O Nacional que se prepare: em Rebordelo há uma equipa sem medo do trabalho (nem quando anda à jeira) - TVI

O Nacional que se prepare: em Rebordelo há uma equipa sem medo do trabalho (nem quando anda à jeira)

O modesto Rebordelo, de uma aldeia em Trás-os-Montes com cerca de 600 habitantes, vai receber o Nacional em jogo da Taça para a história do clube. O Maisfutebol foi conhecer os homens e as histórias por detrás de um emblema de gente batalhadora, que trabalha de sol a sol, e muitas vezes durante toda a noite, nas vindimas ou na apanha da azeitona, para depois se entregar ao sonho: ser jogador de futebol.

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Rebordelo anda por estes dias numa azáfama.

A pequena aldeia de pouco mais do que 600 habitantes, na parte mais oriental desta ocidental praia lusitana, nunca se viu noutra igual. Afinal de contas, está na terceira eliminatória da Taça de Portugal e vai receber um grande: o Nacional da Madeira.

Sim, à dimensão do Rebordelo, o Nacional é um grande. É enorme.

«Quando isto passar, ninguém mais se vai lembrar do Rebordelo», adverte o treinador Gilberto Vicente.

«Por isso vamos aproveitar estes momentos todos. As televisões, os jornais, entrevistas, está a ser uma semana fantástica. Habituava-me a isto.»

Mas afinal que clube é este Rebordelo?

Antes de mais é o reflexo da aldeia, uma daquelas localidades tipicamente transmontanas, que vive das alheiras, da azeitona, do vinho e do mais que a terra dê. Uma aldeia de gente batalhadora, que trabalha de sol a sol, todos os dias semana.

«Nós dinheiro não temos, por isso para cativarmos os jogadores e para termos uma equipa competitiva, temos de promover outras coisas, como, por exemplo, arranjar empregos para eles e para as mulheres, ou ajudar a procurar uma casa», adianta Gilberto Vicente.

«Temos vários estrangeiros, que estão cá com a mulher e os filhos, têm casas alugadas, cada um paga a sua, nós arranjamos emprego para eles e para as esposas, e pronto, fazem parte da comunidade de Rebordelo. Se conseguirmos trazê-los e dar-lhes alguma estabilidade, garantimos o jogador para dois ou três anos, pelo menos. Todos eles querem dar o salto, mas se eles estiverem a trabalhar, se estiverem bem aqui e se não surgir essa hipótese, para o ano estão cá outra vez. E a continuidade das equipas vai trazendo sucessos.»

E é fácil numa aldeia como Rebordelo arranjar emprego para todos?

«Fácil não é. Conseguimos nalguns casos, noutros não. Tenho um jogador que trabalha numa padaria, entre as 23 horas e as quatro da manhã. É muito complicado. Outro trabalha no McDonald's, em Mirandela. Outro trabalha numa barbearia, porque gosta de penteados. Temos esposas de jogadores a trabalhar no centro de saúde, a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia», conta.

«E depois há outros a quem vamos arranjando empregos sazonais na agricultura. Estiveram nas vindimas, agora pararam, mas em breve começa a apanha da castanha. Mais lá para o fim do ano vão para a apanha da azeitona. Andam lá a ganhar aos 50 e aos 60 euros por dia e vão juntando assim uns dinheirinhos, porque o clube só dá uma pequena ajuda de custo.»

«Oito da manhã, tudo branco, o chão gelado e nós a varejar as oliveiras... é muito duro»

Luiz Felipe é um desses casos. Durante mais de dois anos andou a trabalhar na agricultura, quando havia alguma coisa para fazer, enquanto jogava futebol. Fazia aquilo que em Trás-os-Montes se chama ‘andar à jeira’: basicamente é um trabalho na agricultura, que é pago ao dia. Por isso se chama jeira, porque deriva da palavra do latim que significa precisamente diária.

É um trabalho árduo, muito difícil, e cada vez há menos gente disponível para o fazer.

«É complicado. É muito duro. Começámos às 8 horas e trabalhámos até às seis da tarde. Trabalhos duros, pesados, como são na agricultura. Na vindima, por exemplo, eu passava o dia inteiro com a cesta às costas a carregar uvas. Quando saía, estava esgotado. E uma hora depois, às sete, começava o treino no Rebordelo», lembra Luiz Felipe.

«Mas o mais difícil para mim era a azeitona. Oito da manhã, tudo branco da geada, um frio que se entranha nos ossos e nós a varejar as oliveiras, com o corpo gelado. Doía muito nas mãos. Émuito duro. Porque não desisti? A verdade é que, apesar de tudo, nós saímos do nosso país em busca de um sonho, não é? Então, não queremos que seja em vão. A gente faz de tudo para poder realizar esse sonho. E curiosamente, nessas duas temporadas que trabalhei na agricultura foram as minhas melhores temporadas.»

Entretanto, há uma semana, Luiz Felipe deixou o clube. A mulher e a filha pequena vivem em Aveiro, faziam pressão para que ele voltasse para junto delas e o brasileiro assim fez.

Em Rebordelo deixou esta rotina, que era também a rotina de outros jogadores, todos eles mais miúdos, que viviam com ele na casa que o clube disponibiliza por cima dos balneários, dentro do estádio. Uma casa onde dormem, comem e fazem a vida, mas bastante isolada, no meio dos montes, e afastada da aldeia.

«Ali não havia muito para fazer, mas nós arranjávamos soluções para ocupar o tempo. Víamos filmes, jogávamos com a bola no campo, fazíamos treinos individuais.»

Como na casa vivem todos dos trabalhos sazonais na agricultura, há alturas mais desafogadas do que outras. Embora já esteja longe, em Aveiro, ao lado da mulher e da filha, Luiz Felipe não esquece a atitude do central Cícero, numa das alturas em que havia menos dinheiro.

«Ele trabalha na Pavimir e tem um ordenado melhor. Quando soube que nós estávamos a passar por algumas dificuldades, foi ao supermercado e encheu-nos a casa de comida.»

É também este o espírito do clube e da terra.

«O Robordelo tem uma coisa que já não se vê muito por aí: uma comunidade colada ao clube. Ou seja, toda a gente vai ao futebol, toda a gente fala dos jogos nos cafés, toda a gente se organiza, as associações à volta ajudam-nos», conta o treinador Gilberto Vicente.

«Por exemplo, o clube não tem camadas jovens. Eu agora estou a tentar organizar uma equipa de petizes e traquinas, porque ainda há uns 15 miúdos na aldeia. Pedi miúdos para entrar nessa equipa, organizaram logo os quinze que há em Rebordelo. Preciso de gente para apanha-bolas, tratam logo disso. Tudo o que preciso, eles arranjam.»

«Para quem viveu em Salvador, em Brasília e em Lisboa, chegar a Rebordelo é um choque»

O Rebordelo tem, de resto, jogadores espalhados por várias casas. Os que têm família vivem em casas próprias - que eles pagam, embora o clube os ajude a encontrar uma boa solução -, depois há outros na casa do clube por cima dos balneários e há outros em quartos em Mirandela.

Cauê Barbosa é um desses casos. Veio para Portugal com a irmã para acompanhar a mãe, que tinha vindo tirar um mestrado, jogou no Oeiras, agora está no Rebordelo. Divide um apartamento com estudantes em Mirandela e alimenta-se em restaurantes da cidade, pagos por patrocinadores. Aos 20 anos, o que tem chega-lhe e por isso não trabalha.

Mesmo assim, para um miúdo nascido em Salvador da Bahia, que cresceu em Brasília e que morou em Lisboa, mudar-se para uma aldeia no nordeste transmontano não foi fácil.

«É bem diferente, não é? Quando cheguei, foi um bocadinho um choque, sim. Mas tem sido uma experiência muito boa, de muito crescimento. Enfim, é uma realidade diferente que exige uma adaptação, mas está a ser muito bom, está a ser uma experiência divertida», conta.

«Além disso, pensei no aspeto desportivo. Pensei no projeto que me foi apresentado e nas possibilidades que me dava. É um clube organizado e que tem objetivos grandes. O mister também me parecia uma pessoa muito séria, muito competitiva e pronto, gostei do projeto.»

«Eu já tenho 60 anos, já não vou a lado nenhum, mas estes miúdos ainda podem ir»

Ora o mister, também ele, tem uma história que merece ser contada.

Chama-se Gilberto Vicente, como já se disse, mas toda a gente o trata por Gil, e é treinador profissional: não tem outra profissão. Quer dizer, tem um turismo rural em Montalegre e, como quase toda a gente na zona, tem terras, que lhe permitem fazer algum dinheiro com a azeitona e a castanha, mas a profissão dele é efetivamente treinador de futebol.

«Quanto é que eu ganho? Ganho um abraço quando vencemos. Se não vencermos, nem isso», atira a sorrir.

«Agora mais a sério, eu já tenho 60 anos e quando saí do Mirandela estava a pensar afastar-me do futebol. O Rebordelo tinha tido um ano mau, com três treinadores e o sétimo lugar no campeonato distrital, e chamaram-me para organizar isto. Disse que só vinha se não tivesse despesas. Então pagam-me o combustível e mais um ou outro gasto que possa ter.»

Desde então, Gilberto Vicente tem-se envolvido em tudo: tenta arranjar emprego a quem chega, tenta encontrar casa, procura dar condições de evolução aos jogadores.

«O que me move é poder dar a hipótese a estes meninos de fazerem alguma coisa no futebol. Eu já tenho 60 anos, já não vou a lado nenhum. Mas eles podem ir. Não é fácil, se calhar nenhum vai dar o salto, mas podem chegar a um Campeonato de Portugal, alguns se calhar até a uma Liga 3. Eu acho que as hipóteses de passarmos o Nacional são 0,03 por cento. É o número que meti na minha cabeça. Mas agora imaginem que as bolas batem no poste, que o guarda-redes faz uma exibição de outro mundo, que nós vamos uma vez lá à frente, fazemos um golo e vencemos. Estes miúdos vão ser muito mais falados e outras coisas podem acontecer. É isto que me move», conta.

«Vou contar-lhe uma coisa. Quando estava no Carrazeda de Ansiães, tive um brasileiro que veio para cá com 18 anos. Entretanto dá-se aquela bronca em Freamunde, com os jogadores que estavam ilegais em Portugal e viviam debaixo da bancada, o presidente do Freamunde era também presidente do Carrazeda e, um bocadinho por arrasto, o SEF entra por lá adentro. Há alguns miúdos que não tinham autorização de residência e o SEF levou sete detidos. Imagine, miúdos de 18 anos, juniores, de repente vão passar a noite à prisão.»

Foi a esposa de Gilberto Vicente, que é advogada, que no dia seguinte foi defender os miúdos ao tribunal. Conseguiu que lhes fosse dada autorização para ficarem pelo menos até ao final da época. Entre eles estava Luiz Maia, o tal miúdo de 18 anos de quem se falou lá atrás.

«O Luiz é um miúdo impecável, o pai dele é polícia federal em Teresina. Então veio ter comigo e disse que se ia embora. ‘Ó Gil, não estou para aturar isto, vou embora’. Faltavam três ou quatro meses para acabar a época e pedi-lhe para ficar. ‘Ó Luiz, tu estás legal, estas bem, ajuda-me, porque se tu vais embora, vai toda a gente de debandada e o clube acaba aqui’.»

Luiz Maia ficou, mas avisou que no dia a seguir a acabar o campeonato ia embora.

«Entretanto levei-o para casa e tratei-o como um filho. Eu não tenho filhos, portanto ele é como um filho para mim. Nesse verão já nem foi ao Brasil, ficou a estudar para fazer os exames, candidatou-se à faculdade e entrou em desporto. Entretanto o meu empresário arranjou-lhe um contrato no Operário de Lagoa, dos Açores, fez lá um ano espetacular e quando voltou de férias disse que queria voltar a estudar, mas queria mudar para fisioterapia. Nós apoiámo-lo, foi estudar para o Porto e ficou a jogar no Leça», recorda.

«Mas eu tenho uma irmã que é medica em Coimbra, que conhecia um professor de fisioterapia da Faculdade de Coimbra. Por isso decidimos que o melhor era ir para Coimbra. Hoje está no último ano do curso, joga no Marialvas, o que ganha dá-lhe para viver e pagar os estudos, já comprou o seu carrito e anda lá todo contente. E pronto, esta é a parte que me enche de orgulho, saber que ajudei a pessoa certa. É isto que me faz andar nesta vida.»

«O orçamento do Rebordelo para a época toda são 50 mil euros, o do Vinhais é três vezes mais»

De regresso a Rebordelo, Gilberto Vicente fala do plantel de 26 jogadores que juntou no clube, metade dos quais (exatamente treze) são estrangeiros. Também metade (exatamente outros treze) são jovens com menos de 23 anos, boa parte dos quais ainda estuda.

O treinador diz que é um grupo bom, que trabalha de uma forma muito séria, o que lhe permite lutar todos os anos com clubes de Bragança, de Vinhais, de Macedo de Cavaleiros ou de Mirandela. Clubes muito maiores, que representam cidades e que têm melhores condições.

«Posso dizer-lhe que este ano, por exemplo, o orçamento do Vinhais e do Macedo é três vezes superior ao orçamento do Rebordelo. Quanto é? Olhe, o nosso orçamento não chega a 50 mil euros por ano. O orçamento do Vinhais é acima dos 170 mil euros. Mas apesar disso, batemo-nos todos os anos taco a taco com eles. E este ano vamos bater-nos também», refere.

«E mais: esses clubes têm campos municipais, não pagam água, não pagam luz, não pagam às senhoras da limpeza. O Rebordelo tem um campo próprio e tem de pagar tudo, tudo, tudo. Dizem que é um pormenor, mas não: é mais despesa para retirar ao tal orçamento que não chega aos 50 mil euros. Portanto, é um pormaior.»

Luiz Felipe, que já deixou o clube há cerca de uma semana e por isso pode falar com a equidistância de quem está em Aveiro, assina por baixo tudo o que o treinador diz.

«É um clube bom, de gente boa. Um clube organizado e que por isso acaba por trabalhar melhor do que outros clubes da mesma dimensão. Por exemplo, treina com bolas boas, estuda os adversários e por isso anda sempre na luta pela subida», atira Luiz Filipe.

«Aliás, já merecia estar no Campeonato de Portugal. Pelo trabalho que tem feito, já merecia ter subido de divisão há mais tempo.»

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