Os rostos das crianças que fugiram da violência em Cabo Delgado - TVI

Os rostos das crianças que fugiram da violência em Cabo Delgado

Helpo: Escola do Caminho Longo

São 20 relatos de crianças que se tornaram adultas ao deixar tudo para trás para fugir da guerra. Agora, há quem lute para que elas voltem à escola.

Às duas da manhã, uma hora antes de ser acordada por um coro de gritos e tiros, Joanina não imaginava que estava prestes a deixar tudo para trás, incluindo alguns membros da família, numa fuga que se fez a pé e à boleia, durante mais de 600 quilómetros. “Gostava de voltar para casa”, desabafa Joanina, que tinha apenas 12 anos quando os terroristas entraram no norte de Moçambique e lhe levaram quase tudo.

Este é um dos 20 relatos de jovens obrigados a caminhar centenas de quilómetros na escuridão da noite pelo mato adentro, e a quem a guerra em Cabo Delgado adiou o futuro, separando-os da sua casa, da sua família e da escola. A partir do dia 26 de novembro, vai ser possível conhecer cada uma destas histórias na exposição Escola do Caminho Longo, através de painéis com as fotografias das crianças em tamanho real. A exposição está integrada na visita ao Museu dos Coches e poderá ser visitada de terça-feira a domingo, das 10h às 18h, até ao dia 16 de Janeiro de 2022.

Ao longo de 15 dias, a escritora Maria João Venâncio e o fotógrafo Luís Godinho, percorreram o norte de Moçambique para tentar fazer justiça aos relatos destas pessoas que viram as suas vidas desfeitas por um conflito que os ultrapassa. Fizeram-no a convite da Helpo, uma associação que intervém no apoio às populações mais vulneráveis no norte de Moçambique, principalmente na área da educação.

Créditos: Helpo/Luís Godinho

Estive 15 dias no terreno a ouvir testemunhos e outros 15 dias trancada em casa a tentar perceber como poderia fazer justiça a estas histórias. Senti-me fiel depositária dos relatos destas pessoas e que tinha de emprestar a minha voz para as contar ao mundo”, revelou a escritora à CNN Portugal.

Os painéis, onde vão estar expostas as fotografias destes jovens, vão ser acompanhados por um mapa do percurso que eles realizaram desde as suas casas e um texto produzido pela escritora, que conta as “realidades muito duras”, para as quais não havia preparação possível.

Como a história contada por Fernando Sipitali. O filho, Tomás, de 19 anos, era bom aluno e herdara do pai o sonho de ser piloto de aviões. No entanto, quando a guerra chegou à sua terra, Chianda, esperou-os o destino idêntico ao de mais de 817 mil pessoas afetadas pelo conflito e fugiram para o mato.

Ainda estavam escondidos, quando Tomás foi ao mercado vender tomate para arranjar dinheiro que a família não tinha. Momentos depois, Fernando ouviu disparos. Encontrou o filho apenas com força suficiente para se despedir. “Papá, eu já estou a morrer”, murmurou antes de perder a vida nos braços do pai.

Créditos: Helpo/Luís Godinho

O conflito com os insurgentes já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o registo de conflitos ACLED, um projeto internacional que congrega informação e analisa localizações de conflitos armados.

Luís Godinho já tinha visitado Moçambique em 2018, antes dos primeiros ataques. “Aquilo que antigamente foi uma zona de mato estava feito num campo de deslocados, com milhares de casas e tendas. Algumas sem água e sem condições”, recorda.

Era uma realidade “muito dolorosa”, realça o fotógrafo. Quando chegavam a casa depois de um dia inteiro a ouvir o sofrimento pelo qual aquelas pessoas tinham passado, ficavam em silêncio.  “Acabávamos por ir para a cama cedo, mas o sono tardava a aparecer”, relembra à CNN Portugal.

Mas, mesmo no meio do turbilhão, encontraram sempre um elemento comum: a esperança. Em todas as pessoas com quem falaram, testemunharam sempre uma enorme vontade de “continuar e de seguir em frente” que dizem ser “bastante inspiradora”.

E com Joana, de 14 anos, não foi diferente. Vivia com a avó Filomena, na aldeia de Manica, no norte de Cabo Delgado, quando os terroristas apareceram e queimaram a sua casa. Fugiu para o mato, como muitos outros. Foram seis dias sem água, sem comida e apenas com a esperança de um dia poder voltar a estudar. Mas a escola tinha sido incendiada.

Eu quero estudar”, conta a menina, enquanto a avó a escuta e sorri.

Créditos: Helpo/Luís Godinho

 

Esses sorrisos, conta Maria João Venâncio, foram sempre um lugar comum durante toda a viagem. “Até mesmo no campo de reassentamento, onde todas as pessoas são refugiadas de guerra, fomos brindados com centenas de crianças a sorrir. Esse som foi constante em todas as entrevistas e é inesquecível”, recorda.

A ideia para esta exposição surgiu após o trabalho levado a cabo pela Helpo, que tentou localizar estas crianças depois da fuga, para lhe poder continuar a proporcionar apoios no estudo. Por isso, no centro da exposição vai estar uma carteira escolar, que simboliza o ponto de chegada desejado por todas estas crianças: a escola.

Recorde-se que, desde 2017, a província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, é aterrorizada por grupos rebeldes armados. Desde então, a autoria de vários ataques foram reivindicados pelo grupo extremista Estado Islâmico, que tem vindo a ganhar uma presença mais forte no continente africano.

Desde julho, uma ofensiva das tropas governamentais com o apoio do Ruanda, a que se juntou depois a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, permitiu aumentar a segurança, recuperando várias zonas onde havia presença de rebeldes, nomeadamente a vila de Mocímboa da Praia, que estava ocupada desde agosto de 2020.

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