As autoridades gregas receberam na manhã de 13 de junho o primeiro de mais de uma dezena de pedidos de socorro desesperados por parte de um barco carregado de migrantes. Já não havia água e a situação agravava-se a cada minuto. Só que a guarda costeira não considerou que fosse necessária uma operação de resgate altamente prioritária. Nas horas seguintes, afirmou que a embarcação seguia numa "direção e em velocidade constantes" e que as pessoas a bordo não queriam ajuda.
Agora, autoridades gregas negam qualquer responsabilidade pelo trágico acontecimento daquela noite, quando o mesmo barco, uma traineira conhecida como Adriana, virou e lançou cerca de 750 pessoas no Mar Mediterrâneo.
"Estávamos lá a tentar convencê-los a obter ajuda. Não perceberam o perigo. O clima estava bom, estavam a navegar normalmente", alega o porta-voz da guarda costeira, Nikos Alexiou, acrescentando que a Grécia devia ser reconhecida por ajudar a resgatar 104 pessoas. A questão é todas as outras que morreram - podiam estar vivas se a resposta tivesse sido outra?
Mas há várias contradições patentes nos relatos dos últimos momentos no Adriana. Segundo a guarda costeira, o barco virou devido a um desequilíbrio de peso causado pelo pânico. Já alguns sobreviventes afirmam que naufragou enquanto era rebocado pela guarda costeira. No entanto, uma investigação do Washington Post lança dúvidas sobre as principais alegações das autoridades gregas e sugere que esse terrível naufrágio, um dos mais mortais ocorridos no Mediterrâneo em anos, podia ter sido evitado.
Ora, contrariando a versão das autoridades de que o barco navegaria com estabilidade rumo a Itália, o Washington Post ouviu alguns passageiros que referem problemas no motor, tendo estes levado a que a velocidade oscilasse enquanto a traineira regressava à sua rota.
Especialistas observam que foram ignorados factos claras de que a ajuda era necessária e que a guarda costeira falhou no cumprimento da sua obrigação: acionar uma operação de resgate assim que a precária embarcação fosse detetada.
Aaron Davenport, antigo oficial da guarda costeira dos EUA - com larga experiência em salvamento de migrantes - diz ao jornal norte-americano que é "escandaloso" o que aconteceu. "Enviaram um helicóptero para lá. Deviam ter enviado várias embarcações, solicitado a ajuda de toda a região, providenciado coletes salva-vidas e resgatado essas pessoas."
Reconstrução do trajeto
Com o intuito de reconstruir o percurso do Adriana, o Washington Post recorreu a várias fontes de informação, incluindo imagens de satélite, dados de tráfego marítimo e depoimentos de sobreviventes, ativistas e especialistas. Ao comparar diferentes relatos e registos, diz que conseguiu obter uma visão mais clara dos eventos.
A traineira partiu com destino a Itália a 9 de junho, saindo bastante cedo de um porto no leste da Líbia. De acordo com alguns sobreviventes, o barco estava completamente cheio. Contrabandistas insistiam para que mais pessoas embarcassem, mesmo quando parecia não haver mais espaço.
Quatro dias depois, o Adriana é avistado a seguir em direção a Grécia. Os passageiros entram em contato com a ativista marroquina-italiana Nawal Soufi, que divulga no Twitter um pedido de "ajuda imediata" e alerta as autoridades italianas, gregas e maltesas. A guarda costeira italiana informa a homónima grega por volta das 10:00 (horário de verão da Europa Central), indicando que o barco tinha sido localizado na Grécia.
Às 11:47, uma aeronave da Frontex, a Agência Europeia de Guarda de Fronteiras e Costeira, avista o Adriana e percebe que o barco está "muito cheio", navegando lentamente em direção a nordeste, a uma velocidade de aproximadamente 11 quilómetros por hora. São partilhadas imagens em vídeo com as autoridades gregas e italianas.
Nas horas seguintes, os passageiros pedem repetidamente ajuda a Nawal Soufi e recorrem à Alarm Phone, uma linha direta sem fins lucrativos para refugiados e migrantes que atravessam o Mediterrâneo. Dizem que não será possível sobreviverem àquela noite.
A guarda costeira grega efetua então uma primeira verificação com um helicóptero, às 14:35, e determina que o barco navega com estabilidade.
Entretanto, é solicitada pelas autoridades a assistência de um primeiro navio, o petroleiro Lucky Sailor, que avista o Adriana às 16:50. De acordo com a empresa responsável pelo petroleiro, cerca de 200 pessoas estavam no convés de um barco de pesca com pelo menos 30 metros de comprimento, mas as condições meteorológicas eram boas e não havia perigo iminente.
A tripulação do navio Lucky Sailor regista um vídeo do barco de pesca a afastar-se quando se aproximam e relata que as pessoas a bordo faziam gestos de "vão embora", enquanto gritavam "Itália". Eventualmente, o Adriana aceita comida e água. Imagens de satélite mostram as embarcações lado a lado às 18:39. O petroleiro parte duas horas depois.
O Adriana não segue o trajeto inicial e dirige-se para sudeste, a uma velocidade de aproximadamente 1,3 quilómetros por hora. Essa velocidade e direção são consistentes com um barco à deriva com a corrente, afirmam os especialistas. O sobrevivente Haseeb Ur Rehman, um mecânico de motociclos da Caxemira administrada pelo Paquistão, menciona "falhas repetidas no motor" no último dia.
Por volta das 17:30, a guarda costeira grega estabelece contacto telefónico via satélite com uma pessoa que fala inglês a bordo do Adriana. De acordo com as autoridades, afirmava que o barco não estava em perigo iminente e que apenas precisava de comida e água antes de seguir para a Itália. Por outro lado, a Alarm Phone assegura ter recebido vários pedidos de ajuda durante aquele período. Às 17:34, os passageiros informam que o barco está a "balançar de um lado para o outro".
Face ao sucedido, as autoridades gregas solicitam a ajuda de um outro navio-petroleiro, o Faithful Warrior, instruindo-o a aproximar-se o máximo possível do Adriana. Segundo relatos dos sobreviventes, a assistência foi oferecida mas provocou ondas que ameaçavam virar o barco. Pouco tempo após o início da entrega de comida e água, o responsável pelo petroleiro observa que a traineira balança perigosamente devido ao elevado número de pessoas. Por conseguinte, os passageiros atiram os mantimentos ao mar, como foi registado no diário de bordo do navio.
Por volta das 22:45, a patrulha da guarda costeira chega ao local e amarra uma corda ao Adriana. No entanto, os seus registos dão conta de gritos e tensão a bordo da traineira, embora afirmem que o barco de pesca estava em bom estado. As pessoas a bordo do Adriana rejeitam a ajuda, desatam a corda e reiniciam o motor, de acordo com os registos do barco de patrulha. A guarda costeira afirma que continua a monitorizar a situação enquanto o Adriana se afasta da Grécia em direção à sua posição anterior, movendo-se a uma velocidade inferior a oito quilómetros por hora, de acordo com os cálculos do Washington Post.
O responsável pelo barco de patrulha testemunha que Adriana navega "a baixa velocidade" às 23:44. Alguns sobreviventes relatam ao Washington Post que a guarda costeira os conduzia em direção a Itália, mas a traineira estava com dificuldades em acompanhar.
A análise do jornal mostra o Adriana à deriva na direção da corrente. A guarda costeira alega ter recebido um alerta sobre problemas no motor por volta das 12:40. Vários sobreviventes afirmam que as autoridades tentaram rebocá-los mas estas negam.
O responsável pelo barco de patrulha diz que a sua embarcação estava a cerca de 70 metros de distância quando a traineira se inclinou para a direita e afundou, pouco depois da 1:00, perto do ponto mais profundo do Mediterrâneo.
O barco percorreu mais de 50 quilómetros nas suas últimas 15 horas, com uma média de 3,5 quilómetros por hora, de acordo com os cálculos do Washington Post. A esse ritmo, precisaria de mais cinco dias para chegar à costa italiana.
A investigação à tragédia do Adriana revela falhas na abordagem das autoridades gregas e levanta dúvidas sobre as suas declarações.
O naufrágio chama ainda à atenção para a urgência no desenvolvimento de melhores protocolos de resgate e fortalecimento da cooperação entre as nações do Mediterrâneo para prevenir perdas de vidas humanas.