"O ordenado não dá para mais". Têm 30 anos ou mais, mas ainda vivem com os pais. Da natalidade à saúde mental, como isso afeta os portugueses - TVI

"O ordenado não dá para mais". Têm 30 anos ou mais, mas ainda vivem com os pais. Da natalidade à saúde mental, como isso afeta os portugueses

Direito à habitação (Teresa Nunes/Getty Images)

Marisa tem 38 anos e Joana 30. Ambas querem sair de casa dos pais, mas não veem como. As duas fazem parte de um conjunto de milhares de portugueses que colocam o país no topo de uma estatística em que ninguém quer estar. Mas não são só os jovens que podem sair prejudicados da situação

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“É impensável comprar uma casa em Lisboa”. O pensamento de Marisa Patuleia assalta milhares de outros jovens, alguns deles fora da capital. Aos 38 anos, e com três trabalhos diferentes, esta mulher é um dos milhares de portugueses com mais de 30 anos que não conseguem sair de casa dos pais.

De resto, a situação portuguesa é mesmo a pior em toda a União Europeia. A média de saída de casa em Portugal ronda os 33,6 anos, um número que se explica em grande parte pela dificuldade no acesso à habitação, e que poderá vir a ter outras consequências no futuro, nomeadamente na natalidade e na saúde mental.

No caso de Marisa, ela até tem namorado, o que significa que pode dividir as contas com alguém, mas os dois não conseguem juntar o dinheiro suficiente para dar entrada para o pagamento de uma casa, ao passo que os preços das rendas são simplesmente proibitivos para se pensar nisso. A única alternativa é ficar a viver com os pais, nos Olivais.

“O ordenado não dá para mais. Ou se é rico ou não dá. O banco não financia qualquer pessoa, temos de estar acompanhados por alguém, e mesmo assim pedem fiador e muito dinheiro pela entrada”, afirma a mulher que ainda tem outro motivo para ficar em casa: ajudar os pais financeiramente. De resto, essa é uma das razões que a leva a não sentir pressão. “Se os deixar sozinhos ficam muito apertados”, acrescenta, referindo que os pais têm problemas de saúde e que sempre funciona como mais uma ajuda numa altura de aumento dos preços provocado pela inflação.

Com o namorado, está à procura de uma casa na ordem dos 180 mil ou 200 mil euros com a tipologia T2, algo difícil de conseguir em Lisboa ou até mesmo nos arredores. O namorado mora sozinho, mas juntar-se a ele está fora de questão. “Ficaríamos desconfortáveis” naquele T0. “Estamos bem assim”, conclui.

Marisa Patuleia vive há 38 anos em casa dos pais (DR)

É como Joana Ribeiro, que aos 30 anos não quer ir viver para “o primeiro buraco que encontrar”. Esta formada em Gestão do Lazer e Animação Turística na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril sempre viveu com os pais, e não vislumbra um cenário diferente em breve.

Não precisou de sair de casa para estudar, uma vez que os pais viviam em Lisboa e conseguia ir de transportes. A situação foi correndo e, nem quando conseguiu um emprego estável na área, em 2017, teve capacidade para sair.

“O turismo é bastante precário. Na maioria das vezes recebemos o ordenado mínimo e a maior parte do dinheiro vem das gorjetas ou comissões”, explica, sinalizando que isso não chega para tentar um empréstimo junto de um banco para um crédito à habitação. “Só conta o apresentado nos recibos de vencimento ou IRS, muitas vezes próximo do salário mínimo. Isso, para comprar ou arrendar casa em Lisboa, é insuficiente”.

“Não dava mesmo para mudar de casa, os preços em Lisboa estão incompatíveis com um ordenado mínimo”, acrescenta.

Trabalhou em turismo entre 2014 e 2020, alternando entre o desemprego quando precisava de se focar mais a sério nos estudos. Já depois de acabar o curso, em 2017, começou como guia intérprete na área de Lisboa e arredores. A chegada da pandemia de covid-19 custou-lhe o emprego e esteve seis meses desempregada.

Entretanto, mudou-se com os pais para Samora Correia, na margem sul do rio Tejo, onde seis meses após ter ficado sem emprego encontrou trabalho como administrativa num banco. É aí que ainda trabalha e prevê continuar, mesmo que seja fora da sua área de formação.

Hoje, e mesmo a cerca de 40 quilómetros da capital, continua a não conseguir ter uma casa sozinha. Mesmo em Samora Correia, onde as casas são novas, grandes e para venda. “Não há o típico T1 de Lisboa”.

“As minhas condições melhoraram significativamente, mas os preços subiram. Fica mesmo difícil, não quero abdicar de coisas”. É o ponto chave: Joana tem um nível de vida que quer manter, e sabe que isso seria impossível manter ao mesmo tempo que se paga uma casa, seja a crédito, seja a renda.

A ambição de ter uma casa própria continua lá, mas, para já, não quer abdicar de "coisas mais prioritárias" como viajar, jantar fora com os amigos ou fazer a sua vida sem ter de "contar os trocos". "É prioritário manter esse estilo de vida porque sinto que se não tivesse essa componente a minha saúde mental ia sair afetada", conta.

Joana Ribeiro tem 30 anos e quer sair de casa dos pais, mas não pensa nisso para não ficar frustrada (DR)

Natalidade, uma consequência

Marisa Patuleia pensa em constituir família, em ter filhos. Mas assim é simplesmente “impossível”, assumindo que viver em casa dos seus pais é uma “condicionante”. A mulher deixa, neste ponto, uma crítica ao Governo: “Falam da baixa natalidade, mas não estão preocupados em perceber porque acontece”.

Essa também não é, para já, uma preocupação para Joana, até porque deixou de “estipular prazos”. “Se a coisa não acontece gera mais frustração e tristeza”. O objetivo de Joana é “mesmo conseguir estar bem” dar-se ao “luxo de algumas coisas”.

Margarida Mesquita não tem dúvidas. Uma saída mais tardia de casa dos pais é um claro contributo para um abaixamento da natalidade. A professora, que tem vários estudos publicados na área da sociologia familiar, destaca que há "duas esferas que se interligam", esclarecendo que haver menos nascimentos estará claramente ligado a uma maior precariedade dos jovens portugueses.

"Ter uma habitação própria e constituir família têm de ser duas coisas vistas como um conjunto", aponta, referindo que, mais do que políticas de natalidade, é essencial que o Governo aposte em políticas de família, dotando as pessoas que desejem ter filhos de capacidades para os terem. Na prática, uma coisa conduz à outra: dar mais condições para que os portugueses tenham habitação também os ajudará a ficarem mais próximos de terem uma família. E criar essas condições é algo que "compete ao Estado".

E, mesmo que se consiga encontrar uma casa, dificilmente vai ser algo que corresponda ao projeto idealizado. Se o sacrifício para procurar uma habitação que dê para uma família de três, imagine-se para quatro ou cinco. "O projeto de ter um filho é delineado com características que exigem condições de base, e a habitação é um fator crítico", refere Margarida Mesquita.

E isso passa por fazer com que as pessoas não tenham de abdicar de várias coisas para o conseguirem.

Uma mudança social

É que abdicar de algumas das coisas de que gostamos era normal há uns anos, há umas décadas. O comportamento natural era os jovens saírem de casa cedo para se casarem e constituírem família, numa lógica familiar em que a mulher era, muitas vezes, uma pessoa totalmente dedicada àquele contexto. Também isso mudou.

Margarida Mesquita sublinha que "hoje a constituição de uma nova família já não é sempre o motivo para sair de casa", apontando até que existe um decréscimo dos casamentos em Portugal, que, em 2020, foi o segundo país com menor taxa de casamento, de acordo com dados do Eurostat. De resto, os mesmos dados davam conta de que o nosso país era um dos poucos em que o número de filhos fora do casamento era superior ao de filhos entre pessoas casadas.

Por um lado, segundo a professora universitária, há uma "perceção de que a conjugalidade é mais precária", ao mesmo tempo que homens e mulheres começam a valorizar coisas que antes não eram tema. "São as tais novas dimensões de vida que hoje são mais valorizadas que no passado", diz Margarida Mesquita, apontando diferenças no comportamento social da mulher: "Hoje elas não querem abdicar da esfera profissional, até porque isso lhes traz uma autonomia económica".

E depois há outra dimensão comum a ambos os sexos: uma maior valorização do investimento profissional e pessoal. "Há um mercado mais aberto, os jovens são mais do mundo, mais instruídos e viajam", refere a especialista. No fundo, como diz Joana, há "luxos" que se sobrepõem à saída de casa e à constituição de família.

São as "novas aspirações dos jovens", uma população "mais escolarizada" e que tem projetos de vida diferentes. "Hoje já não há o percurso do passado de casarem novos para terem filhos", vinca Margarida Mesquita, apontando a dimensão fundamental da vida atual como o trabalho, que acaba por também ser o calcanhar de Aquiles nestas situações.

"A maior parte dos jovens carece de condições financeiras para se poder autonomizar. Os salários são baixos e a há precariedade laboral, o que acaba por ser crucial para delinear um projeto de vida", conclui, falando ainda no mercado da habitação como algo muito "vulnerável" para quem procura autonomizar-se.

E a saúde mental?

Joana falou em frustração, e esse pode ser um sentimento fácil para quem, como ela, procura há anos e anos por um local para viver. O mesmo pensamento assalta Marisa, que de vez em quando ainda se imagina a pensar quando poderá, finalmente, ter o seu espaço próprio.

A ambição de ter uma casa sua continua lá, mas, para já, Joana não quer abdicar de "coisas mais prioritárias" como viajar, jantar fora com os amigos ou fazer a sua vida sem ter de "contar os trocos". "É prioritário manter esse estilo de vida porque sinto que se não tivesse essa componente a minha saúde mental ia sair afetada", conta.

"Em que é que ter o meu espaço vai ajudar mais que estar com amigos ou poder fazer uma viagem?”, questiona.

O psicólogo André Tavares Rodrigues, que está habituado a lidar com jovens, assinala que "o efeito da saída tardia dos jovens de casa dos pais na saúde mental é um fenómeno mundial" que faz parte de uma "nova realidade socioeconómica".

"A forma como os indivíduos sentem estas alterações é visível, tanto na intensidade, como na ativação emocional das suas rotinas. Neste sentido podemos ter casos em que certos indivíduos não possuam capacidades de resiliência e de adaptabilidade social positivas e adequadas, e aí entramos no campo da intervenção psicológica e de problemas de saúde mental", acrescenta o psicólogo, destacando que esta realidade sofre consequências ainda piores depois de termos passado por uma pandemia que trouxe "imprevisibilidade e incerteza", mas também o distanciamento físico e perda de poder de compra em vários casos.

Problemas em casa

"Enquanto morares nesta casa fazes o que eu digo?". Já todos ouvimos esta frase, ou algo parecido, em alguma altura da vida, certo? Agora, isto acontecer aos 30 ou mais anos pode tornar-se embaraçoso e motivo de conflito.

Margarida Mesquita destaca este como um dos grandes problemas que podem surgir caso os jovens continuem a ter dificuldades para saírem de casa dos pais, uma vez que as duas partes se deparam com uma situação antagónica. "O jovem sente que é autónomo e os pais têm uma perspetiva contrária", aponta a professora universitária.

É o que acontece, por exemplo, quando alguém de 30 anos chega a casa depois de uma saída à noite e tem os pais a questionarem esse comportamento, mesmo que o jovem já seja financeiramente autónomo. Este choque pode gerar um conflito familiar e desgastar a relação diária.

"Vivendo em conjunto é mais fácil que os pais desejem intervir na vida dos jovens, mesmo que, apesar de não serem autónomos na habitação, são autónomos financeiramente", explica Margarida Mesquita, falando num potencial de conflito que "não é desejável".

André Tavares Rodrigues não vê uma relação clara entre uma maior estadia em casa dos pais e a deterioração da relação entre os familiares. Para o psicólogo isso "depende da qualidade das relações estabelecidas", admitindo que, no caso de serem negativas, tudo pode evoluir para piores cenários: depressão, ansiedade, insónia, negação, falta de atenção e concentração ou até mesmo perda de memória podem manifestar-se nestes casos, que também potenciam a probabilidade de violência entre pais e filhos, bem como o aparecimento de comportamentos de risco.

Por outro lado, caso essas relações sejam positivas, a estadia pode servir para vincular e fomentar a relação, "podendo muitas vezes serem reproduzidas quando os filhos se tornarem pais".

"Aqui o importante é que ambas as partes tenham a consciência de que esta é uma etapa de autonomização e encará-la como um processo de aprendizagem e superação de dificuldades. Genericamente, teremos de estar atento aos sinais emocionais apresentados tais como os sentimentos de stress e raiva, histeria, angústia, perda de controlo, irritabilidade, frustração ou exaustão emocional antes que tomem domínio generalizado nas dinâmicas familiares", refere o especialista.

Nestes casos, e antes de gerar um sentimento de frustração que termine em algo mais grave, os jovens devem "levar os pais a compreenderem que para ultrapassar esta etapa é necessário dar um passo de cada vez". No fundo, conclui André Tavares Rodrigues, passa por definir e respeitar limites, ao mesmo tempo que se adotam práticas de família saudáveis, sempre numa lógica de um "diálogo sincero".

Será possível comprar casa em Lisboa?

O preço do metro quadrado em Lisboa anda muito perto dos quatro mil euros no caso da compra e quase 20 euros em caso de renda. Isso significa que uma casa de 50 metros quadrados, por exemplo, custará 200 mil euros para aquisição ou uma renda mensal de 800 euros.

Mas há um programa do Estado, criado em 2007, que visa ajudar jovens a sair de casa dos pais. O Porta 65 já ajudou 140.115 jovens a arranjarem casa em Portugal, de acordo com os dados facultados pelo Ministério da Habitação à CNN Portugal.

O ano de 2022 ainda não fechou (falta contabilizar o mês de dezembro), mas será o ano com mais subvenções atribuídas pelo Governo, que executou 26,5 milhões de euros nesses 12 meses, o que o ministério destaca como "a maior verba de sempre", e que faz parte de um bolo total de 235 milhões de euros.

Ano

Número de jovens / período de candidatura

2022

16393*

2021

16910

2020

16861

2019

14924

2018

13121

2017

11890

2016

10638

2015

11657

2014

11523

2013

11161

2012

10527

2011

11923

2010

17600

2009

17520

2008

12772

              2007

2348

*O ano de 2022 ainda não está completo, uma vez que ainda estão em análise as candidaturas submetidas de dezembro de 2022

Podem beneficiar deste programa jovens com mais de 18 de anos e menos de 35 anos, sendo que, no caso de ser um casal, um dos elementos pode ter no máximo 36 anos, desde que o outro não tenha mais de 34 anos. Estes jovens têm ainda de apresentar as seguintes condições: titularidade de um contrato de arrendamento para habitação permanente; não receber quaisquer subsídios ou apoio à habitação; não ser proprietário de outro prédio ou habitação; não ser parente do senhorio.

Cumpridos os requisitos os jovens podem enviar uma candidatura para o Porta 65, que tem três fases distintas todos os anos (abril, setembro e dezembro). Caso seja elegível poderá ser lhe atribuída uma renda que varia consoante a tipologia da habitação e o concelho. Em Lisboa, por exemplo, em 2023 um T0 tem um custo máximo de 600 euros, enquanto um T1 sobe para 900 euros e as restantes tipologias ficam acima dos mil.

Pode consular aqui os diferentes valores para o ano passado consoante a tipologia e o concelho.

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