Os smokings já estão preparados, o discurso alinhavado. Este domingo, o realizador João Gonzalez e o produtor Bruno Caetano vão desfilar na mais famosa passadeira vermelha de Hollywood e ocupar o seu lugar no Dolby Theatre, em Los Angeles, com otimismo mas sem grandes nervos. Se acontecer, se "Ice Merchants" ganhar o Óscar para Melhor Curta-Metragem de Animação, será o primeiro filme português a receber um Óscar. E isso será "incrível". Mas os dois portugueses têm "os pés bem assentes na terra" e sabem que as probabilidades não jogam a seu favor. "Aconteça o que acontecer, nós já sentimos que ganhámos. Só o facto de estarmos nomeados e estarmos aqui já é uma vitória", diz João Gonzalez, numa conversa telefónica com a CNN Portugal, poucos dias antes da cerimónia.
"Temos de preparar alguma coisa para dizer, porque o discurso só pode ter 45 segundos e não podemos correr o risco de não saber o que dizer", diz Gonzalez. Mas essa é mesmo a única preocupação. "Realisticamente", e apesar de todos os prémios que o filme já ganhou, o realizador não acredita que vá subir ao palco.
Olhando para os outros nomeados nesta categoria, Gonzalez admite que "todos têm grande qualidade e são muito interessantes". " Somos amigos, já nos conhecíamos antes das nomeações. A animação é um mundo muito pequeno", conta. O seu filme preferido é "An Ostrich told me the world is fake and i believe it" de Lachlan Pendragon, mas aquele que tem mais hipóteses de ganhar será "The Boy, the Mole, the Fox and the Horse", de Charlie Mackesy e Peter Baynton.
"Não depende unicamente da qualidade dos filmes. Há muitos fatores em jogo: fatores políticos, as produtoras, a campanha, o alcance mediático... Há alguns produtores que estão a jogar em casa, enquanto nós somos aquele estúdio independente de Portugal", explica Bruno Caetano. "The Boy, the Mole, the Fox and the Horse" tem o apoio da Apple e da BBC, tem "um orçamento milionário de campanha e uma propagação mediática incomparável a qualquer um dos outros".
"A probabilidade maior é não nos safarmos, mas se nos safarmos vai ser fixe. Não vale a pena estar a criar uma expectativa muito gigante, é aproveitar o momento", diz o produtor da Cola Animation.
Um mês e meio a viver o sonho americano
Para falar a verdade, o dia dos nervos foi 24 de janeiro, quando foram anunciados os nomeados aos Óscares. Havia três curtas-metragens portuguesas na shortlist, duas delas na categoria de Curta-Metragem de Animação. Não era a primeira vez que acontecia. Há muito que a animação portuguesa dá cartas e é reconhecida "lá fora". Portanto, a hipótese de poder acontecer, de facto, uma nomeação portuguesa, pela primeira vez, era real e era entusiasmante.
"A partir do momento que o filme foi shortlisted nós colocámos essa possibilidade, poderíamos ter muita sorte e o filme ser nomeado, e por isso já tínhamos tido algumas reuniões com o nosso estratega e estávamos mais ou menos preparados", conta João Gonzalez. Mas, depois, afinal, parece que não estava assim tão preparado. "Nós soubemos ao mesmo tempo que toda a gente. E de repente começaram a cair telefonemas. Passei à volta de quatro horas a responder a perguntas de jornalistas."
A partir daí, admite, toda a "dinâmica" da sua vida "mudou drasticamente". "O tempo começou a passar muito rapidamente a partir desse momento", diz. Foi preciso pôr de pé uma campanha de promoção e fazer as malas para apanhar o avião para Hollywood.
João Gonzalez e Bruno Caetano chegaram a Los Angeles para o "luncheon" dos nomeados, a 13 de fevereiro, e desde então têm estado lá, em campanha, um pouco à semelhança do que fazem os políticos quando tentam cativar os votos dos eleitores.
Mesmo sem os milhões que outras produções têm, o filme português conseguiu apoios especiais para a promoção do Ministério da Cultura e da Câmara do Porto, e ainda terá um apoio do ICA - Instituto do Cinema e Audiovisual.
"Isso permitiu-nos fazer várias coisas. Uma é estar aqui tempo suficiente, termos um espaço para ficarmos, vivermos aqui, onde é tudo mais caro e temos de ir de carro para todo o lado", explica Bruno Caetano. Ao longo deste último mês, os dois portugueses têm-se desdobrado em contactos, participado em conferências e noutras ações de promoção. Visitaram os estúdios da Disney, da Aardman e da Dreamworks, conheceram muitos profissionais da animação e, o que é importante, muitos membros da Academia.
Por outro lado, o financiamento também permitiu colocar em marcha uma campanha através de emails e das redes sociais, com colocação de anúncios muito direcionados para serem vistos em determinados locais, à volta do mundo, e por determinadas pessoas. Isso também contribuiu para que o filme captasse um maior interesse por parte dos jornalistas internacionais.
"Eu estou mais habituado a trabalhar no filme e achamos sempre que o filme fala por si mesmo, mas esta é uma situação bastante peculiar, é preciso fazer campanha", admite João Gonzalez. São os ossos do ofício de um nomeado aos Óscares. "Tem sido muito intenso", confirma Bruno Caetano. "Temos duas pessoas que nos ajudaram na estratégia, mas a verdade é que a campanha tem sido toda feita por mim e pelo João. Tem sido um trabalho árduo. O João teve de fazer imensos materiais, editar bastantes vídeos, estivemos em contacto com as pessoas que iam fazer as intervenções nas redes sociais, estamos em cima de tudo. Mas também tem sido muito gratificante. O entusiasmo alimenta a nossa energia. Tem sido uma aventura."
"Temos conhecido imensas pessoas que nós admirávamos, que nos influenciaram ao longo da nossa carreira", conta João Gonzalez. "São celebridades que nós crescemos a ver na televisão, mas elas existem mesmo na realidade e são pessoas extremamente acessíveis. Algumas delas viram o nosso filme e têm perguntas a fazer, comentários sobre o que gostaram, o que lhes despertou mais atenção. Tem sido bastante especial."
"Ice Merchants": um pequeno filme universal
São pouco mais de 14 minutos. Uma casa no topo de uma montanha, à beira de um precipício, em equilíbrio instável. O uivar do vento, o ranger da madeira. Um pai e um filho que se dedicam a produzir gelo e a vir todos os dias à povoação, no sopé da montanha, para vendê-lo. Há uma mãe ausente, há pessoas que voam, há chapéus pelo ar. E há uma música que nos vai acompanhando, e que também foi composta por Gonzalez.
João Gonzalez lembra-se do momento em que teve a ideia para esta história. Estava a estudar em Londres e tinha um prazo a cumprir: deveria entregar a ideia para o projeto final do curso no dia seguinte. "A ideia surgiu-me na madrugada e foi entregue assim um bocado às três pancadas", conta. O projeto foi depois desenvolvido, ao longo de dois anos, já com a Cola Animation.
Vendo agora, todo o sucesso que o filme tem alcançado, com mais de 50 prémios no currículo, entre os quais um Annnie Award e o prémio do Festival de Cannes, o realizador percebe que "Ice Merchants" tem algumas características que o tornam mais "universal" e que poderão ter contribuído para a sua grande aceitação: "não só pelo tema, a perda, todos nós já perdemos alguém, como também o facto de não ter palavras pode ter ajudado na comunicação, em continentes diferentes", explica. Apesar disso, Gonzalez "não estava à espera deste impacto todo".
"O mais gratificante é saber que o filme passa para as pessoas e que as pessoas se sentem tocadas pelo filme. Saber que as pessoas se estão a deslocar à sala de cinema para ver o nosso filme é a maior felicidade que me podem dar", diz o realizador. Até ao momento, "Ice Merchants" já teve mais de 7.500 espectadores nas salas de cinema portuguesas e continua o seu caminho.
A curta está em exibição em mais de 20 salas de cinema em todo o país e, a partir deste domingo, fica também disponível para aluguer e compra nas plataformas de "video on demand" de todos os operadores, assim como estará também disponível nas plataformas Filmin e Rakuten TV, e no site da Cinemundo. Além disso, o filme continua no circuito de festivais e já foi comprado por alguns canais de televisão: "Ainda há muita coisa a acontecer", garante Bruno Caetano.
"Qualquer filme é feito para ser visto pelas pessoas. Uma curta-metragem de animação por norma tem alguma dificuldade na distribuição, não tem muita visibilidade. O tempo de vida geralmente são dois anos, no circuito de festivais, de animação ou não, ou seja, é para um grupo que gosta de acompanhar determinado tipo de cinema. Não chega muito a um público generalista. Portanto, poder partilhar o filme em cinemas para um público mais vasto, em canais de streaming, em vídeoclubes, é ótimo", diz o produtor.
E a seguir? Trabalhar mais
Com ou sem estatueta dourada, no dia a seguir aos Óscares a vida dos nomeados continua. "Se ganharmos, vamos certamente passar o dia a dar entrevistas", antevê João Gonzalez. Se não, vão aproveitar para relaxar e estar com os amigos em Los Angeles, até apanharem o avião de regresso a casa na quarta-feira, com chegada a Lisboa na quinta.
E, depois, férias? "Ah, não, na sexta-feira estarei no escritório, tenho muito trabalho atrasado", ri-se Bruno Caetano."Temos imensos projetos a decorrer na Cola Animation, apesar desta loucura toda."
João Gonzalez também tem trabalho para fazer: a próxima curta-metragem (de que ele ainda não pode falar) já está a caminho. Mas depois há-de tentar tirar umas férias: "Acho que vou precisar de um tempo para acalmar depois disto".
No fim desta aventura, além de toda a alegria, da experiência e dos contactos feitos, espera-se que fique alguma semente para o futuro: "A possibilidade de a animação portuguesa continuar a crescer e a chegar a um grande público, visto como algo com muita qualidade, isso é muito importante", diz o realizador. E Bruno Caetano confirma: "A coisa mais importante que vamos trazer é a possibilidade de outros cineastas perceberem que isto não é impossível. A parte mais difícil é quebrar o gelo. Ainda há dois anos, a Regina Pessoa ganhou um Emmy e estávamos todos entusiasmados a pensar que ao menos já ganhámos um Emmy uma vez. Aquilo na altura foi uma coisa épica e incrível. E dois anos depois aqui estamos."