Brice fundou um grupo de Facebook, o Careca Power, que hoje tem mais de 4 mil membros e se transformou numa associação que apoia mulheres com cancro. Miriam conhece a realidade da falta de apoios na doença aos advogados na pele e pelos casos que vai acompanhando através da associação.

“Há pelo menos dois casos de que me lembro em que chegámos a pagar contas a duas advogadas doentes. Água, eletricidade, gás e comida. E estes são os casos que se queixam, porque há muita pobreza envergonhada que impede muita gente de pedir ajuda”, conta Miriam Brice.

“As pessoas que têm cancro sofrem mutilações autênticas. Ficam com incapacidade, com sequelas. Os médicos fazem relatórios e enviam para junta médica. Antes da covid, esta junta médica demorava dois e três anos. Agora é automático… bem é um automático que demora alguns meses…, mas essa incapacidade automática que é dada é de 60% e depois temos de meter recurso para ser revista. E, com essa percentagem de incapacidade, poucos são os apoios que conseguimos”, sublinha.  

Os prazos, sempre os prazos

Os lamentos das advogadas dividem-se entre a falta de apoios sociais e os prazos, sempre os prazos da Justiça, que não se compadecem das suas maleitas. Cláudia Marques Almeida tem histórias para contar que davam um livro.

“Tive uma apendicite em 2017. Durante a madrugada fui internada para ser operada e o meu marido esteve comigo no serviço de urgências a apontar os meus prazos e diligências para os dias seguintes, para falar com colegas para cumprirem os prazos por mim e assegurarem os julgamentos”, conta.

“Nesse mesmo ano, fiquei bastante doente com uma doença autoimune rara. Tinha enxaquecas horríveis, perdia os sentidos, não conseguia andar 10 metros sem parar para descansar e fiquei praticamente cega. Continuei sempre a trabalhar, sem alternativa. A única ajuda era de colegas que me faziam algumas diligências. Estive várias vezes em julgamento em completo sofrimento e o meu marido ou os meus pais iam levar-me e buscar aos tribunais porque eu já nem conseguia conduzir”, acrescenta.

E prossegue: “Tive um acidente de automóvel grave, quando eu e uma colega íamos a caminho de Coimbra para um julgamento. Capotámos na autoestrada e tivemos de ter ajuda para sair do veículo. Depois, fomos de ambulância para o hospital. A minha colega pediu ao escritório que informasse o tribunal do sucedido. Assim foi feito. O resultado: a juiz fez o julgamento na mesma, na hora marcada.”

É que, também para os advogados doentes, a Justiça é muitas vezes cega. E se há juízes e outros advogados que se compadecem e aceitam adiar julgamentos e outras diligências, há outros que são irredutíveis e “justificações só aceitam a da funerária e eu tenho de ser o morto”.

Do tribunal para o hospital

As histórias de Cláudia são familiares a Ângela Loureiro, uma mulher de 50 anos e mais de metade da vida como advogada. Estava em plena sala de audiências, a 7 de setembro de 2020, quando se se sentiu mal. Foi chamado o INEM e foi transportada ao hospital. Só saiu de lá três semanas depois e após muitos exames e uma cirurgia ao coração.

“Voltei ao tribunal a 16 de novembro, só para ir à leitura de uma sentença e por opção. Só voltei a trabalhar verdadeiramente a meio de março do ano seguinte, ainda que em casa fosse fazendo algumas coisas”, conta.

“As minhas diligências não foram todas adiadas. A minha preocupação foi telefonar para os meus colegas e pedir-lhes que contactassem os tribunais onde tinha diligências marcadas. Tive colegas das partes contrárias que perceberam perfeitamente e não se opuseram às alterações e tive colegas que se opuseram. Quem fez as diligências e as peças processuais que dependiam de prazos foram os meus colegas de escritório”, explica.

Ângela lamenta que “os advogados sejam tão maltratados”, porque são “o garante da Justiça e dos direitos” dos clientes. “Devemos ser a única profissão deste país que não tem direito a fazer greve, não podemos estar doentes… A profissão perdeu a sua essência, muito por culpa de quem dirige a justiça neste país. Os advogados em prática individual não podem estar ao mesmo nível das grandes sociedades”, sublinha.

Ângela quase morreu de ataque cardíaco em plena sala de audiências e é com o coração na boca que afirma que “os advogados são os escravos da Justiça”.

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