Quando Luís Campos e Cunha, antigo ministro das Finanças de José Sócrates, subiu ao sexto andar do Tribunal Central Criminal de Lisboa, o antigo primeiro-ministro e principal arguido no processo Marquês estava a sair da casa onde mora na Ericeira para atacar o julgamento que decorre na sua ausência e sem que seja representado por um advogado nomeado por si. “O tribunal desenvolveu uma tamanha hostilidade à minha defesa e ao meu advogado, que ele achou que tinha chegado a um ponto em que isso ofendia a sua dignidade profissional e também a capacidade para exercer convenientemente a minha defesa”, afirmou Sócrates enquanto um dos seus maiores críticos internos no Governo que comandou prestava juramento no Campus da Justiça. “O tribunal tem o que quer”.
Representada na sala de audiências por um advogado oficioso, a defesa de Sócrates - que continua em suspenso - ouviu o agora economista de 71 anos a traçar um perfil demolidor do seu antigo superior no Executivo, especialmente devido a uma grande divisão entre o antigo primeiro-ministro e o seu ministro das Finanças: Sócrates queria colocar Armando Vara na direção da Caixa-Geral de Depósitos e o seu ministro das Finanças à época era contra.
Vinte anos depois, Campos e Cunha conta que se sentiu “pressionado” para aceder à vontade do então chefe do governo que, como referiu esta terça-feira em julgamento, falava-lhe deste tema “de forma curta e direta”. “Era para demitir a administração e nomear estes gajos”.
Campos e Cunha, que apresentou a sua demissão cinco meses depois de ser nomeado para o cargo, fez “ponto de honra” em não nomear Armando Vara, o que fez com que a relação com Sócrates se deteriorasse. “A única coisa que queriam era pôr pessoas do PS, e isso não faço e não fiz”. “Eu não queria jobs for the boys”, afirmou, explicando que a única justificação que o então primeiro-ministro lhe deu para demitir a direção da Caixa e substituí-la por uma que incluísse Vara era o facto de Sócrates querer afastar os “seus inimigos” de lá. “Ele dizia 'estes são os nossos inimigos'”.
Em vez disso, Campos e Cunha preferiu pedir à própria Caixa-Geral de Depósitos que propusesse uma reorganização interna, mas admitiu que, ainda assim, e a pedido de Sócrates, chegou a almoçar com Armando Vara. “Perante a insistência de José Sócrates nesta questão, fui almoçar com ele. Lembro-me que era finais de junho, era um dia bonito, comemos na esplanada, num restaurante que havia no CCB que era simpático, não muito caro e tive o cuidado de dizer que o convite era a título pessoal”.
No final desse almoço em que falaram sobre a situação da Caixa, Campos e Cunha decidiu “pagar com cash” para que nada ficasse registado nas contas do Executivo. Além disso, fez questão de rasgar a fatura para que Vara “percebesse que eu não ia pôr aquele almoço nas contas do Ministério”. “Nessa altura, já tinha a minha decisão feita e não achava que Armando Vara seria a pessoa ideal para esse cargo”.
O antigo ministro das Finanças de Sócrates, que apresentou a sua demissão em julho de 2005, apontou que nunca partilhou com Vítor Martins, à época presidente da CGD, a pressão que tinha recebido para o demitir, mas garantiu ao tribunal que mal saiu do Executivo socialista este antigo dirigente foi das primeiras pessoas a quem telefonou. “Ele sabia que os dias dele estavam contados e eu tinha sido o escudo protetor”.
À juíza, Campos e Cunha sublinhou que outra das razões que o levou a perder a confiança em José Sócrates foi o facto de, quando foi sondado para o cargo, ter combinado com Sócrates que iria haver um aumento de impostos, ainda que o programa do PS e do Governo tenha sido omisso relativamente a isso. “Não haver um aumento de impostos é virtualmente impossível”, afirmou. Problema: dias depois, à comunicação social, Sócrates descartava essa ideia. Depois disso, terá também recebido do antigo primeiro-ministro a indicação que, a partir desse momento, era preciso “começar a pedagogia do aumento de impostos”.
Ainda antes de tomar posse, Campos e Cunha foi confrontado com essa possibilidade pela comunicação social, tendo o economista confirmado a necessidade de subir impostos, o que causou um grande mal-estar dentro do Governo. O problema veio a evoluir até ao ponto de Sócrates e Campos e Cunha não se falarem. “Não conseguia falar com ele pessoalmente e tinha Bruxelas em cima de mim, era uma situação muito incomodativa e um embaraço internacional”. Mas, quando ambos se encontravam em sede de Conselho de Ministros, o antigo governante parecia focado numa só coisa: “Então e isso da Caixa?”, contou.
O testemunho de Campos e Cunha acabou por ser objeto de contraditório por parte do advogado oficioso chamado pelo tribunal para defender Sócrates, que disse apenas ter conhecimento do processo pela imprensa e que admitiu não ter condições para o representar nesta altura. À semelhança, durante a manhã, também o testemunho de Maria João Santos, secretária de Sócrates ao longo de vários anos, não foi alvo de qualquer interrogatório por parte da defesa de Sócrates.
Pedro Delille, representante de José Sócrates durante 11 anos, decidiu não se apresentar esta terça-feira na sessão de julgamento e enviou um requerimento a pedir que seja retirado do processo por considerar que o mesmo é “de brincar”. Mas isso criou um problema, como o arguido não foi notificado o papel de Delille ainda não produziu efeitos e a juíza viria a determinar que a audiência continuasse nos mesmos moldes, não conferindo ao advogado oficioso a suspensão dos trabalhos para que possa consultar o megaprocesso e culpando o antigo advogado de Sócrates por esse embaraço.
Antiga secretária de Sócrates tinha de o relembrar de pagamentos
A decisão tomada antes de Maria João Silva começar a ser ouvida chegou a motivar protestos de vários advogados, mas a verdade é que a mesma acabou por ser inquirida pela juíza e pelo Ministério Público, tendo confirmado ao tribunal que continuou a receber dinheiro de José Sócrates já depois de o mesmo ter saído do cargo de primeiro-ministro.
"Nunca tive nenhum contrato com José Sócrates. [...] Se eu não tenho um contrato, no fundo ele está a dar-me uma ajuda pelos serviços que estou a prestar de secretariado", afirmou a secretária, precisando que era João Perna quem entregava o dinheiro. Maria João Santos acrescentou também que as entregas ocorreram exclusivamente na sua casa, em Azeitão, concelho de Setúbal, e não também, como indiciam interceções telefónicas, na sede do PS, no largo do Rato, em Lisboa.
A ainda secretária do Partido Socialista explicou que não tinha um contrato de trabalho com José Sócrates, mas que o mesmo lhe fez transferências como “ajudas”. Isto porque, como explicou, o antigo primeiro-ministro pediu-lhe para que tirasse uma licença sem vencimento e o viesse ajudar com várias questões pessoais, nomeadamente a promoção e divulgação do livro que Sócrates publicou em 2014: “A confiança no mundo”.
Porém, era frequente que a secretária tivesse de lembrar a Sócrates de lhe pagar por essas ajudas. Além disso, Sócrates incumbia Maria João de fazer uma série de pagamentos de “recibos verdes, IMI, hotéis, livros”. Essa relação viria a continuar já depois de Maria João regressar ao Largo do Rato, tendo Sócrates solicitado os seus serviços várias vezes, mesmo durante o seu horário de trabalho - o que lhe causou “algum constrangimento”. “Se estou numa chamada ou os meus superiores a pedir me alguma coisa eu não posso parar e atender uma chamada”.
Já à saída do tribunal, José Ramos, o advogado oficioso de Sócrates avisou que irá tentar entrar em contacto com o arguido para perceber a melhor estratégia de agora em diante. "Tentarei falar com o senhor engenheiro José Sócrates e veremos o que é que podemos fazer a seguir".