“Como está a minha mãe, como estão todos?", pergunta Mustafa Avci enquanto está a ser transportado de maca. Está calmo, mas do outro lado um amigo responde com a voz embargada, incrédulo. “Todos estão bem, estávamos todos à tua espera, vou agora para aí”. O sorriso de Mustafa acentua o contraste dos olhos pesados e só é interrompido quando ele beija as mãos de um dos socorristas que o carrega. “Que Deus seja feliz contigo mil vezes", diz-lhe.

Quando o telefone desligou, tinham passado 261 horas desde que Mustafa, de 33 anos, ficou preso nos escombros de um edifício que ruiu na província de Hatay, Turquia. Foi o poderoso e devastador terramoto que fez desabar o mundo como o conhecia e assistiu a tudo preso num hospital onde tinha ido nesse dia fazer uma consulta de rotina. Hoje, imagens mostram-no novamente num quarto de hospital, mas desta vez abraçado à mulher e à filha recém-nascida.

Mustafa abraça novamente a mulher e a filha recém-nascida/ D.R

A sobrevivência de Mustafa contradiz as expectativas da maior parte dos especialistas, que dizem ser invulgar que as pessoas resistam mais de 100 horas presas em escombros e que os salvamentos mais bem sucedidos ocorrem geralmente em 24 horas. Mas não se trata de um milagre, porque, no fim de contas, é através da ciência que se explica como passados 11 dias do terramoto ainda há pessoas a serem resgatadas, defendem especialistas em medicina de catástrofe à CNN Portugal.

“Não há milagres”, começa por dizer Nelson Olim, cirurgião especializado em Medicina de Catástrofes, que trabalha atualmente para a Organização Mundial de Saúde como coordenador regional de equipas de emergência médica. “É claramente possível”, insiste. Isto porque a sobrevivência dá-se por três fatores. “Em primeiro lugar, ficaram numa bolsa com ar respirável”, permitindo ter acesso a oxigénio no meio dos destroços. Em segundo lugar, explica, tudo depende dos ferimentos a que a vítima foi submetida nos primeiros momentos do terramoto e, por último, se tiveram acesso a água e alimentos.

É isto que, muitas vezes, pode ditar a diferença entre a vida e a morte. Hüseyin Berber, um diabético de 62 anos, sobreviveu 187 horas depois de as paredes do seu andar térreo terem sido sustentadas por um frigorífico e um armário, deixando-lhe uma poltrona para se sentar e um tapete para o manter quente. Ele tinha uma única garrafa de água e, quando acabou, bebeu a sua própria urina. Foi resgatado nove dias após o grande terramoto.

Hüseyin Berber no hospital após ter sobrevivido 187 horas preso nos escombros/ AP

Na mesma linha, explica o médico Gustavo Carona, que se tem dedicado a missões humanitárias desde 2009, a janela de sobrevivência é maior quando as pessoas são mais jovens. “O estado de saúde prévio é um fator indiscutivel e a idade por si só acrescenta morbilidades”, mas os ferimentos a que foram sujeitas podem tornar essa janela cada vez menor. “Alguém que tenha fratura exposta ou que esteja a sangrar é muito menos provável de sobreviver”.

Além disso, a temperatura a que o corpo está sujeito nestes momentos tem uma importância crucial, isto porque a hipotermia mata “muito rapidamente”. “É um flagelo muito difícil, basta apenas uma noite”, explica Gustavo Carona, sublinhando que dentro dos escombros podem existir ocasiões em que as pessoas ficam sujeitas a um “aquecimento significativo” fundamental para a sua sobrevivência. 

Também Nelson Olim reitera que “quem sobreviveu até agora esteve claramente protegido do frio”. “Se só foram resgatados agora é porque estavam bem dentro de um edifício no momento do terramoto, logo mais protegidos”, afirma o cirurgião, acrescentando que o acesso a agasalhos e a cobertores durante o momento do resgate é importante nesse sentido.

Por entre todas estas histórias de longas horas de sobrevivência, há também uma que é contada em instantes. O instante em que um prédio em Jindires, uma cidade no noroeste da Síria fortemente atingida pelo grande terramoto, desabou. O instante em que uma mulher grávida deu à luz dentro desse prédio. O instante em que a recém-nascida foi resgatada ainda presa pelo cordão umbilical à mãe. Aya, que na língua árabe significa “sinal da grandeza/existência de Deus” sobreviveu, a mãe não. Acredita-se que tenha dado à luz cerca de sete horas após o sismo.

Aya, a bebé resgatada dos escombros em Jindires, na Síria/ AP

Para Gustavo Carona, o “mecanismo do parto por si só” pode explicar esta situação. Ao dar à luz, a placenta tem de ser retirada por inteiro da mãe rapidamente, se isto não acontecer o seu útero contrai e ela pode sangrar até à morte. Por oposição, “o cordão umbilical muito rapidamente entra em isquemia”, quase que apodrece, “daí que a criança já não sangre”. 

Henrique Magalhães Claudino