A morte de Nahel libertou a raiva dos jovens dos subúrbios, a violência voltou às ruas e as posições extremam-se: e agora? - TVI

A morte de Nahel libertou a raiva dos jovens dos subúrbios, a violência voltou às ruas e as posições extremam-se: e agora?

Terceira noite de protestos em Nanterre, França, após a morte de Nahel (AP)

Presidente francês anuncia mobilização de "recursos adicionais" para fazer frente à onda de violência. Macron pede aos pais que mantenham os adolescentes em casa e culpa as redes sociais pelos tumultos. A direita pede a declaração do estado de emergência, à esquerda sublinha-se a importância das reformas sociais. Não é a primeira vez que os jovens saem à rua em França - porque é que isto acontece e como se poderá resolver a situação?

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Emmanuel Macron criticou a "instrumentalização inaceitável" da morte de Nahel e condenou  veementemente todos aqueles que usam esta situação e este momento para "tentar criar desordem e atacar as instituições". No final da reunião da unidade de crise, realizada esta sexta-feira no Ministério do Interior, o presidente francês saudou a resposta “rápida e adequada” da polícia aos tumultos verificados nas últimas três noites, apelou à responsabilidade de "todos os pais" para desincentivarem os jovens rebeldes e também pediu às redes sociais para que "retirem" conteúdos e identifiquem os utilizadores ligados à proliferação de mensagens relacionadas com a violência urbana.

“É claro que o contexto que vivemos, como podemos constatar, é fruto de grupos por vezes organizados, violentos e apetrechados (...) mas também de muitos jovens. Um terço dos detidos ontem [quinta-feira] à noite são jovens, por vezes muito jovens”, observou o presidente. "É responsabilidade dos pais mantê-los em casa e, portanto, é importante para a tranquilidade de todos que a responsabilidade parental possa ser exercida plenamente. Apelo ao sentido de responsabilidade das mães e dos pais de família. A República não pretende substituí-los”, declarou o chefe de Estado, depois de ter condenado “com a maior firmeza todos aqueles que usam esta situação e este momento para tentar criar desordem e atacar as [nossas] instituições”.

Três noites de tumultos: polícia mobilizará "recursos adicionais"

Macron anunciou que Gérald Darmanin, ministro do Interior, mobilizará "recursos adicionais", e que Eric Dupond-Moretti, ministro da Justiça, emitirá circulares "visando adultos e menores que foram detidos e que serão levados à justiça nas próximas horas". Logo a seguir, a primeira-ministra Elisabeth Borne confirmou o envio de veículos blindados da polícia para lidar com a violência nas principais cidades.

Vários eventos festivos, concertos e festivais foram cancelados em diversas cidades, para evitar a aglomeração de multidões.

Por outro lado, o ministro do Interior voltou a pedir aos munícipios que esta noite todos os autocarros e comboios sejam suspensos, em toda a França, a partir das 21:00. O ministro apelou ainda à “proibição de venda e transporte” de morteiros pirotécnicos, latas de gasolina, ácidos e produtos inflamáveis ​​e químicos.

Um total de 875 pessoas foram detidas durante a noite de quinta para sexta-feira em França, incluindo 408 em Paris e seus subúrbios, naquela que foi a terceira noite de violência urbana em reação à morte de Nahel M., assassiando a tiro por um polícia. Na última noite, um total de 492 edifícios sofreram danos, dois mil veículos foram queimados e 3.880 incêndios na via pública foram ateados, segundo dados divulgados por Emmanuel Macron.

A maioria dos detidos tem idades entre os 14 e os 18 anos. "Estas detenções recorde refletem as instruções firmes dadas pelo ministro", declarou uma fonte próxima de Gérald Darmanin ao jornal Le Figaro. Na noite anterior, o ministro tinha mobilizado 40 mil polícias e militares para garantirem a ordem nas ruas.

A polícia recebeu "instruções sistemáticas de intervenção", escreveu o ministro, numa mensagem na rede social Twitter, na qual manifestou apoio às forças de segurança francesas "que estão a fazer um trabalho corajoso".

 

Um homem morreu durante a noite em Stanislas, perto do distrito de Mont-Lucas, num incidente cuja ligação com os tumultos relacionados com a morte de Nahel M. não foi confirmada. Segundo informações confirmadas pelo Le Monde, a vítima foi ferida no pescoço por um tiro às 23:40 de quinta-feira. O homem foi encontrado morto por paramédicos pouco depois da meia-noite. A hipótese mais provável é que tenha sido atingida por uma bala perdida, de origem desconhecida. O caso está a ser investigado.

A 'malaise' francesa: o mal-estar social de uma "massa desenquadrada socialmente" que "vê na polícia uma força injusta"

"Estes acontecimentos não são inéditos em França", afirma António Monteiro, que foi embaixador em França nos períodos 2001-2004 e 2006-2009. À CNN Portugal, o antigo embaixador recorda os eventos de 2005 quando, durante três semanas, o governo de Dominique de Villepin, no qual Sarkozy era ministro do Interior, enfrentou uma revolta bastante semelhantes após a morte de dois jovens numa perseguição policial. Os distúrbios duraram 19 noites consecutivas, de 27 de outubro a 16 de novembro. Jovens indignados queimaram 8.970 carros e entram em confrontos com a polícia, foram presos 2.921 jovens e houve quatro mortes, além de Benna e Traoré. Os prejuízos decorrentes dos tumultos foram estimados em quase 200 milhões de euros. Foram os maiores tumultos urbanos em França desde maio de 1968. "A grande discussão era, como agora, se se deveria declarar estado de emergência, ou apenas, o que era mais fácil, o recolher obrigatório", recorda António Monteiro. 

"Porque é que isto acontece? Tem a ver com a malaise, o mal-estar que continua a minar a sociedade francesa. A França nunca resolveu os problemas da descolonização, do racismo, das muitas comunidades a viverem em autênticos guetos, com condições mínimas, muito desemprego, vários problemas de ordem social. O que se passa nessas cités é um enome mal-estar. Essa massa desenquadrada socialmente vê na polícia uma força injusta, é um acumular de tensão que se vem prolongando ao longos anos", explica António Monteiro, sublinhando que quem está a provocar estes incidentes são "adolescentes, miúdos muito jovens", que herdam os problemas de gerações e sentem que a sociedade não está a mudar e não está a conseguir dar-lhes as respostas que merecem.

Em Marselha, França, faixas pedem "justiça para Nahel" (GettyImages)

“Nesses bairros, a pobreza e a insegurança são realidades concretas. É por isso que essa raiva é política", afirma, da mesma forma, o sociólogo e professor universitário Fabien Truong, entrevistado pelo Le Monde. Os jovens que têm saído à rua a causar distúrbios todas as noites, diz, "são da mesma idade de Nahel" e "reagem de forma íntima e violenta por um simples motivo: essa morte poderia ter sido a deles". "Todos os adolescentes desses bairros têm memória de situações negativas e violentas com a polícia. As desagradáveis ​​e repetidas verificações de identidade são humilhantes, geram stress e alimentam, a longo prazo, um profundo ressentimento. Esses jovens acreditam que são controlados por quem são e não pelo que fazem."

Essa é também, tradicionalmente, a posição da esquerda. Por exemplo, Alexis Corbiére, do partido França Insubmissa, considera que a violência é o "triste resultado previsível de anos de desprezo social, enfraquecimento dos serviços públicos, recusa em discutir uma remodelação da Polícia, etc." "Os meios 'excepcionais' a desbloquear nos nossos bairros devem ser a habitação, a educação, a cultura, a saúde, os transportes..."

Em 2005, os investigadores Jonathan Laurence e Justin Vaisse escreveram um ensaio que procurava entender os acontecimentos de 2005 relacionando-os com as questões demográficas, em especial a imigração: "Os desafios da integração são muito maiores em França do que noutros países europeus", diziam. "A maioria dos trabalhadores imigrantes, que chegaram nas décadas de 1960 e 1970, e suas famílias, que se juntaram a eles entre os anos 1970 e o presente, vêm de áreas rurais e tinham pouca educação. Isso não significa que eles não estejam a ser integrados, mas a sua integração é certamente mais lenta e desafiadora (e as histórias de sucesso, cada vez mais frequentes, geralmente são pouco conhecidas)."

"O racismo e a discriminação estão muito presentes na sociedade francesa, seja no acesso à habitação, no mercado de trabalho ou na vida social", escrevem os investigadores. O desemprego é maior entre as minorias étnicas. "Os estereótipos raciais negativos que persistem desde os tempos coloniais ou mesmo anteriormente tornam a vida quotidiana das pessoas de origem africana muitas vezes difícil e frustrante. Os jovens 'Beurs' (gíria para árabes) e 'negros' das cités relatam muitos casos de discriminação, como a recusa de entrada em casas noturnas."

Mas os autores referem também as questões relacionadas com a arquitetura e com a violência policial. "Entre meados dos anos 1950 e 1960, uma grave crise imobiliária atingiu França. As autoridades responderam com um programa de construção urgente." Os aglomerados de prédios de dez andares, ou mais, construídos de forma barata e rápida o suficiente para fornecer novos alojamentos permanentes para os habitantes que vinham dos bairros de barracas, transformam-se num "desastre social". Sombrios e feitos de cimento, sem espaços de lazer, foram gradualmente abandonados por todos aqueles que podiam dar-se ao luxo de sair. 

Terceira noite de protestos em Nanterre, França, após a morte de Nahel (AP)

"Entre os vários tipos de discriminação sofridos pelos jovens dos subúrbios, uma destaca-se: a discriminação racial por parte da polícia", dizem. "A polícia nesses bairros trabalha em condições árduas, mas o seu historial está longe de ser exemplar. A discriminação racial é omnipresente, e mesmo os habitantes mais velhos das cités reclamam das várias afrontas que sofrem às mãos da polícia." Estas questões só poderiam ser resolvidas com uma política de proximidade que tem sido abandonada nos últimos anos. Como resultado, os polícias vão às cités apenas para fazer a parte “repressiva” do seu trabalho – impor a ordem, investigar um crime ou fazer uma prisão, o que prejudica as suas relações com adolescentes mais descontentes."

Todos estes fatores contribuem para o "caldo" de descontentamento que se vive nestes bairros dos subúrbios franceses. É só necessária uma faísca para que, periodicamente, a explosão aconteça e os jovens mostrem toda a raiva até aí contida.

O papel das redes sociais na disseminação da violência

O surgimento das redes sociais é uma das maiores diferenças - mas não a única - em relação aos tumultos de 2005, em reação à morte de Zyed e Bouna em Clichy-sous-Bois (Seine-Saint-Denis). Nessa altura, os jornais em papel fechavam a sua edição antes dos distúrbios aquecerem e as edições online eram ainda pouco ágeis. A população só sabia o que tinha acontecido na manhã seguinte, ao ligar a televisão. Em 2023, basta entrar no Twitter ou no TikTok para ser inundado por uma quantidade de vídeos (muitos dos quais não verificados) de carros incendiados e comentários inflamados. O fluxo noticioso é contínuo. 

Reconhecendo este fenómeno, o presidente considerou que as plataformas e redes sociais "desempenham um papel considerável nos movimentos dos últimos dias": "Temos visto em várias delas, Snapchat, TikTok, e outras ao mesmo tempo, a convocação de agrupamentos violentos e uma forma de mimetismo da violência, que, entre os mais jovens, leva a uma forma de escape da realidade. E às vezes temos a sensação de que alguns deles transportam para a rua os jogos de vídeo com que foram intoxicados."

Macron disse que os serviços estatais vão pedir às plataformas mencionadas que removam "o conteúdo mais sensível" e apelou à sua "responsabilidade", bem como à sua colaboração para identificar aqueles "que usam essas redes sociais para incentivar a desordem ou para exacerbar a violência".

O extremar das posições: o que poderá fazer Emmanuel Macron? 

"O presidente Macron tem enfrentado sucessivos tumultos", recorda António Monteiro.  Em 2018 tivemos os "coletes amarelos", mais recentemente as muitas greves e manifestações devido à reforma da segurança social. "Esta é mais uma prova para ele e não será fácil", antevê.

Enquanto a direita apela à declaração do estado de emergência, que implica dar mais poder às forças de segurança e restringir as liberdades, a esquerda sublinha a importância de reformas sociais que mitiguem as desigualdades e o descontentamento dos jovens.

"Há um nervosismo da parte da polícia, que quer saber até que ponto é que pode usar a força, quais são os limites. Está a criar-se uma grande instabilidade na polícia, a sua autoridade está em jogo e os sindicatos da polícia estão a reagir. E há obviamente um aproveitamento político - pelos extremos, o que acende fortemente a possibilidade de violência. Este tipo de disputa favorece Marine Le Pen", sublinha o embaixador. A principal figura do partido União Nacional tem apelado à restauração da ordem e criticou "um poder que abandona todos os princípios constitucionais por medo de motins, o que contribui para agravá-lo".

Os sindicatos policiais Alliance Police Nationale e UNSA-Police declararam esta sexta-feira, num comunicado conjunto, que "não podem continuar a tolerar a ditadura destas minorias violentas", apelando a um "combate" contra os indivíduos "nocivos". Exigem que "todos os meios sejam postos em prática para restaurar o estado de direito o mais rapidamente possível", considerando que "estamos em guerra". Além disso, os dois sindicatos alertam o governo que irão "agir" caso não sejam tomadas "medidas concretas para a proteção legal do polícia" após o fim da violência.

Na reação, a deputada ecologista parisiense, Sandrine Rousseau, criticou  o que considera ser "uma ameaça de levantamento", enquanto a secretária nacional da EELV, Marine Tondelier, acusa os polícias de fazerem "um apelo à guerra civil".

 

Numa tentativa de inverter a escalada de violência, o líder dos comunistas, Fabien Roussel, manifestou hoje a sua "condenação absoluta da violência" à noite, acreditando que "quando se está na esquerda, defende-se os serviços públicos, não seus saques". "O foco deve ser a justiça: justiça para Nahel, justiça para os nossos bairros, justiça para o nosso país”, concluiu o secretário nacional do PCF. Afastou-se, assim, da parte da esquerda, em particular da França Insubmissa, que, na esteira de Jean-Luc Mélenchon, denunciou a "escalada de segurança" e considerou legítima a revolta dos jovens dos subúrbios

A situação está a ser acompanhada com atenção pelos líderes dos países vizinhos e da União Europeia. "A situação não afeta apenas a França, mas a Europa, isso também me preocupa", diz António Monteiro. "São confrontos sociais que são o reflexo da insegurança com que as pessoas veem a vida num continente rico e que deveria ter lugar para todos. Um estado geral de paz, de tranquilidade, de abertura e tolerância ao outro, está-se a transformar numa área de confrontos, com que não estávamos a contar."

O funeral do jovem Nahel está previsto para este sábado, em Nanterre.

"É preciso continuar a apoiar esta família, esta mãe que vai enterrar o seu filho", indicou Patrick Jarry, presidente do município, aos jornalistas.

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