“Não temos capacidade para dar uma resposta às situações agudas não urgentes fora dos hospitais” - TVI

“Não temos capacidade para dar uma resposta às situações agudas não urgentes fora dos hospitais”

  • Nuno Mandeiro
  • 1 abr 2022, 13:25

Nas vésperas do Congresso Nacional da Ordem dos Médicos, o bastonário, numa grande entrevista à CNN Portugal, fala dos problemas mais preocupantes na saúde, dos riscos que a guerra traz, da medicina do futuro, da atuação de Marta Temido, entre muitos outros temas. A conversa será publicada ao longo dos próximos dias. Nesta primeira parte, Miguel Guimarães explica o caos que se está a passar nas urgências e deixa ideias de mudança

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Para resolver os problemas das urgências, os médicos estão a sugerir que apenas os doentes reencaminhados pela linha de SNS 24 possam ir às urgências. Concorda?   Os gritos de alerta que o Centro Hospitalar de São João e do Hospital de Gaia são importantes. É um murro na mesa. É dizer: ‘Atenção, isto não está bem!’. Mais de metade ou cerca de metade dos doentes que vêm à urgência são doentes que não têm propriamente uma situação clínica urgente, podem ter uma situação aguda não urgente ou nem sequer ter nada de especial, e isto vai ter que mudar. Mas não se consegue, ao estalar de um dedo, dizer que a partir de amanhã os doentes que vão ao serviço urgência têm de levar uma carta do médico, mas qual médico? Onde é que os doentes vão buscar o médico?

Mas, então como acha que a situação se resolve?

Para mudarmos o funcionamento do serviço de urgência, que acho algo que é urgente e uma das prioridades de intervenção no Serviço Nacional de Saúde (SNS), temos de ter em linha de conta pelo menos três fatores: o primeiro é o da literacia e da educação aos doentes. Ou seja, as pessoas têm de perceber o que é uma situação aguda urgente e o que é uma situação aguda não urgente; segundo aspeto tem a ver com a capacidade dos cuidados de saúde primários, que neste momento não existe, nem sequer temos médico de família para todos os portugueses. Portanto, não temos capacidade para dar uma resposta às situações agudas não urgentes fora dos hospitais, ou melhor temos uma resposta limitada.

E o que é que os centros de saúde precisam para conseguir dar resposta?

Precisam de ter mais médicos e mais espaço e de ter uma organização diferente. Ou seja, precisamos de ter uma alternativa ao serviço de urgência onde os doentes possam ir.

Falou em três fatores. Qual é o terceiro?

O terceiro ponto é mudar o funcionamento do próprio serviço de urgência nos hospitais.

E que mudança deve ser essa?

Este serviço deve ter pessoas que tenham experiência a fazer urgência, que estejam preparadas para tomar decisões em segundos sobre situações em que a vida da pessoa pode estar em jogo, devem ter uma preparação especial e lutar para que a qualidade do serviço de urgência seja cada vez melhor. Se nós conseguirmos que ao serviço de urgência apenas recorram os doentes que têm situações agudas urgentes, os médicos vão deixar de ter tanta pressão. Isto   porque a pressão existe mesmo quando temos doentes que não têm nada de especial, mas estão lá à espera, pois as pessoas começam a protestar e até insultam os médicos. Tudo isto não é confortável. É uma situação desconfortável.

Mas, há casos de pessoas que têm situações graves, e demoram horas  até serem atendidas?

Isso tem a ver com a triagem de Manchester em que os algoritmos causam alguns erros.

Que erros são esses?

A triagem assenta em algoritmos que estão desatualizados e não estão adaptados à realidade das situações clínicas de hoje em dia nos hospitais. Por isso, também é preciso mudar este sistema. É preciso atualizar e rever os algoritmos da triagem de Manchester que é usada nos hospitais em Portugal.

Tendo em conta o que diz, o que defende é uma reforma hospitalar?

A mudança das urgências tem de ser encarada como uma própria reforma hospitalar, que nunca foi feita. Andamos a falar da reforma dos hospitais há 50 ou 60 anos e nunca existiu na realidade uma reforma hospitalar. 

E nos cuidados primários? Qual a situação atual?

Os centros de saúde tiveram um problema muito complicado que me obrigou na altura a escrever uma carta à sra. ministra,

O que dizia a carta?

Era uma carta pessoal a pedir para ela fazer uma única coisa, ainda em plena pandemia que era libertar os médicos de família das tarefas covid. Isto depois do ministério da Saúde ter atribuído uma série de tarefas aos médicos de família. Um exemplo concreto é aquilo que é a aplicação chamada Trace Covid. Os profissionais tinham de vigiar os doentes covid mesmo que não tivessem a doença; que tivessem tido a infeção por SARS-CoV-2 e que não tinham sintomas. E tinha de fazer-se registos clínicos diários. Chegámos a ter centenas de milhares de pessoas a quem os médicos de família tinham de ligar e fazer um registo no sistema informático, em que se perde imenso tempo.

Mas na altura não era importante ter os médicos a fazer essas funções?

Quando o ministério coloca quase dois mil dos cerca de cinco mil médicos de medicina geral e familiar que há no SNS a fazer este tipo de tarefas é evidente que eles não conseguem fazer estas tarefas e as outras. Isso levou a que houvesse aqui um problema: eles ficaram com o Trace Covid, ficaram com a vacinação -  em todos os centros de vacinação havia um médico responsável -, tinham que assegurar as áreas dos doentes respiratórios e durante uma determinada fase crítica ainda foram requisitados centenas de médicos de família, para não dizer milhares, para os lares, porque aqui nºao havia nenhum. Isto gerou uma situação em que os médicos de família passaram a ter grande parte do seu tempo ocupado com tarefas na área covid. Não conseguiram fazer mais, tentaram desenrascar ao máximo a situação, tentaram dar o máximo de si, mas houve um momento em que entraram completamente em crise e foi aí que eu escrevi à ministra a dizer que ela tinha de libertar os médicos de família das tarefas covid e dava uma solução.

E que solução era?

Quem devia ficar com as tarefas covid era o setor privado e social que têm médicos, muitos médicos. O Ministério pagava-lhes para esta questão da covid-19 e os nossos médicos mantinham as funções essenciais. 

Quantos portugueses não têm neste momento médico de família?

 Neste momento, segundo os dados revelados pelo próprio SNS, temos em Portugal cerca de 1,2 milhões de pessoas que não têm médico de família. Para resolver isto teria de contratar cerca de 600 médicos, porque normalmente cada médico de família tem 1.900 utentes.

Quantos médicos de família especialistas trabalham fora do SNS?

Cerca de 1.700. Ou seja, temos médicos em Portugal, os médicos não estão é todos no SNS. E quando se fala de cada português ter direito a um médico de família está sempre a pensar-se exclusivamente no SNS. Nós nunca fizemos uma cooperação com o setor privado para que um médico do privado tivesse uma lista de 1.900 utentes como tem um médico  do setor público, sendo pago para isso também. Esta questão nunca foi  colocada em cima da mesa, porque sempre existiu um estigma relativamente àquilo que é a cooperação que pode existir com o setor privado mais a médio prazo. 

Mas não há falta de médicos ?

Eu diria que nos faltam alguns médicos no SNS. E em várias especialidades, como anestesiologia, medicina geral e familiar, obstetrícia e ginecologia, pediatria. Aliás, na pediatria estamos a ter uma crise nos serviços de urgência porque não há médicos para os fazer. Também na  dermatologia, radiologia temos grandes dificuldades. Mas, temos médicos em Portugal? Temos. No caso da radiologia, por exemplo cerca de 50% trabalha no privado em exclusivo. 

É óbvio que nós temos de transformar o SNS, temos de tornar o SNS mais competitivo, que consiga de facto competir com o setor privado e social e com o estrangeiro, de modo a conseguirmos reter muitos dos jovens talentos que temos para que fiquem a trabalhar no público, porque o SNS é muito importante para o país. 

Seria benéfico alterar-se a esquemática do ensino superior para os cursos de medicina, para formar mais médicos? 


Nós somos o 6.º ou 7.º país da OCDE que mais estudantes de medicina tem por mil habitantes. Uma coisa caricata, ou seja, nós estamos num lugar muito confortável ao nível de número de estudantes per capita. Em termos de médicos, não estudantes, por cem mil habitantes, nós somos neste momento o 3.º país da OCDE com mais médicos. Claro que os dados têm uma ressalva, porque não sabem onde trabalham os médicos todos. A OCDE pede os dados e as instituições oficiais dão-lhes o número de médicos que têm no SNS.

E quantos médicos há no SNS?

Temos no SNS cerca de 30 mil médicos, dos quais cerca de 10 mil são médicos internos em formação específica e 20 mil são especialistas e, em Portugal, tem na Ordem dos Médicos 56 mil. Ou seja, temos mais de 20 mil médicos fora do SNS e alguns até fora de Portugal. Portanto, nós temos muitos médicos, nós somos dos países que mais médicos forma quer a nível das faculdades quer a nível das especialidades. O problema é que nós não os estamos a conseguir manter.

A saída dos médicos do SNS é um sinal de alerta?

Se estivesse à frente do Governo, eu ficaria extremamente preocupado com isto, porque os médicos podem protestar nas redes sociais, protestar publicamente, a Ordem dos Médicos pode protestar, o Sindicatos médicos podem protestar, os médicos podem dizer que ganham mal, podem dizer o que quiserem, mas quando os médicos dizem assim: eu já não quero mesmo continuar, não fico aqui nestas condições e vão embora estão a atirar com a toalha ao chão e isto é um sinal de alerta máximo. Isto é uma situação que deve obrigar a uma grande reflexão, porque as pessoas não estão sequer motivadas para protestos e vão embora. Isto é preocupante. 

 

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