Estas mulheres não sorriem. Estão a trabalhar ou a cuidar dos filhos. Muitas estão descalças. Poucas saberão ler. A jornalista e escritora Maria Lamas encontrou-as no séu périplo pelo país, entre 1947 e 1949, para produzir a obra "As Mulheres do Meu País". Fez-lhes perguntas. Tirou notas. Não escreve o seu nome mas descreve os seus trabalhos "fatigantes", "esmagadores", conta um pouco sobre a sua família, às vezes também dos seus sonhos. Muitas vezes foi a própria Maria Lamas que as fotografou. Mulheres sozinhas. Aos pares, aos trios, em grupos. Também fotografou muitas crianças, porque acompanhavam as mulheres.
Parte dessas imagens a preto e branco estão agora expostas - pela primeira vez - no átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A exposição, intitulada "As Mulheres de Maria Lamas", está patente até 28 de maio e a entrada é livre.
Maria Lamas nasceu em 1893 numa família burguesa e católica da região de Torres Novas. Ficou conhecida como escritora, jornalista, tradutora, investigadora. Foi diretora das "Modas & Bordados" e também uma ativista, palavra que, garante o curador da exposição, Jorge Calado, ela teria detestado, assim como detestava as palavras feminista e sufragista. No entanto, "lutou por libertar as mulheres, não como mulheres mas como cidadãs e seres humanos", explica o curador. "Ela não falava dos direitos das mulheres, falava de direitos humanos." Os direitos à vida, à liberdade, à felicidade. "Foi três vezes presa, a última das quais durante sete meses e meio, em Caxias. Depois disso, auto-exilou-se na Madeira e, em 1962, emigrou para Paris. Só voltou na Primavera Marcelista, com a garantia de que não seria presa à chegada a Lisboa. Paris tinha-lhe dado a alegia de viver o Maio de 68, aqui viveu a alegria do 25 de Abril."
Era também "uma mulher muito emocional e ligada à família". Casou-se com apenas 17 anos, pelo civil, e um ano depois teve a sua primeira filha. Estava grávida pela segunda vez quando, em 1913, decidiu abandonar o casamento e pedir o divórcio - que só lhe seria concedido sete anos mais tarde. Para se sustentar, e às filhas, começou por dar aulas mas, pouco depois, passou a trabalhar como jornalista. Voltou a casar, com o jornalista António da Cunha Lamas, cujo apelido adotou e manteve, mesmo depois da separação. Teve mais uma filha.
Em 1947, a ditadura proibiu as atividades do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, fundado em 1914 e de que Maria Lamas era presidente desde 1945. O argumento dado foi que este organismo era "desnecessário", uma vez que o governo já acudia aos problemas das mulheres portuguesas através da Obra das Mães pela Educação Nacional, criada em 1936. Convencida do contrário, Maria Lamas decide ir ver "como viviam e trabalhavam as mulheres do meu país". O interesse era tanto político quanto sociológico: “Fui ao encontro das minhas irmãs portuguesas, procurei conhecer e sentir as suas vidas humildes ou desafogadas, as suas aspirações”, explicou.
Foi assim que nasceu o livro "As Mulheres do Meu País". Ao longo de dois anos, Maria Lamas viajou de norte a sul e também foi às ilhas, andou de comboio, de camioneta, de automóvel, de jipe, de camião, de carro-de-bois, de burro ou a pé. As reportagens foram publicadas ao longo de 15 fascículos mensais, cada um com 32 páginas, entre 1948 e 1950. A publicação em fascículos permitia-lhe fugir à censura. Maria Lamas fazia tudo: investigava, entrevistava, escrevia e paginava os fascículos. Usou fotografias de fotógrafos e de jornais mas, quando isso não era possível, era também ela que fotografava. Na verdade, tornou-se a fotógrafa mais importante do livro, assinando 149 das 589 fotografias.
"Nunca tinha fotografado", conta Jorge Calado. O genro, que trabalhava numa loja de fotografia, arranjou-lhe um "'caixote da Kodak' [uma Kodak Brownie], que é a máquina mais elementar, aquela que se oferecia às crianças, só era preciso carregar num botão, não havia possibilidade de focagem ou de usar flash". Apesar disso, o crítico considera as suas fotografias "extremamente modernas", algumas mesmo "obras-primas". Cartier-Bresson falava do momento decisivo. "Maria Lamas procurava a mulher decisiva, senhora do seu corpo e dona do seu trabalho", diz Jorge Calado. "É esta franqueza e esta empatia que transparece nas fotografias." Maria Lamas podia não saber nada de fotografia mas "sabia olhar e ver, o que é ainda mais importante".
Para a exposição foram selecionadas 67 fotografias, maioritariamente provas vintage (da época), de pequenas dimensões, e algumas ampliações. Também há um conjunto de provas da época de outros fotógrafos incluídas na obra "As Mulheres do Meu País", como Lyon de Castro, Artur Pastor, Domingos Alvão, Maria Mendonça e Júlio Vidal. São ainda mostrados objetos pessoais de Maria Lamas, bem como o seu retrato pintado por Júlio Pomar, em 1954, e o busto em gesso esculpido, em 1929, por Júlio de Sousa.
O que temos aqui é um retrato de um país que hoje nos parece muito distante. Um país fechado, sufocante, pobre, que contrariava a imagem que o Estado Novo tentava fazer passar. Se as mulheres das classes alta e média eram incentivadas a ficar em casa, correspondendo ao modelo da esposa perfeita e fada do lar, nas classes baixas as mulheres não se podiam dar a esse luxo. Trabalhavam no campo e em fábricas, carregavam pesos, cumpriam tarefas duríssimas. Tinham filhos que morriam ainda pequenos. Dançavam nas festas das aldeias aos fins de semana. Maria Lamas fotografou essas mulheres - do campo, da serra, da costa, nas docas, nas minas e nas fábricas, mas também professoras, enfermeiras, empregadas dos Correios, domésticas, serviçais, mães solteiras, prostitutas - mostrou os seus rostos, deu-lhes protagonismo. "Por um lado, apelava à solidariedade feminina, por outro, respeita a individualidade de cada mulher", explica o curador. E, seja qual for a circunstância, mostra-as sempre com grande dignidade.
"Com 7 anos de idade, esta pequenina de Castelo de Neiva parece uma mulherzinha e trabalha como tal. Ficou assustada quando a fotografaram", escreveu a investigadora numa das legendas. Sobre uma mulher anotou: "Lavadeira de Nagadouro (Caldas da Rainha) com marido ausente há longos anos. Corajosa, lá tem conseguido 'dar ordem à vida' e criar os filhos". A propósito de outra fotografia: "Estas duas mulheres passeavam na estrada de Salreus (Estarreja) a Canelas (Vila Nova de Gaia) quando lhes foi pedido que se deixassem fotografar. 'Quer que a gente tire o avental para se ver a cinta?', perguntaram. Vendem peixe nas aldeias e trabalham no campo."
Sobre o "pessoal" de uma seca de bacalhau na Gafanha (Aveiro), uma das poucas fotos de grupo na exposição, escreveu Maria Lamas: "Novas, robustas, estão na força da vida. As 'gafanhotas', como a si próprias se chama, em tom de brincadeira, são consideradas elementos valiosíssimos de trabalho". Ao olhar para esta fotografia com um grupo de mulheres, todas de chapéu, enfretando a câmara, Jorge Calado vê "um grito", como se Lamas dissesse: "Mulheres de Portugal, uni-vos". E, 75 anos depois, como olhamos para estes rostos queimados pelo sol? Serão assim tão diferentes os gritos das mulheres deste país?