Licença menstrual: o que é, para que serve e como as mulheres portuguesas têm de trabalhar ou faltar por causa das dores - TVI

Licença menstrual: o que é, para que serve e como as mulheres portuguesas têm de trabalhar ou faltar por causa das dores

Ginecologistas dizem que as dores menstruais incapacitantes não devem ser desvalorizadas

Apesar de não existir em Portugal uma regulamentação que permita a aplicação de uma licença menstrual, alguns ginecologistas já costumam passar baixas por dor incapacitante associada a doenças clínicas que o justifiquem

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Espanha pode vir a tornar-se no primeiro país da Europa a regulamentar uma licença médica para as mulheres que sofrem de dores menstruais muito fortes. As primeiras notícias davam conta de uma proposta de baixa de três dias, mas outras mais recentes até referem que podem ser mais.

Esta é uma proposta avançada pelo Ministério da Igualdade do executivo espanhol, que ainda está em discussão, no âmbito de um projeto de lei que deverá ser aprovado em Conselho de Ministros na próxima terça-feira, de acordo com o jornal El País. 

Apesar de ainda estar a ser delineada, a proposta já está a motivar um debate aceso dentro do próprio executivo, formado por uma coligação entre o Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) e o Unidas Podemos (extrema-esquerda). Se, por um lado, há quem defenda a entrada em vigor desta medida como mais um passo na luta pelos direitos das mulheres, por outro lado há quem considere que esta proposta pode ter o efeito contrário, promovendo a discriminação no local de trabalho.

A primeira vice-presidente do governo, Nadia Calviño, garantiu que o governo está a analisar a questão, estando “absolutamente comprometido com a igualdade de género”. Contudo, manifestou algumas dúvidas, sobretudo em relação ao risco associado de discriminação das mulheres no mercado de trabalho.“[O governo] nunca vai adotar medidas que possam resultar na discriminação das mulheres”, sublinhou a também ministra da Economia. 

Por sua vez, a segunda vice-presidente do executivo espanhol, Yolanda Díaz,  distanciou-se da posição de Calviño, defendendo que é mais discriminatório “não ter a sensibilidade para compreender que as mulheres e os homens são diferentes e que o mundo do trabalho não é neutro”.

O Ministério da Igualdade, que avançou com a proposta, sugeriu que, se o Estado assumir os custos associados às baixas das mulheres que sofrem com dores menstruais fortes, os empresários não terão motivos para "alegar" a “discriminação” para com as mulheres.

Apesar das diferentes posições manifestadas dentro do executivo, fontes governamentais adiantaram ao El País que ainda é possível chegar a um consenso se a medida não significar uma licença automática, mas sim se tiver de passar pelo crivo médico para detetar uma doença de base que explique as dores menstruais fortes.

O que dizem os especialistas

É certo que a menstruação está geralmente associada a um desconforto que pode ser variável durante a fase menstrual, com as mulheres a sofrerem picos de dor durante um período do dia, por vezes durante alguns dias. 

“Mas há doenças clínicas que fazem com que a menstruação seja regularmente e recorrentemente muito intensa e que não ceda facilmente a terapêuticas simples, como a administração de uma pílula ou como os anti-inflamatórios, e isso pode ser muito incapacitante para algumas mulheres”, explica à CNN Portugal o ginecologista Alexandre Lourenço, do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Estas doenças clínicas tanto podem ser mal-formações do colo do útero, endometriose ou adenomiose, que provocam dores menstruais “que são impossíveis de trabalhar”, sublinha o especialista. Estas últimas consistem numa doença crónica em que o endométrio se desenvolve fora do útero. Porém, enquanto “a adenomiose está no meio do músculo interino, a endometriose está de fora da cavidade uterina”.

Nestas situações, as mulheres na fase menstrual sentem mais do que um desconforto e uma dor pontual. “Têm dores muito fortes, geralmente na região pélvica, há quem chegue mesmo a ter perda de sangue nas fezes e, mesmo que façam medicação analgésica, continuam com dores muito fortes”, refere Mariana Torres, ginecologista no Hospital Lusíadas, em Lisboa.

"Nalguns casos, as mulheres podem mesmo desmaiar", acrescenta Alexandre Lourenço, explicando que se trata de “uma reação vagal causada por uma dor mesmo muito incapacitante”.

No caso dos miomas uterinos, uma doença que consiste no crescimento exagerado da parede do útero, é frequente ocorrer um “fluxo menstrual muito abundante” que provoca uma “perda de sangue em demasia” e que, por essa razão, também pode estar associada a uma maior incapacitação durante a fase menstrual.

Em Portugal, o mais comum é a ausência laboral não remunerada

Apesar de não existir em Portugal uma regulamentação que permita a aplicação de uma licença menstrual, alguns ginecologistas já costumam passar baixas por dor incapacitante nestas situações clínicas que o justifique, pelo menos durante os primeiros três dias da menstruação, onde se verifica, geralmente, o pico de dor menstrual.

“O que acontece em Portugal é que a baixa médica até três dias não é paga, ou seja, é uma justificação de ausência laboral sem ser paga e requer sempre observação médica”, indica Alexandre Lourenço.

Ambos os ginecologistas contactados pela CNN Portugal salientam a importância da observação e avaliação médica antes da regulamentação de uma licença menstrual, manifestando, por isso, algumas reservas quanto a uma eventual licença “automatizada”, isto é, uma licença que permita uma baixa automática para todas as mulheres durante a fase menstrual.

“O mais importante é perceber, em primeiro lugar, se se trata de uma situação clínica ou se é uma situação que pode ser melhorada com várias medidas, nomeadamente a utilização da pílula ou outras medidas que diminuam a contração uterina, que é o que provoca a dor menstrual”, defende o especialista. Caso contrário, em situação de doença, as mulheres podem beneficiar de uma licença mensal quando menstruam.

A ginecologista Mariana Torres alerta também para a “normalização” de dores menstruais incapacitantes, sublinhando que “não é normal uma mulher não conseguir trabalhar por estar menstruada”.

Muitas das mulheres que sofrem destas doenças "não sabem que as têm", passando anos e anos sem um diagnóstico que lhes permita receber o tratamento mais adequado. Para a especialista, este é mesmo “o principal problema” das dores menstruais incapacitantes. Ainda assim, mesmo depois de devidamente diagnosticadas e apesar de todas as abordagens de tratamento, “há mulheres que continuam a ter dores menstruais incapacitantes”.

Uma medida que remonta ao pós-Segunda Guerra Mundial, mas que ainda não chegou à Europa

As licenças menstruais de três dias surgiram no Japão, em 1947, como uma forma de aliviar as operárias do esforço associado ao trabalho fabril durante a sua fase menstrual. A medida acabou por ser depois implementada noutros países asiáticos, como a Coreia do Sul e Taiwan. Algumas empresas também já começam a adotar esta medida, nomeadamente a Zomato, que aplicou a licença menstrual na Índia, em 2020.

Os dados recolhidos pela CNN Internacional mostram que inicialmente esta medida foi bem aceite no Japão, com uma adesão de 26% das mulheres. Com o passar do tempo, contudo, esta opção foi sendo cada vez mais desconsiderada. Um estudo do executivo do Japão mostra precisamente isso: em 2017, apenas 0.9% das trabalhadoras solicitaram licença menstrual. Na Coreia do Sul, os números de adesão a esta medida também estão a registar uma queda significativa: se em 2013 a percentagem de mulheres trabalhadoras que utilizavam esta licença era de 23,6%, em 2017 baixou para 19,7%.

De acordo com Yumiko Murakami, chefe do departamento de Tóquio da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), há vários motivos que podem ter contribuído para esta alteração, desde logo o facto de as empresas no Japão não serem obrigadas a pagar as licenças menstruais. Além disso, muitas mulheres podem nem saber que têm direito a essa licença, uma vez que as empresas não lhes transmitem essa informação.

A disparidade salarial entre trabalhadores do sexo feminino e sexo masculino também parece estar os principais motivos, segundo o responsável da OCDE, que lembra que tanto o Japão como a Coreia do Sul estão entre os países que apresentam um menor número de mulheres responsáveis por altos cargos nas empresas. 

Mas Yumiko Murakami admite o receio de discriminação por parte dos colegas e empregadores possa ser também um dos principais motivos para que as mulheres não solicitem licença menstrual: "Eu acredito que a lei em si é destinada a ajudar as mulheres, mas, se não for bem aplicada, pode acabar por prejudicá-las."

Na Europa, um estudo publicado em 2021 pelo British Medical Journal concluiu que 14% das 32.748 mulheres neerlandesas em período fértil inquiridas pediram baixa do local de trabalho ou da escola durante a sua fase menstrual. E cerca de 68% admitiu que gostava de ter a opção de um horário de trabalho ou estudos mais flexível durante esse período. 

Mas a maioria das inquiridas - cerca de 81% - disse ter ido trabalhar de qualquer forma, mesmo que se sentissem menos produtivas como consequência dos sintomas menstruais.

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