Será a invasão da Ucrânia o tubo de ensaio para a invasão de Taiwan? - TVI

Será a invasão da Ucrânia o tubo de ensaio para a invasão de Taiwan?

  • 22 fev 2023, 07:00
Taiwan (Getty Images)

ENSAIO || José Filipe Pinto, professor Catedrático da Universidade Lusófona reflete sobre a invasão da Ucrânia e se esta invasão poderá funcionar como tubo de ensaio para a invasão chinesa de Taiwan

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1. Ao longo da História a Humanidade já se viu confrontada com vários pontos de viragem. Acontecimentos que disfuncionaram o paradigma vigente e impuseram um novo modelo. Devido à invasão russa da Ucrânia, o ano de 2022 representa o mais recente ponto de viragem, pois o espoletar desse conflito colocou em causa a ordem mundial.

Até então, depois da implosão da URSS e do consequente desmoronar do mundo bipolar, vivia-se a fase da hegemonia estadunidense na qual continuava a prevalecer o Direito Internacional, cujo berço remonta à paz de Vestefália de 1648, e os princípios da carta da ONU, designadamente, o princípio do mundo único. Um paradigma que resistiu, tanto a ataques terroristas, como aquele que foi perpetrado em 11 de setembro de 2001, como à ascensão e expansão, que se julgava apenas comercial, da República Popular da China. Uma ordem mundial que, no entanto, começou a soçobrar no dia 24 de fevereiro de 2022.  Um relatório especial do Council on Foreign Relations preparado por Robert D. Blackwill e Philip Zelikow, em fevereiro de 2021, defende que, desde 1900, o surgimento de todas as guerras internacionais, exceto nos casos da invasão alemã da Polónia em 1939 e da invasão americana e britânica do Iraque em 2003, foi uma surpresa para todos, exceto para aqueles que estavam a planejar a guerra. Porém, a História mostra que também há conflitos antecedidos de uma espécie de ensaio. A anexação russa da Crimeia em 2014 funcionou como tubo de ensaio para a invasão da Ucrânia perpetrada em 2022.

José Filipe Pinto, professor Catedrático da Universidade Lusófona

Este ensaio procura refletir sobre se essa invasão também poderá funcionar como tubo de ensaio para a invasão chinesa de Taiwan.

2. Quando Putin resolveu iniciar a oficialmente designada operação especial na Ucrânia, os EUA, tal como a NATO, não foram apanhados de surpresa. De facto, já é do domínio público que, três meses antes da invasão russa da Ucrânia, o Embaixador dos EUA em Moscovo, John Sullivan, e o Diretor da CIA, William Burns, se tinham reunido em Moscovo com um dos principais conselheiros de Putin, Nikolai Patrushev, para lhe darem conta de que os EUA estavam cientes da intenção russa e, simultaneamente, para o avisar de que, no caso da invasão russa da Ucrânia, o Ocidente não repetiria o quase alheamento a que voluntariamente se remetera aquando da anexação russa da Crimeia.

Este dado indicia que a Casa Branca há muito percebera que o eurasianismo de Putin não demoraria a reclamar o controlo da Ucrânia, considerando que esta pertencia ao seu espaço vital e que só fazia sentido se ligada a Moscovo. A desvalorização do aviso estadunidense e a consequente invasão da Ucrânia faz com que o ano de 2022 represente um ponto de viragem na Ordem Mundial porque Putin deu largas à vontade de construir a sua própria ordem e, na balança de poderes, a Ucrânia situa-se na zona de confluência dos seus interesses com a ordem ocidental liberal, liderada pela Terra do Tio Sam.

Uma revisitação do espírito da guerra fria. Só que, na conjuntura presente, não é apenas a Federação Russa que está apostada no desafio à ordem hegemónica com sede na Casa Branca e na qual a União Europeia se integra.

3. Na verdade, a China, há muito que vinha fazendo questão de reivindicar o seu espaço de intervenção na arena internacional. A memória dos tratados desiguais e do século de humilhação como alavanca para a afirmação internacional.

Xi Jinping, o líder chinês que concentrou em si o maior poder desde a queda de Mao, reaproveitou a ideia que já tinha sido de um general da dinastia Qing e que assenta no pressuposto de que a ordem mundial está novamente em jogo devido a mudanças geopolíticas e tecnológicas imprevisíveis e isso requer um ajuste estratégico. Daí o lançamento da Iniciativa da Rota da Seda. Por isso o avultado e sistemático investimento nos instrumentos de soft power que, face à discrepância entre os elevados objetivos traçados e os fracos resultados alcançados, não demorou a ser alterada para sharp power.

Assim, face à invasão russa da Ucrânia, a China, ao arrepio do sentimento de condenação que ecoou na Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, recusou-se a criticar abertamente a decisão de Putin. Em nome do desejo oficialmente propagandeado de um Mundo pós-hegemónico, Xi Jinping não perdeu o seu sorriso seráfico e limitou-se a apelar à resolução pacífica do conflito. Uma estratégia que, mais uma vez, não surpreendeu a Administração Biden, como se comprova pelas afirmações da vice-Secretária de Estado Wendy Sherman ao reconhecer a preocupação crescente relativamente ao comportamento de um país que, por um lado, se está a tentar apresentar internacionalmente como um mediador credível e, por outro, não revela a mínima intenção de quebrar a parceria ilimitada que celebrou com a Rússia.

 Xi Jinping limitou-se a apelar à resolução pacífica do conflito na Ucrânia. Foto: Ju Peng/Xinhua via AP

4. O mais recente relatório da Estratégia de Defesa divulgado pelo Pentágono identifica a Rússia como uma ameaça grave e a China como o desafio mais transcendente e sistémico.  Uma avaliação que traz à colação a questão de ser o Pacífico, ou mais exatamente a região Indo-Pacífico, o destino manifesto dos Estados Unidos.

Aliás, não foi por acaso que a potência liderante da ordem liberal resolveu reativar a aliança quadrangular (Quad) que tinha celebrado, em 2007, com a Índia, o Japão e a Austrália. Uma aliança destinada a manter a ordem internacional baseada em regras liberais, que a China procura minar através de um desafio revisionista do status quo. Taiwan como principal preocupação da Administração Biden, conhecida que é a vontade de Pequim de anexar Taiwan. Assim, quando a então Presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, ousou ignorar os avisos de Pequim e visitou Taipé, a China foi lesta a responder a esse gesto, que considerou inamistoso e, para além de cancelar ou suspender oito diálogos militares oficiais e os canais de cooperação com a Casa Branca, realizou exercícios militares em redor de Taiwan.

Importa, por isso, perceber se a invasão russa da Ucrânia pode servir como uma espécie de tubo de ensaio para uma anexação violenta de Taiwan por parte da China.

Nancy Pelosi ousou ignorar os avisos de Pequim e visitou Taipé no início de agosto. Aqui, fotografada com a Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen. Foto: AP

5.  À partida, a situação de Taiwan relativamente à China pouco mais tem a ver com a da Ucrânia face à Federação Russa do que a pertença a um espaço dominado por um vizinho poderoso que se considera no direito de reivindicar a ocupação desse território. No entanto, há alguns elementos em comum. Desde logo a existência de uma elite económica – os oligarcas ucranianos e os empresários de Taiwan – com ligações privilegiadas à sede do poder em Moscovo e em Pequim, sendo que, neste caso, a China é não apenas o principal parceiro comercial de Taipé, mas também a maior fonte externa de investimento de capital. Além disso, há reminiscências de uma História com largos períodos partilhados, ainda que com frequentes desencontros. Durante esses períodos, tanto a Rússia como a China recorreram aos seus poderosos ecossistemas de desinformação para condicionarem a opinião pública da Ucrânia e de Taiwan, sendo habituais as reuniões com personalidades opositoras aos respetivos governos.

De registar que Pequim ao mesmo tempo que dificulta o movimento turístico com destino a Taipé e reduz o número de estudantes chineses a frequentarem as universidades de Taiwan, incentiva os residentes e os estudantes taiwaneses ao movimento de sentido inverso. 

6. Quanto às diferenças, para além daquela que decorre de apenas a Ucrânia ser um país independente, a circunstância de Taiwan ser um arquipélago, assume relevância especial. De facto, num cenário de guerra, os seus habitantes, ao contrário do que se verificou com os ucranianos que não foram recrutados para a defesa do país, não dispõem de condições para sair de Taipé em caso de invasão militar e reclamar o estatuto de exilado. Aliás, a insularidade também constitui um obstáculo para o fornecimento de ajuda, designadamente no que concerne à dimensão militar.

Outra diferença reside na capacidade de Pequim para bloquear a participação de representantes de Taiwan nos maiores fóruns internacionais. Além disso, no que ao elemento bélico diz respeito, há a registar que, ao contrário do que se passou com o apoio dos Estados Unidos à Ucrânia, que só teve início após a invasão, em Taiwan esse apoio já vem a acontecer há vários anos.

Navio de guerra dos EUA em trânsito no estreito de Taiwan. Foto: Mass Communication Specialist Seaman David Flewellyn/U.S. Navy via AP

7. O atual estado das relações entre Pequim e Taipé não agrada à China, pois a Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, está a conduzir a sua política sem procurar afrontar a China com a exigência de independência formal, mas recusando a anexação do arquipélago pela China que acusa de ter um bloqueio mental relativamente ao real sentido do “Consenso 1992”, celebrado quando Lee Teng-hui e Jiang Zemin dirigiam os respetivos territórios, e ao princípio presente na expressão “one China”. Uma política muito semelhante àquela que Jimmy Carter se viu obrigado a assumir em 1978, como forma de contornar os denominados “Taiwan obstacles” nas relações com a República Popular da China, ou seja, encerrou as relações diplomáticas com Taiwan, mas continuou a manter um relacionamento não oficial com Taipé.

Uma estratégia que se mantém há quatro décadas, pois, como Richard N. Haass, Presidente do Council on Foreign Relations, reconheceu no ano que antecedeu à invasão russa da Ucrânia, Taiwan representa a questão com maior potencial para transformar a concorrência sino-americana em confronto direto e que só a delicadeza diplomática tem logrado manter uma situação que designa por paz precária no Estreito de Taiwan.

A melhor estratégia porque permite aos Estados Unidos jogarem em dois tabuleiros. Assim, têm conseguido dissuadir a China de recorrer à força contra Taiwan, uma vez que Pequim não tem a certeza de que os Estados Unidos não se colocariam militarmente ao lado de Taiwan, mas, simultaneamente, impedem Taipé de declarar formalmente a independência, pois não lhe dão a certeza do apoio face à previsível reação militar de Pequim. Uma estratégia que traz à memória a neutralidade colaborante de Salazar durante a II Guerra Mundial.

8. A forma interrogativa presente no título indicia a dificuldade de previsão numa conjuntura em que a ordem mundial parece destinada a evolucionar para um mundo de múltiplas ordens (Pinto, 2023).

De facto, bem pode Wendy Sherman afirmar que todos os países deveriam avisar Pequim contra o conflito sobre a ilha. Xi Jinping, a exemplo de Putin, está apostado em construir a sua própria ordem e, como tal, desvaloriza qualquer advertência feita em nome da ordem liberal. Na sua ordem, os princípios já não obedecem à visão ocidental. Os direitos humanos e a liberdade, sobretudo de expressão, têm outra conotação.

Face ao exposto, o conflito na Ucrânia constitui, efetivamente, um tubo de ensaio para Pequim. A reação, não apenas ocidental, serviu para Xi Jinping proceder à contagem de espingardas no caso de decidir anexar Taiwan. A dimensão tecnológica presente no conflito permitiu-lhe aquilatar a real capacidade bélica de que dispõe. Como é óbvio, não será o elevado custo humano que condicionará a decisão de Xi Jinping. Os regimes populistas totalitários, apesar de se assumirem como a alavanca do povo, só se preocupam com ele no abstrato.

Como Adriano Moreira (1963) ensinou, em qualquer situação de conflito importa saber se o mesmo é orientado por divergências ideológicas ou apenas pela luta de interesses alheios a conceções ideológicas diferentes. O “Mundo Harmonioso”, propagandeado por Xi Jinping não é pós-hegemónico. O pragmatismo expansionista que subjaz à construção da Ordem da Rota da Seda decidirá, ao arrepio da Ordem Liberal, se a anexação de Taiwan se impõe.

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