É fã de pastéis de nata, prefere a noite ao dia e diz que o dia perfeito é em família. Marina Machete fez história a dobrar este ano: foi a primeira mulher transgénero a vencer o concurso Miss Portugal e a representar o país no Miss Universo e foi a primeira mulher transgénero a ficar entre as 20 finalistas desde o início da competição.
Mas se os dias de agora são de glória, o percurso de Marina foi tumultuoso. Como o de qualquer outra pessoa transgénero. Bullying, descoberta e “vários obstáculos ao longo do caminho”. Até chegar a El Salvador, onde decorreu a 72.º edição de Miss Universo, Marina Machete sofreu na pele o estigma e o desconforto com o desconhecido.
“A escola não foi fácil. Sofri muito bullying, mas agora que estou do outro lado, percebo que a única forma de lidar com estes assuntos é através da educação”, disse a hospedeira de bordo de 28 anos, feitos a 1 de outubro, num vídeo publicado no canal de YouTube do concurso português, que venceu, tendo sido a primeira mulher transgénero a consegui-lo em quase cem anos de competição.
Num vídeo publicado no Instagram do concurso, a jovem natural de Palmela - onde conquistou o seu primeiro título de Miss - diz-se “determinada” e “focada”, mas também “autocrítica”. A sua palavra favorita é “palhaçada” e diz que odeia “quando estou cheia e não posso comer mais”. O cheiro a canela é aquele que mais a leva à infância e move-se pela frase “nada é possível”. O melhor que já lhe disseram foi: “Tu inspiras-me”, confessa.
E a participar num concurso de beleza foi sempre um sonho. Mas durante muitos anos visto como impossível. “Acompanho o concurso há 10 anos e era quase como se fosse uma ilusão poder participar. Inscrevi-me com a ideia de me preparar, não esperava que fosse ganhar”, disse, em entrevista à revista brasileira Glamour, referindo-se ao concurso Miss Portugal.
“Enquanto mulher transgénero, passei por vários obstáculos ao longo do caminho. Mas, felizmente, e sobretudo com a minha família, o amor acabou por ser mais forte do que a ignorância”, contou a Marina, lamentando que “infelizmente, é um grande problema que temos visto na sociedade, o aumento da transfobia e da intolerância é preocupante, por todo o mundo”.
Mas se até este ano Marina Machete era um nome desconhecido para muitos, agora, é uma das vozes mais ativas pelos direitos trans em Portugal e fá-lo nas redes sociais, onde, só no Instagram, conta já com mais de 30 mil seguidores. “O foco principal é desmistificar que a mulher trans precisa ter um determinado padrão de vida ou uma certa aparência. Todas nós somos diferentes tal e qual às mulheres cis e podemos ser e parecer aquilo que realmente somos naturalmente. Não há vergonha nenhuma nisso, todas as pessoas têm o livre arbítrio de fazer o que quiser com suas vidas”, vincou na entrevista à Glamour.
Na competição deste ano, Marina Machete não esteve sozinha na luta pela inclusão: a neerlandesa Rikkie Kollé, também mulher transgénero, foi a concurso , mas não chegou às finalistas. O concurso deste ano ficou ainda marcado pela quebra de estereótipos de beleza: a Miss Nepal, Jane Garrett, é uma das primeiras mulheres ‘curvilíneas’ a competir a Miss Universo e Erica Robin, por sua vez, é a primeira mulher a representar o Paquistão no concurso.
Sheynnis Palacios, do Nicarágua, foi eleita Miss Universo 2023, seguindo-se no pódio Anntonia Porsild, da Tailândia, e Moraya Wilson, da Austrália.
As regras da competição mudaram em 2012, ano em que passou a ser permitida a participação de mulheres transgénero, mas a primeira concorrente trans apareceu apenas em 2018, a espanhola Angela Ponce, que não chegou a vencer - e a próprria foi das primeiras a reagir à conquista da portuguesa, publicando no Instagram um ‘story’ em que aparece Marina Machete na competição e onde escreve “estou a chorar”.
No entanto, nem sempre as concorrentes trans conseguiram apoio. Pouco antes das regras mudarem, a concorrente do Canadá, Jenna Talackova, a primeira transgénero a concorrer, foi desclassificada por se ter submetido a uma cirurgia de afirmação de género. E se as regras mudaram (passando também a incluir mães, casadas e divorciadas, o que nem sempre foi permitido, como conta o site WWD), muito se deve à magnata tailandêsa dos meios de comunicação social e defensora dos direitos dos transexuais Anne Jakkaphong Jakrajutatip, também mulher transgénero.