Começo por devolver-lhe a pergunta que dá título ao seu novo livro: como é que se educam crianças desafiantes?
O que o livro tenta transmitir é que existe um equilíbrio entre o amor incondicional, a aceitação, a presença, mas, ao mesmo tempo, alguma firmeza e alguma confiança da nossa parte. Porque, às vezes, ou somos amorosos ou somos firmes. E esquecemo-nos de que as duas coisas precisam de estar juntas.
Existe um meio termo?
Há um caminho do meio, digamos.
Aborda no livro o conceito da "criança alfa", que é normalmente descrita como mimada e mandona, e diz que estas crianças são mal compreendidas. Como é que as conseguimos reconhecer?
Uma criança alfa é uma criança que sente que precisa de estar no controlo e isso vê-se em vários comportamentos do seu dia-a-dia. Dou vários exemplos no livro: as crianças que sentem que tem de ser tudo à maneira delas, a típica criança que chamamos de mandona, que está sempre a tentar orquestrar todas as interações, aquela criança que quer ser a melhor, ter sempre a última palavra, estar sempre à frente. Ao mesmo tempo, vê-se também em coisas mais disruptivas, como o bullying, que é algo que compreendemos muito mal e tem origem num comportamento de defesa, uma criança que a certa altura da sua vida foi tão ferida que sentiu que precisava de adotar esse comportamento para se defender.
Mas como é que uma criança se torna alfa? Tem a ver com o passado, com as interações com os pais, com os cuidadores, com os que a rodeiam?
É importante explicar, antes de mais, que criança alfa não é um conceito meu, é de um autor que refiro muito no livro, o Gordon Neufeld, foi ele quem cunhou esta expressão. E isto não é uma personalidade, não é uma característica que a criança terá sempre, é uma consequência das dinâmicas que se instalaram na vida daquela criança. Acontece em função do ambiente em que a criança vive e é consequência do comportamento que os adultos têm com ela.
Também diz que os pais têm de resgatar o "instinto alfa" para aprenderem a lidar com filhos alfa. Como é que isso se faz?
Primeiro, é preciso que os pais confiem em si mesmos, algo que hoje é cada vez mais difícil porque há cada vez mais especialistas, cada vez mais conselhos, cada vez mais influencers que nos dizem que devemos fazer assim ou assado. É muito difícil encontrarmos a nossa própria voz, o nosso próprio caminho. E não há receitas para a parentalidade, aquilo que resulta numa casa pode não resultar, de todo, noutra. É importante termos esta noção. Os pais têm de saber que eles são a melhor aposta para os filhos deles. São eles quem os conhece e têm a chave para o futuro dos seus filhos, para o bem-estar dos seus filhos.
E há alguma estratégia para os pais se relacionarem com os filhos em momentos desafiantes, sejam crianças alfa ou não?
As pessoas vêm muito à procura de estratégias, na consulta fazem-me essa pergunta diariamente. E as estratégias que já usam passam muito pelos castigos, as punições, mas querem o "faça assim ou assado". Não gosto de oferecer estratégias, gosto de falar em atitudes e gosto que as pessoas compreendam o que está na base das dinâmicas que se instalam para saberem como as podem resolver, porque algumas estratégias podem funcionar no imediato, mas têm consequências negativas a longo prazo. Mais do que uma estratégia, precisamos de saber que o que tem de estar na base da educação que damos aos nossos filhos é o amor incondicional e temos de saber transmitir-lhes esse amor incondicional. Precisamos de saber de que forma é que os nossos filhos se sentem mais amados, mais aceites, mais seguros.
É importante para si desconstruir esta ideia das crianças mimadas, impossíveis ou com mau feitio?
Sim, ainda se faz muito a atribuição desse rótulo às crianças. Até foi criada uma patologia, que se chama perturbação de oposição, como se os problemas de comportamento das crianças viessem de características intrínsecas delas. Isto não é verdade. Temos de ver para além disso, porque as crianças funcionam em função das características que construímos com elas. Não são as crianças que são mimadas ou difíceis. Há algumas características de personalidade, é o caso das crianças altamente sensíveis, de quem também falo no livro, que podem ser mais desafiantes, mas isso é uma parte mínima do comportamento da criança. É muito importante desconstruir a ideia da criança mal-educada, porque a criança pode ser muito mal-educada numa circunstância e ser muito bem-educada noutra circunstância, dependendo da forma como os adultos estão a lidar com ela em cada momento.
Mas como é que os pais devem, então, lidar com as birras dos filhos?
Com aceitação. Um ponto-chave desses momentos de frustração intensa que as crianças às vezes expressam é percebermos que temos de aceitar as emoções que estão na base disso, mesmo que não gostemos do comportamento. Ou seja, temos todo o direito de dizer aos nossos filhos que não podem bater, que não podem partir coisas, mas não temos o direito de os julgar na emoção que estão a sentir, porque isso eles não controlam. Ninguém é responsável pelas suas emoções, as emoções simplesmente acontecem-nos, isto é um ponto essencial. E outro ponto essencial é que sejamos capazes de lidar com as nossas emoções, porque as birras das crianças despertam em nós emoções com que, muitas vezes, não sabemos lidar. E se não sabemos lidar com as nossas emoções, também vai ser muito difícil aceitar as dos nossos filhos.
Os pais devem fazer algum trabalho de introspeção?
Sim, é importante.
E como é que, nos momentos de frustração, os cuidadores conseguem encontrar a calma para aceitar e acolher a birra do filho?
Corre muito a ideia de que, no momento das birras, as crianças estão descontroladas, explosivas, e os pais têm de ficar calmos. Isto não é muito realista e não é exatamente necessário. É suposto que as emoções dos outros também tenham algum eco em nós: se eu tenho um filho aos berros, descontrolado, é suposto que também fique um bocadinho alterada, no mínimo! E é desejável porque eles também querem ver o efeito que as emoções deles têm em nós, querem esse espelho, precisam de um eco. O que é preciso é que esse estado e alteração não me levem para um nível de descontrolo e rejeição das minhas emoções, tão grande, que eu fique incapaz de acolher as emoções deles. Se já estou irritada, frustrada, zangada, mas consigo integrar isso, tudo bem, também lhes transmito que é possível que eles integrem as emoções deles. Agora, se a minha frustração me faz entrar num estado de defesa tão grande, ou num estado de descontrolo tal, que já não consigo lidar com as coisas, aí já não vamos ajudá-los. No fundo, temos de mostrar que temos a capacidade de integrar aquelas emoções, ou seja, mostrar que as emoções deles nunca são tão intensas ao ponto de nos fazerem descontrolar completamente, ao ponto de nos assustarem, ao ponto de nos intimidarem. É mostrar "isso foi intenso, eu fiquei aborrecida, nervosa, fiquei irritada", está tudo certo. Apesar de tudo, no meio desta irritação, eu estou no controlo da situação. Mostrar que aquilo não nos desestabiliza.
E tem de haver firmeza também? Acolher a birra, mas, se for preciso dizer não, ser capaz de o manter?
Exatamente. Nunca termos tanto medo das emoções das crianças que precisemos de mudar de ideias. Se eu decidi que o não era o mais indicado, vamos acolher a frustração, o choro, a tristeza, a zanga, mas não precisamos de mudar de opinião. E acontece muitas vezes os pais ficarem tão aflitos com as manifestações da criança que imediatamente cedem. Isso transmite à criança que aquela emoção é tão perigosa que os pais fizeram tudo para a evitar.
Escreve no livro que os pais devem estar atentos aos sinais de alarme na relação com os filhos. Que sinais são estes?
O principal sinal de alarme acontece quando o exercício da parentalidade já se torna tão esgotante e tão cansativo que sentimos que não conseguimos relaxar na presença dos nossos filhos. Este é um grande sinal de alarme, quando sentimos que já é tudo tão difícil, que é tudo uma luta constante, que estamos permanentemente exaustos. Claro que há dias em que as crianças são mais cansativas, cuidar de uma criança da maneira como temos a vida estruturada hoje é exigente, temos muitas frentes para cuidar e perdeu-se aquela aldeia que antigamente nos ajudava, quando as crianças eram criadas em comunidade. Hoje estamos muito sozinhos e, claro, que há fatores de cansaço que são inevitáveis. Mas quando já nem sequer temos prazer em estar com os nossos filhos, é um grande sinal de alerta.
Recebe no consultório muitos pais que chegam a esse ponto?
Cada vez mais. Vivemos verdadeiramente uma epidemia de crianças alfa que têm pais completamente esgotados e perdidos. Muitas vezes num estado de quase desespero.
São pais à procura da "normalidade", querem saber se os comportamentos dos filhos são "normais? E isso existe na parentalidade?
O normal é muito relativo. A verdade é que, antigamente, os adultos conviviam com muitas mais crianças, muitos tinham sido irmãos mais velhos, havia sempre tios, sobrinhos, primos, as crianças estavam mais presentes na nossa vida. E os adultos, quando se tornavam pais, já tinham visto muitas crianças crescer e isso dava-lhes uma ideia mais natural daquilo que era o desenvolvimento infantil. Hoje, muitos adultos, quando se tornam pais, nunca conviveram de perto com uma criança, não fazem a mínima ideia do que é suposto, do que é esperado. E isso vem com uma certa angústia. As redes sociais, depois, também amplificam muito certas situações: os filhos dos outros fazem isto, será que o nosso também devia fazer? Há muito ruído à nossa volta. Mas não há normal, as crianças são todas diferentes, o seu desenvolvimento também se desenrola de maneiras muito diferentes, não há que ter essa preocupação.
A multiplicidade de terapeutas, coaches, especialistas das redes sociais, gera mais ansiedade?
Sim. Às vezes, dou comigo na consulta a dizer que não nos podemos esquecer de que as pessoas nunca põem as partes más nas redes sociais: quando estamos num momento de crise não nos filmamos a gritar com os nossos filhos. As pessoas só filmam aquilo que é bom e é muito fácil criarmos a ilusão de que nas outras casas corre tudo bem, menos na nossa. E também há muitos influencers sem o mínimo de formação a darem receitas, mas aquilo que resulta para eles pode não resultar para outras pessoas.
Na introdução do seu livro defende que, mais do que proteger os filhos das quedas, devemos ser o colo que os ampara depois de caírem. Não é rever o que aprendemos da chamada educação tradicional?
Sim, acabámos por cair nesse excesso de proteção. Em Portugal, sofremos mais desse mal até do que noutros países, principalmente ao nível físico, não deixamos as crianças andarem muito livremente. E as crianças precisam de aprender a cair, aqui em sentido metafórico, mas precisam de ter espaço para cometerem os seus erros. Obviamente, não vamos deixá-las atirarem-se de uma janela, tem de haver balizas e limites, mas esses limites não podem ser tão grandes que lhes transmitam a sensação de que o mundo é perigoso.
Continuando na educação chamada tradicional: porque é que ainda há tantos pais que acreditam nos benefícios da chamada palmada pedagógica?
É uma questão cultural. Foi assim que fomos educados e é muito duro olharmos para trás e aceitarmos que os nossos pais podiam ter feito melhor. Falta essa capacidade para aceitar que não tivemos pais perfeitos e que também falharam nalgumas coisas. Também tem a ver com correntes educativas: hoje temos cada vez mais consciência, até ao nível da fisiologia, cada vez mais estudos e evidências da forma como os maus-tratos afetam o cérebro e o desenvolvimento das crianças. Outra coisa que ainda vigora nos nossos dias tem a ver com o comportamentalismo, ainda olhamos para a educação como "se eu fizer X acontece Y", se eu der uma palmada a uma criança que está a fazer um disparate ela assusta-se e vai sentir-se inibida de o repetir. Não se veem as consequências que isso tem a longo prazo, o que acontece dentro da criança quando fazemos isso repetidamente. Os castigos, as palmadas, as consequências, se olharmos de forma superficial, parece que funcionam porque têm resultado imediato: a criança assustou-se e parou. O que não vemos é que, se ela se assustou, ativou o seu sistema de alerta e isso terá consequências a longo prazo se a palmada for repetida.
Dedica um capítulo do livro à educação na era digital. Que nos desafios nos traz?
Um dos grandes desafios dos pais, sobretudo a partir de uma certa idade das crianças, é a questão dos ecrãs, que são cada vez mais omnipresentes e com resultados muito nefastos. Há uma coisa que é fundamental percebermos: antes da adolescência as crianças precisam de ter regras relativamente rígidas em relação aos ecrãs. E têm de ser os pais a definir essas regras, porque é algo que tem um enorme potencial aditivo. Hoje há um consenso cada vez maior de que, até aos dois anos, os ecrãs deviam ser proibidos na vida das crianças. Creio que em Taiwan, por exemplo, quem expuser crianças com menos de dois anos a ecrãs é multado, a consciência dos danos que isto provoca está a crescer, apesar de tudo. E uma coisa que também é fundamental, sobretudo na adolescência, onde já não é tão fácil os pais definirem regras rígidas, é dar o exemplo. Os pais são os primeiros a estar agarrados ao telemóvel por tudo e por nada. É fundamental que os momentos de refeição, por exemplo, sejam livres de ecrãs e que as pessoas conversem. Temos de mostrar aos nossos filhos que o alimento principal é a relação humana, a relação que criam connosco. Se tiverem relações sólidas, com pessoas presentes e disponíveis, terão menos necessidade de fugirem para as redes sociais e ecrãs.