Combate à inflação está a transferir milhões dos contribuintes para os bancos. Havia outro caminho? Sim. Mas “os bancos centrais estão capturados” - TVI

Combate à inflação está a transferir milhões dos contribuintes para os bancos. Havia outro caminho? Sim. Mas “os bancos centrais estão capturados”

O economista Paul De Grauwe e a economista Yumei Ji defendem um caminho alternativo para o Banco Central Europeu (BCE) combater a inflação. Um caminho que permitiria travar a atual transferência de milhares de milhões de euros dos contribuintes para os bancos comerciais e de que os bancos em Portugal também beneficiam

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O Banco Central Europeu (BCE) e a generalidade dos bancos centrais estão a subir as taxas de juro de referência para combater a inflação. Mas da forma como o estão a fazer acabam por transferir milhares de milhões de euros dos contribuintes para os bancos comerciais. Como? Basta aos bancos não fazerem nada.

A crítica é feita pelo economista Paul De Grauwe e pela economista Yumei Ji, que defendem (aqui e aqui) um caminho alternativo ao que está a ser seguido pelo BCE e pela generalidade dos restantes bancos centrais para combater a inflação. Um caminho que permitiria aos bancos centrais continuar a gerar lucros, com esses lucros pagar dividendos aos respetivos estados e, dessa forma, beneficiar todos os contribuintes.

Mas com a política atualmente seguida pelo BCE o resultado é outro. Os milhares de milhões de euros que originariam lucros aos bancos centrais estão a ser transferidos para os bancos comerciais como remuneração dos depósitos feitos nos próprios bancos centrais.

Como é que isto acontece? É preciso recuar a julho de 2022, mais precisamente a 27 de julho, quando o BCE deu início ao processo de subida de taxas de juro, aumentando as suas três taxas de referência em meio ponto percentual. As taxas de juro não mais pararam de subir e em menos de um ano já aumentaram três pontos percentuais.

O objetivo é retirar dinheiro da economia. Por um lado, tornar mais caro os empréstimos que os bancos comerciais possam vir a contrair junto do BCE para financiar a economia e, por outro, incentivar estes mesmos bancos a depositarem nos bancos centrais o excesso de liquidez que tenham em vez de o canalizarem para a economia. Sem o crédito a fluir para as famílias e as empresas, o BCE espera que se verifique uma diminuição do consumo e do investimento e, assim, diminua a pressão sobre os preços, controlando uma inflação que continua longe de já estar controlada.

E hoje, quando Christine Lagarde e restantes membros do Conselho de Governadores do BCE se reunirem em Frankfurt, apesar da instabilidade financeira que vem dos Estados Unidos e da Suíça, a história não deverá ser muito diferente. A expectativa é de uma nova subida das três taxas de juro de referência do BCE, entre as quais, a taxa a que remunera os depósitos dos bancos comerciais (ver nota 1 no fim do texto).

E ao subir a remuneração a pagar aos bancos comerciais, a autoridade monetária estará, mais uma vez, segundo os autores, a transferir para estes bancos lucros que deveriam ser dos contribuintes.

Milhares de milhões de euros

Segundo os estudos publicados por Paul De Grauwe e Yumei Ji, em fevereiro, os bancos comerciais tinham depositados no BCE e nos bancos centrais da zona euro mais de 4,3 milhões de milhões de euros remunerados a uma taxa de juro de 2,5%. Ou seja, os bancos comerciais têm uma receita potencial de mais de 100 mil milhões de euros em juros. Qualquer coisa como 0,75% do Produto Interno Bruto (PIB) da zona euro.

E com a subida das taxas de juro, este montante será ainda maior. Verbas que deixam de entrar nos cofres dos respetivos países da zona euro numa altura em que, tal como notam os autores, as economias estão a desacelerar a caminho de uma possível recessão.

Há, no entanto, um outro caminho que poderia ser seguido pelo BCE. E as taxas de juro até podiam continuar a subir.

O que os autores defendem é que se aumente a taxa de reservas mínimas obrigatórias (ver nota 2 no fim do texto) que os bancos têm de constituir para um valor equivalente ao montante que os bancos comerciais têm atualmente depositados nos bancos centrais e que esses montantes não sejam remunerados ou apenas uma parte seja remunerada, por exemplo, 25% do total.

Se tal acontecesse, o dinheiro continuaria a não fluir para a economia, porque estaria em reservas obrigatórias, os bancos centrais não teriam de pagar tantos juros e continuariam a apresentar lucros e, dessa forma, a pagar dividendos aos respetivos estados, protegendo os contribuintes.

Mas colocar um travão nas transferências dos bancos centrais para os bancos comerciais não colocaria em risco a estabilidade financeira, especialmente num momento em que há instabilidade nos mercados? “Se esta é a motivação dos bancos centrais, é certamente imprudente. Os bancos [comerciais] foram forçados a aumentar os seus rácios de capital após a crise financeira. Têm os amortecedores necessários para lidar com as perdas de lucros durante a subida das taxas de juro. As grandes transferências de dinheiro dos contribuintes para os bancos estão principalmente a proteger os seus acionistas e não os próprios bancos. E isto não deve fazer parte dos objetivos dos bancos centrais”, respondem os autores num dos trabalho publicado.

Os dados relativos aos depósitos no BCE dos bancos a operar em Portugal também permitem calcular quanto é que os bancos portugueses ganham com a política de subida de taxas de juro. Segundo dados do Banco de Portugal, no final de fevereiro havia mais de 40 mil milhões de euros depositados no banco central, um montante que a uma taxa de juro de 2,5% permite receitas superiores a mil milhões de euros.

Os resultados dos maiores bancos a operar em Portugal em 2022 mostram, aliás, isso mesmo. CGD, BCP, Santander e BPI tiveram lucros acima de dois mil milhões de euros no ano passado. Foram 5,5 milhões por dia. E as receitas com juros renderam cinco mil milhões com a ajuda do banco central.

Bancos centrais estão capturados

Paul De Grauwe, em declarações à CNN Portugal, diz não ter dúvidas que a sua proposta permitiria controlar a inflação. “Provavelmente até seria melhor”, sublinha o economista, explicando que os bancos comerciais já têm uma receita garantida junto do BCE, o que funciona como um desincentivo para melhorarem a margem financeira e passarem para a economia a subida de taxas de juro.

O professor da London School of Economics só encontra duas explicações para o BCE e restantes bancos centrais manterem uma remuneração para os depósitos dos bancos comerciais: o facto de estarem capturados pelos próprios bancos comerciais; e a inércia de quererem usar o mesmo sistema que usam há mais de dez anos.

“Sim, eles [bancos centrais] estão capturados pelos bancos”, assegura o economista, adiantando que os bancos comerciais dizem aos supervisores que se não tiverem os seus depósitos remunerados será mau “para a estabilidade financeira. E, portanto, podem ter convencido o banco central de que isto é necessário”.

A segunda razão tem a ver com a inércia. “Há cerca de 10-15 anos, os bancos centrais mudaram para este sistema. Têm um novo procedimento operacional que consiste em aumentar e baixar a taxa de juro, manipulando a taxa de remuneração dos depósitos bancários. E pensam que essa é a única forma. Mas no passado não o faziam”, explica De Grauwe, sublinhando que esta política dos bancos centrais deixa “muito satisfeitos” os acionistas “dos bancos comerciais”.

De Grauwe explica ainda que os lucros dos bancos centrais devem reverter para os contribuintes porque os bancos centrais só têm lucros porque foram os governos a atribuir-lhes o monopólio da emissão de moeda.

“E agora dizem: este lucro que temos é graças aos governos, mas não o devolveremos ao governo. Não, dá-lo-emos aos bancos privados”, lamenta o economista.

“Isto é incrível. Contam-nos uma história que diz, esta é a única forma de o conseguirmos fazer. E demasiadas pessoas acreditam nisto. Bem, eu digo não, há outras maneiras de o fazermos”, conclui De Grauwe.

 

Nota 1:

O BCE tem três taxas de juro de referência:

- A taxa das principais operações de refinanciamento. A taxa à qual os bancos podem contrair empréstimos junto do BCE pelo prazo de uma semana: está atualmente nos 3%, mas esteve fixada em zero entre março de 2016 e julho do ano passado;

- A taxa de depósito, que determina os juros que os bancos recebem pelos depósitos realizados junto do BCE: está atualmente em 2,5%. Mas entre julho de 2012 e junho de 2013 era de zero. E entre junho de 2013 e julho do ano passado era negativa, obrigando os bancos a pagar pelos depósitos que faziam no BCE;

- E a taxa de cedência de liquidez, que determina o juro a que os bancos pagam quando contraem empréstimos junto do BCE pelo prazo de um dia (overnight). Está atualmente em 3,25%.

Nota 2:

Para além das taxas de referência do BCE, há ainda uma outra taxa essencial para a alternativa defendida por Paul De Grauwe e Yumei Ji. As reservas mínimas obrigatórias a que os bancos da zona euro estão sujeitos. Os bancos comerciais estão obrigados a deter um determinado montante de fundos como reserva nas suas contas correntes junto do respetivo banco central nacional. Atualmente esse montante é o equivalente a 1% do total de depósitos de clientes. E estas reservas também são remuneradas pelos bancos centrais à taxa de depósitos do BCE, ou seja, atualmente a 2,5%.

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