O que levou Marcelo a enviar a lei das ordens profissionais para o Constitucional? - TVI

O que levou Marcelo a enviar a lei das ordens profissionais para o Constitucional?

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  • Filipa Ambrósio de Sousa
  • 2 fev 2023, 09:53
Marcelo Rebelo de Sousa (Foto: Tiago Petinga/Lusa)

Marcelo enviou para o Constitucional para fiscalização preventiva o decreto que altera o regime das associações profissionais. Saiba quais as regras que o PR tem dúvidas sobre a constitucionalidade

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Uma provável violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da autorregulação e da democraticidade das associações profissionais – todos previstos na Constituição da República Portuguesa (CRP) – foram os argumentos dados por Marcelo Rebelo de Sousa para justificar o pedido de fiscalização preventiva enviado esta quarta-feira ao Tribunal Constitucional, relativo ao decreto que regulamenta as regras das ordens profissionais (lei das associações públicas profissionais).

O Chefe de Estado — também ele jurista e professor de direito constitucional — enviou o diploma cinco dias depois de o ter recebido do Parlamento. O prazo de pedido de fiscalização preventiva de uma lei é de oito dias corridos. Agora, o TC tem 25 dias, que terminam a 27 de fevereiro, para se pronunciar sobre este pedido que tem de ser sempre feito antes mesmo de os diplomas serem publicados e entrarem em vigor.

Um diploma que já nasceu torto, com praticamente todas as Ordens Profissionais a mostrarem-se frontalmente contra esta proposta que nasceu do PS e do PAN. Segundo dados do Conselho Nacional das Ordens Profissionais (CNOP), existem atualmente em Portugal 20 ordens profissionais, tendo as duas últimas sido criadas em 2019, a Ordem dos Fisioterapeutas e a Ordem das Assistentes Sociais. Estas ordens regulam a atividade de mais de 430 mil profissionais. Este decreto foi aprovado em votação final global com votos favoráveis de PS, Iniciativa Liberal e PAN e votos contra de PSD, Chega e PCP e abstenções de BE e Livre.

Mas a que pontos da nova lei, em concreto, é que Marcelo aponta as suas dúvidas?

  • Avaliação final do estágio profissional feita por um júri independente, de “reconhecido mérito”, com elementos externos à atividade profissional em causa;
  • Um órgão disciplinar com elementos externos à profissão em causa, que não sejam membros da associação pública profissional. Este foi um dos pontos mais criticados pelas Ordens profissionais;
  • A criação de um órgão de supervisão que exerce funções de controle dos profissionais da classe em questão;
  • O exercício de uma função na Ordem profissional em causa ser incompatível com o exercício de funções dirigentes em qualquer cargo da função pública;
  • A criação da figura do provedor em cada associação pública que seja externo à profissão em causa e que defenda os destinatários dos serviços da profissão em causa e que seria designado pelo bastonário, sob proposta do órgão de supervisão e que não poderá ser destituído a não ser por “faltas graves” no exercício da função.

 E que argumentos constitucionais foram apontados por Marcelo?

Segundo o requerimento enviado ao TC, consultado pelo ECO, Marcelo Rebelo de Sousa relembra os juízes do Palácio Ratton que o regime constitucional definido para as associações públicas profissionais é “muito próprio”, sublinhando a existência do princípio da autorregulação das associações profissionais que devem reger-se por “princípios democráticos internos, dotados de órgãos próprios e eleitos pelos seus associados”. Relembra ainda o artigo 267º da CRP que define que “as associações públicas só podem ser constituídas para satisfação de necessidades específicas e que não podem ser constituídas como sindicatos” e ainda o artigo 165º, 1, alínea s) — que não é de todo uma questão menor — e que estipula a reserva relativa que a Assembleia da República tem em matérias de associações públicas. E invoca ainda o artigo 47º que estipula a liberdade de todos no acesso à profissão. Por isso, e mantendo a tónica sempre no princípio da autorregulação, a criação de um órgão de supervisão, de um provedor, de um órgão disciplinar e de um júri para avaliação no estágio, todos eles com entidades externas à profissão, “violam esse mesmo princípio”.

Bem como a criação de um regime de incompatibilidades absolutas relativamente ao exercício de funções dirigentes na função pública, deixando de lado o regime de avaliar essas incompatibilidades em cada caso concreto, que viola o princípio da proporcionalidade, ao criar-se esta “restrição desproporcionada”. Marcelo vai mais longe ao dar o exemplo de um diretor de serviço de um hospital público do SNS ficar impedido de ter funções em órgãos diretivos na Ordem dos Médicos. O que não acontece com um médico do serviço de um hospital privado, violando assim também o princípio da igualdade.

Segundo uma nota publicada no site oficial da Presidência da República na Internet, o chefe de Estado defende que, “tendo em atenção a certeza e a segurança jurídicas, o Presidente da República decidiu submeter a fiscalização preventiva de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, o decreto da Assembleia da República que altera a legislação relativa às associações profissionais e o acesso a certas profissões reguladas”, lê-se na nota.

O que muda, se o diploma vingar?

O projeto de lei relativo às ordens profissionais altera questões como as condições de acesso às respetivas profissões, introduz estágios profissionais remunerados e cria uma entidade externa para fiscalizar os profissionais.

No texto final foram introduzidas alterações como precisões sobre as taxas cobradas durante o estágio e a possibilidade de serem reduzidas. A duração dos estágios fixou-se em 12 meses, podendo ser maior em casos excecionais. Outra das alterações introduzidas foi a aprovação da existência de um órgão disciplinar (não previsto na anterior lei-quadro), que prevê a fiscalização sobre a atuação dos membros das ordens profissionais, composto por elementos externos às profissões respetivas.

Outra das questões polémicas é a de introduzir as chamadas sociedades multidisciplinares. Uma questão que poderá levantar problemas concretos na advocacia, uma vez que a profissão de advogado é dificilmente compatível com outras profissões, nomeadamente com os contabilistas certificados. Basta ver que os contabilistas certificados não têm sigilo profissional, são obrigados a reportar à Autoridade Tributária, enquanto os advogados têm sigilo profissional.

Um diploma que não surge ‘da cabeça’ da maioria absoluta do PS de António Costa. Surge, sim, na sequência de inúmeros alertas da Comissão Europeia e da OCDE relativamente ao facto de em Portugal existirem demasiadas restrições no acesso às atividades profissionais. Alertas que se intensificaram com o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que trouxe de novo a questão da desregulamentação das ordens profissionais, incluindo a sua fiscalização por entidades exteriores, também em matéria disciplinar, e o fim do acesso reservado da atividade a profissionais inscritos nas mesmas. Portugal comprometeu-se junto de Bruxelas que a lei relativa às profissões regulamentadas entraria em vigor até ao quarto trimestre de 2022. E este foi um dos marcos que Portugal teve de cumprir para ter acesso ao terceiro cheque do PRR de 2,4 mil milhões de euros.

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