Só o empresário Custódio Pereira é que começou a ser interrogado no âmbito das suspeitas de corrupção na Madeira - e começou a sê-lo esta quarta-feira, uma semana depois de ter sido detido (os outros dois detidos, incluindo o ex-presidente da Câmara do Funchal Pedro Calado, na foto em cima, ainda aguardam). Perante isto, o advogado Paulo Saragoça da Mata não tem dúvidas: "Estamos perante uma detenção ilegal que já devia ter dado lugar a um Habeas Corpus".
De acordo com os advogados ouvidos pela CNN Portugal, "teoricamente" os arguidos devem ser presentes ao juiz de instrução para serem interrogados no prazo de 48 horas. Terminado esse prazo, se o juiz entender que não há condições para se avançar para o interrogatório por qualquer razão, os advogados defendem que os arguidos devem ser libertados até que haja condições para o fazer.
Na prática, porém, o que acontece é que os tribunais entendem que essas 48 horas "servem para apresentar o arguido ao juiz, de modo a que os possa identificar, e depois o interrogatório demorará o tempo que tiver de demorar", explica Paulo Saragoça da Matta, que descreve esta atuação como "absolutamente inaceitável e absolutamente ilegal".
"O que este caso tem de mais grave não é o facto de o interrogatório ter começado fora das 48 horas [da detenção], [mas] o facto de os arguidos estarem à espera há sete dias, para começar o interrogatório. Findas as 48 horas, o juiz de instrução, quando se apercebeu que não podia começar o interrogatório por responsabilidade ou dele ou do Ministério Público, devia ter devolvido os arguidos à liberdade", argumenta o advogado.
"Uma pessoa pode estar detida durante um ou dois anos sem sequer saber do que é acusada"
De acordo com o Conselho Superior da Magistratura, a demora no início do interrogatório a estes arguidos está relacionada "com a complexidade do caso e com a dimensão dos elementos apresentados pelo Ministério Público, além do tempo necessário ao estudo destes elementos pelo senhor juiz e pela defesa".
Em qualquer caso, o advogado João Massano sublinha que o está a acontecer é "uma inversão" do que seria "normal". "O normal não é deter as pessoas para prestar declarações, a menos que exista um perigo real de as pessoas fugirem ou uma continuação da atividade criminosa que obrigue mesmo a que se tenha de deter as pessoas para prestar declarações", explica.
"O que é normal é o cidadão ser notificado para comparecer em determinado local e em determinada data para prestar declarações. Agora, estar a deter as pessoas dias e dias usando o 'formalismo' - que tantas vezes se diz que é usado pelos advogados - para aumentar a lentidão dos processos parece-me pouco correto para a defesa dos direitos dos arguidos", argumenta João Massando, que considera que não tem dúvidas de que esta situação "é uma violação dos direitos dos arguidos".
"Não faz sentido eles estarem detidos, ainda para mais não havendo risco de fuga", afirma à CNN Portugal o também presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados.
Toda esta situação justifica, no entender de Paulo Saragoça da Matta, que se dê entrada a um pedido de Habeas Corpus, cuja providência se destina a pôr cobro a situações graves de detenção ou prisão ilegais e mais carecidas de tutela urgente. O advogado sublinha que o Habeas Corpus "é absolutamente fundamental para se poder apresentar queixas às instâncias internacionais do modo como estas normas são interpretadas em Portugal".
É que, segundo os advogados ouvidos pela CNN Portugal, esta é "uma prática reiterada" dos tribunais em Portugal, lembrando a Operação Influencer, quando o presidente da Câmara de Sines, Nuno Mascarenhas, esteve detido quase uma semana para prestar declarações "e depois veio a ver-se que, segundo a apreciação feita na altura pelo juiz de instrução criminal, não existia matéria criminal contra ele", recorda João Massano.
"Isto é absolutamente inaceitável. Se continuarem a interpretar a norma como têm interpretado nos últimos 40 anos, uma pessoa pode estar detida durante um ou dois anos sem sequer saber do que é acusada", argumenta o advogado Paulo Saragoça da Matta.
"Clara violação do disposto no artigo 28.º da Constituição da República Portuguesa"
Estas situações têm gerado tanta contestação que mais de uma centena de advogados (entre eles nomes conhecidos como Ricardo Sá Fernandes, António Garcia Pereira e Ricardo Serrano Vieira) subscreveram uma carta a exigir que os detidos possam ser presentes a um juiz de instrução criminal e a conhecerem as medidas de coação no prazo “máximo e inultrapassável de 48 horas”, cumprindo a Constituição.
“Assistimos, novamente, à detenção de cidadãos por período superior a 48 horas, em clara violação do disposto no artigo 28.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), prazo que devia ser o utilizado para o despacho de apresentação por parte do Ministério Público, para a consulta e análise das defesas e para decisão por parte do Juiz de Instrução Criminal, o que, efetivamente, não acontece nos tribunais em Portugal”, referem na carta,
Uma situação que, segundo os subscritores, leva a que “cidadãos sejam detidos e retidos durante vários dias e/ou semanas, o que não pode nem deve acontecer num Estado de Direito Democrático em pleno século XXI”.
Mas não são só os advogados que manifestam preocupação com esta situação. O próprio Conselho Superior da Magistratura já veio dizer que está "preocupado" com a demora nos primeiros interrogatórios judiciais e admitiu estudar “soluções práticas” para fazer face à limitação de um direito constitucional dos arguidos, sugerindo mudanças na lei.
“Naturalmente, o Conselho Superior da Magistratura está preocupado com esta questão, uma vez que está em causa a limitação de um direito constitucionalmente protegido. Por conseguinte, o Conselho Superior da Magistratura admite estudar a articulação de soluções práticas para atenuar os efeitos limitativos apontados, designadamente quando a complexidade do processo não permite outra solução. O legislador, do ponto de vista do Conselho Superior da Magistratura, deverá também ter, naturalmente, uma palavra a dizer”, adiantou, numa resposta enviada à agência Lusa.
Os magistrados acrescentam que estão a estudar "a alteração do sistema em vigor", que determina que os interrogatórios do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) "são distribuídos pelo juiz de turno, independentemente de antes já terem tido a intervenção de outro juiz". O Conselho Superior da Magistratura admite agora "a reponderação destes critérios de distribuição".