Três anos depois, não há certeza se a covid-19 veio de um animal ou saiu do laboratório. "Se tivéssemos tecnologia para isso, não estaríamos tão atrasados na cura de alguns cancros" - TVI

Três anos depois, não há certeza se a covid-19 veio de um animal ou saiu do laboratório. "Se tivéssemos tecnologia para isso, não estaríamos tão atrasados na cura de alguns cancros"

Covid-19 em Wuhan

Os primeiros casos de covid-19 foram detetados na China há cerca de três anos e, desde então, muito se tem escrito sobre as origens da pandemia. Até aos dias de hoje, não há uma prova irrefutável de que a covid-19 seja fruto de uma engenharia laboratorial ou que tenha sido transmitida ao homem por um animal hospedeiro, apesar dos esforços da comunidade científica

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Foi no último dia de 2019 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) recebeu o alerta sobre vários casos de uma pneumonia atípica na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei. Era causada por um novo tipo de coronavírus que nunca tinha sido identificado em seres humanos, aquele que viria a ser batizado de SARS-CoV-2, e que havia de ser considerado uma Emergência de Saúde Pública Internacional logo no dia 30 de janeiro. A 11 de março de 2020, a OMS declarou que existia uma pandemia de covid-19 e, desde então, sucedem-se os surtos, as estirpes, as medidas de contenção e, sobretudo, a incerteza: de onde apareceu, afinal, esta doença que virou o mundo, tal com o conhecíamos, de pernas para o ar? 

As teorias - poucas validadas - sucedem-se e foram impulsionadas pelas redes sociais ou em declarações opacas de figuras políticas oportunistas, mais do que pelas pesquisas da comunidade científica. Ganhou força a tese de que o vírus saíra de um laboratório em Wuhan, na China, onde se detetaram os primeiros casos da doença, mas os estudos mais recentes indicam que o vírus teve origem natural. Ainda assim, e apesar da dedicação de investigadores de todo o mundo, até hoje não se declarou que exista uma prova irrefutável da origem da covid-19. 

Desde os primeiros dias de pré-pandemia que se suspeitou do papel do mercado de animais vivos de Wuhan: um estudo publicado já em julho de 2022, da autoria de uma equipa liderada pelo biólogo Michael Worobey, da universidade norte-americana do Arizona, mostra precisamente como este local de venda ao público foi o "epicentro" inicial da covid-19, reconhecendo porém que "as origens da pandemia em dezembro de 2019 são controversas" e que a precisão dos eventos será sempre turva. 

A hipótese da origem natural, de que o vírus foi transmitido por morcegos para humanos através de um animal hospedeiro - "provavelmente o pangolim", lembra o pneumologista Filipe Froes, é a mais comum e amplamente aceite - mesmo que os cientistas não tenham encontrado um vírus em morcegos ou outro animal que corresponda à assinatura genética do SARS-CoV-2. "Mas sabemos que a natureza tem esta capacidade, a própria natureza criou condições para o aparecimento deste vírus", refere ainda o coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital Pulido Valente.

Mas porque é que é tão importante descobrir exatamente as origens da covid-19? "Conhecer a origem deste vírus é essencial, na medida em que esse conhecimento nos permite intervir logo numa fase inicial e tomar medidas que impeçam a ocorrência de fenómenos semelhantes", assinala Filipe Froes, que aponta que existem as já referidas "duas grandes teorias" para a origem da covid-19: "Uma tem a ver com a hipótese que considero mais provável, e com maior rigor científico, de que a própria natureza criou condições para o desenvolvimento deste vírus. A segunda, diz que houve uma fuga de um laboratório de alta segurança".

O pneumologista admite que não encontra dados fidedignos que sustentem a segunda hipótese e que, nesta altura, seria "muito difícil apurar as circunstâncias que possam ter ocorrido no laboratório, porque já não são acessíveis". Mas reflete: "Aprendemos, por anteriores pandemias que a natureza tem esta capacidade, não precisamos de arranjar desculpas. E, fruto das alterações climáticas, da desflorestação, do descongelamento do 'permafrost', vamos aumentar esta capacidade de potenciar contactos entre a espécie humana e organismos desconhecidos, e proporcionar episódios de organismos que atravessam a barreira das espécies", defende ainda.

Para Filipe Froes, a hipótese de que a covid-19 seja fruto de uma engenharia laboratorial é "remota" e assim se irá manter até haver "prova irrefutável" contrária. Até porque encontrar uma razão externa, como se fosse um "bode expiatório" para o aparecimento da doença, leva a que se descure o trabalho que é necessário fazer na natureza, ao nível da preservação, para evitar novos vírus letais, defende o pneumologista. "As pandemias fazem parte da história da humanidade e não são uma inevitabilidade. O que temos de fazer é aprendermos com as pandemias para ficarmos fortes e termos capacidade de detetar precocemente as ameaças com potencial pandémico", declara o especialista. "Para mim, a grande lição da pandemia é a necessidade de preservação do planeta Terra", sublinha. 

Criação em laboratório é "pouco plausível"

Autoridades levam a cabo campanhas de desinfestação em Wuhan. Foto: Ng Han Guan/AP

Peter Ben Embarek, o investigador dinamarquês que liderou a missão da OMS à China para investigar a origem da covid-19, declarou que era "extremamente improvável" que o vírus se tivesse espalhado na sequência de uma fuga do laboratório de alta segurança, neste caso o Instituto de Virologia de Wuhan, onde é feita alguma da pesquisa mais avançada - e arriscada - da China em morcegos e coronavírus. Os coronavírus já identificados são sete, contando com o SARS-CoV-2: uma família de vírus que causa doenças respiratórias cuja gravidade é variável, podendo resultar, nos casos mais sérios, num desfecho fatal.

O relatório da primeira missão da OMS em Wuhan, publicado em abril de 2021, apontou possíveis origens da covid-19, ressalvando precisamente que a de um acidente de laboratório era a menos provável. Mas Embarek nunca deixou de admitir a possibilidade de um "erro humano": num documentário da televisão pública do seu país, declarou que o vírus podia ter nascido num laboratório porque um funcionário do instituto de Wuhan poderia ter-se infetado ao extrair amostras, denunciando as dificuldades da equipa que liderou para discutir essa teoria com as autoridades chinesas. Pequim, por seu lado, sempre negou essa possibilidade e insistiu que a pesquisa pelas origens da covid-19 deveria ser alargada a outros países: "Nenhum país tem o direito de colocar os seus interesses políticos à frente da ciência", chegou a apontar o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Ma Zhaxou, numa conferência de imprensa sobre o assunto.

Um ano depois do primeiro relatório, já em 2022, a OMS recuou e, após ter considerado a possibilidade de fuga laboratorial "extremamente improvável", o grupo de especialistas dedicado ao tema disse faltarem ainda “dados-chave” para apurar como a pandemia da covid-19 começou. A investigação pode levar anos: demorou mais de uma década para que os cientistas identificassem as espécies de morcegos que serviram como reservatório natural da síndrome respiratória aguda grave (SARS), um outro coronavírus detetado na China em 2002.

A China também negou repetidamente que tenha retido informações ou limitado o trabalho dos investigadores da OMS que viajaram para Wuhan para estudar a covid-19. Para muitos cientistas, o já referido estudo de Worobey, que foi publicado na revista Science em julho passado, deixa poucas dúvidas de que a covid-19 resultou de um "spillover", o termo usado para descrever o que acontece quando um vírus é transmitido de um animal selvagem à espécie humana, com consequências imprevisíveis. "Todas as provas circunstanciais até agora apontam para mais do que um evento zoonótico que ocorreu no mercado de Huanan em Wuhan, na China, provavelmente durante novembro/dezembro de 2019", refere a pesquisa de Worobey, que foi ao mercado de animais vivos reconstituir passos como se uma cena do crime se tratasse.

No resumo deste estudo, lê-se que fica demonstrado que, mesmo os primeiros casos de covid sem ligação direta ao mercado de Wuhan estavam geograficamente relacionados com o local, onde eram vendidos mamíferos suscetíveis ao SARS-CoV-2 e que amostras positivas para o vírus foram "associadas espacialmente" a vendedores que comercializavam mamíferos vivos. Ainda assim, assinala-se mais uma vez que "as circunstâncias exatas" do que aconteceu não são completamente claras e também que havia duas linhagens virais desde o início, descritas como A e B, que foram transmitidas a humanos com cerca de uma semana de diferença.

Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (IMM), defende que "não é nada plausível que o SARS-CoV-2 tenha sido o resultado de uma investigação em laboratório", mesmo que admita que a hipótese deve ser levantada e explorada a fundo. "A probabilidade de acontecer a transformação de um vírus na natureza é apreciável, mas em laboratório não é", acrescenta. 

Sobre os factores "políticos e culturais" que podem ter dificultado a investigação inicial na China, Miguel Castanho diz que a informação científica até circulou com relativa velocidade: "O vírus ainda não tinha chegado a Portugal e já tínhamos uma ideia do que o vírus era", garante. "Quando falamos de comissões de peritos, por exemplo, há questões políticas e culturais que se colocam em muitas outras áreas, não é só nesta. Quando uma comissão de peritos em energia atómica quer ir a determinado país verificar programas nucleares também se levantam questões de acesso e disponibilização de dados", refere o investigador. 

Para Miguel Castanho, "a probabilidade de se conseguir fazer um vírus artificial é baixíssima, é praticamente impossível. Só não digo que é impossível porque quero deixar aquele infinitésimo de probabilidade de poder acontecer. Mas é preciso ver que conseguir fazer algo tão ajustado à interação com as células humanas para ter aquele efeito desejado, e fazê-lo a partir do zero, é algo extremamente difícil", assinala. "Se tivéssemos tecnologia para fazer isso, estaríamos mais avançados noutras áreas, não estaríamos tão atrasados na cura de alguns cancros ou no desenvolvimento de terapêuticas para doenças neurodegenerativas", salienta. 

Já a natureza, diz Miguel Castanho, "tem mecanismos de seletividade e de evolução. O número de vírus em multiplicação na natureza é infinitamente superior ao que se consegue fazer em laboratório". O investigador do IMM refere ainda que este fenómeno de os vírus passarem a barreira entre as espécies é comum e que com o SARS-CoV-2 "não aconteceu nada de extraordinário". 

É mais uma história de um vírus que vence a barreira entre espécies. Para azar nosso, é um vírus humano, é um vírus mortal", conclui Miguel Castanho

A destruição de ecossistemas e o contacto com outras espécies

Venda de carne num mercado aberto em Wuhan. Foto: Getty Images

Num artigo publicado recentemente na revista da Academia das Ciências dos EUA, a PNAS, Robert Garry, professor de microbiologia e imunologia na faculdade de medicina da universidade de Tulane, e coautor do estudo liderado por Worobey - que centra o início da pandemia no mercado de animais vivos de Wuhan - volta a defender que a origem do vírus é natural, argumentando ainda que a atribuição da responsabilidade da pandemia a uma fuga laboratorial foi uma manobra de diversão, orquestrada por rivais geopolíticos - referindo-se, eventualmente, à posição pública da antiga administração Trump, que apontou várias vezes nesse sentido. 

Mas, em outubro, uma nova pesquisa controversa, da autoria de um biólogo, um farmacêutico e um imunologista - que ainda não foi publicada em nenhuma revista científica ou revista por outros investigadores - veio alegar que era possível provar que a covid-19 tinha sido fruto de uma engenharia laboratorial. 

O trio de investigadores - dois a trabalharem nos EUA, outro na Alemanha - baseia-se num novo método para deteção de vírus eventualmente criados em laboratório e, na sua análise, sugere que o SARS-CoV-2 tem características genéticas que só apareceriam se tivesse sido concebido através de alguma forma de engenharia genética. A comunidade científica não foi unânime na receção ao trabalho, que estará a ser agora minuciosamente analisado, mas se há quem considere os resultados como "intrigantes" ou curiosos, outros não hesitam em classificá-los como absurdos por "vários níveis de razões" de ordem técnica. 

Tenho dificuldade em compreender a vontade de transferir a responsabilidade para uma fuga laboratorial. Estamos numa altura em que aquilo que são pensamentos alternativos, às vezes de franja, rapidamente ganham tração, simplesmente por haver um certo tropismo por coisas fora da caixa", diz Bernardo Gomes, médico especialista em Saúde Pública.

"Não estou a fazer um ataque ao pensamento crítico, mas a própria ciência tem passado por dificuldades, sobretudo na comunicação para o público. Temos de ter alguma precaução e atenção à forma como a desinformação circula", refere o especialista, comentando a quantidade labiríntica de dados acumulada - nem toda válida - desde o início da covid-19, ou mesmo as investidas de uma comunidade científica dividida.

Nos Estados Unidos, a administração Biden lançou mesmo uma investigação depois de uma equipa de cientistas da Universidade de Boston ter anunciado que criara em laboratório uma versão do SARS-CoV-2 que combina duas estirpes existentes do vírus, capaz de se tornar mais violenta e transmissível. Este tipo de pesquisa, por ser de utilização arriscada e eventualmente perigosa, deve cumprir determinados critérios para ser financiada, uma vez que cria agentes patogénicos que podem ser mais violentos do que aqueles que a natureza é capaz de criar. Num contexto de pandemia, em que as origens do próprio vírus estão por esclarecer de forma definitiva, a pesquisa não deixou de levantar polémica ao nível das instituições norte-americanas.

"Pode-se aceitar alguma incerteza, mas o mais provável continua a ser o spillover de espécie animal e do contacto dos homens com mamíferos. Temos outros exemplos do passado, como o MERS-CoV, com circuito via dromedários" diz Bernardo Gomes. "À medida em que vamos entrando em contacto não expectável com determinado tipo de espécies, estes fenómenos serão mais comuns, por destruição de ecossistemas", acrescenta o especialista, referindo que, no caso da China, existe manipulação e contacto com animais vivos em mercados, ao contrário do que acontece noutros países do Ocidente, o que propicia a transmissão de doenças.

No caso da covid-19, o médico de Saúde Pública reconhece que a China "não foi transparente em certos momentos", nomeadamente no início da pandemia, quando chegou a perseguir profissionais de saúde que detetaram precocemente que algo se estava a passar. "Esta opacidade de procedimentos de um regime que tem características autoritárias alimenta a teoria da conspiração", admite. 

As alterações climáticas e seus impactos são também, para Bernardo Gomes, uma dimensão que não pode ser excluída desta equação da origem pandémica: é preciso reconhecer o papel do aquecimento global e assumir responsabilidades na interação com os animais. "Temos de apoiar a área da veterinária, porque existe a perceção clara de que, se nos anteciparmos, podemos criar respostas que darão muita vantagem de futuro", assinala o especialista, que frisa: "Temos noção de que esta não foi a última pandemia. Desta vez, calhou-nos na rifa algo extremamente eficiente em termos de transmissão e com a componente da transmissão aérea".

Importa agora, segundo Bernardo Gomes, aprender com o sucedido e prepararmo-nos para as próximas doenças que tenham capacidade de alastrarem a todos os continentes. "Em Portugal, tarda fazer uma revisitação da estrutura de Saúde Pública e da relação da Saúde Pública com a veterinária, com o ambiente, com a proteção civil. Assumirmos o que foi bem feito e o que foi mal feito", diz o médico, que não deixa de salientar: "Não esqueçamos: no meio de todo o caos, fizemos uma vacina em menos de um ano. É notável".

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