A Europa das boas intenções carregadas de má-fé - TVI

A Europa das boas intenções carregadas de má-fé

    André Carvalho Ramos
  • 8 mar 2023, 13:15

Há meses que refugiados de nacionalidades não-ucranianas se juntavam em todos os cantos de Bruxelas. Conheci um grupo de cinquenta afegãos em dezembro. Estavam acampados em cima de uma ponte do canal que corre em frente ao Petit Chateaux, o edifício da Fedasil, o organismo público responsável pelo acolhimento de refugiados no país. As tendas estavam molhadas e o vento que corria por cima e por baixo da ponte fez-me questionar, afinal, porque escolheram um local tão desprotegido que tornava as noites ainda mais agrestes. Explicaram-me que era o único sítio de onde ainda não tinham sido expulsos. Começaram por fixar-se numa lateral do edifício da Fedasil, mas foram enxotados; depois escolheram a rua oposta, mas os residentes do prédio paredes-meias não queriam ter um campo de refugiados improvisado à porta de casa. Por fim, acabaram expurgados para a ponte sobre o canal porque era a fronteira entre duas freguesias e nenhuma sabia bem o que fazer com eles: metade parecia estar sob responsabilidade de um autarca e outra metade sob a responsabilidade de outro: uma verdadeira fronteira.

Eram todos homens, jovens, não mais de 40 anos. Tinham trabalhado em missões da NATO e com o exército belga no Afeganistão. Fugiram do país após a tomada do poder pelos Taliban. Nenhum teve a sorte de ser abrangido pela missão humanitária que resgatou milhares de pessoas pelo mal-afamado aeroporto de Cabul em agosto de 2021. Fizeram então caminho por terra cruzando todas as fronteiras até chegar ao coração da Europa. Todas as expectativas foram frustradas. O serviço de estrangeiros recolheu os pedidos de proteção internacional, mas, alegando incapacidade para garantir-lhes o que deles é por direito - um abrigo - a mensagem afixada nos balcões era clara: “serão encaminhados à saída”. A única solução para quase 3 mil pessoas na Bélgica era aguardar indefinidamente na rua. Já tinha visto cenários semelhantes em Atenas, por exemplo, em 2016, no pico da vaga migratória no mar Egeu. O que não esperava era que, tantos anos depois, as lições aprendidas tivessem levado a lado algum.

O que é certo é que em menos de 48 horas, depois de estes casos terem sido denunciados no documentário A Última Fronteira, um original da CNN Portugal, houve uma solução: aparentemente. Cedo, camiões da autarquia começaram a arrancar as tendas com tudo o que lá estava dentro. De cinquenta, em dezembro, eram já duzentos refugiados em março. A ordem era acolhê-los em centros de responsabilidade local e do governo nacional. Porém, uma vez mais, de forma brusca e fria, não houve qualquer pré-aviso. Cerca de 40 pessoas não estavam no local e o futuro desses é incerto: por azar não foram abrangidos e continuarão na rua. Esse não pode ser o critério. As roupas e cobertores doados pela solidariedade da sociedade civil foram todos para o lixo. Organizações não-governamentais como a Serve The City tentaram negociar, mas em vão. Nathan Torrini, um dos voluntários, conta-me como milhares de euros foram deitados fora e como não conseguiram negociar com as autoridades. Queriam recolher os mantimentos, mas isso foi impossível. Aquilo que foi parar a aterro serviria para ajudar quem ainda está na rua: e são ainda milhares.

Mais uma vez, aquilo que poderia ser uma boa intenção - recolher estas pessoas a um abrigo, como determina a lei internacional - revelou a má-fé de um Estado europeu. A Bélgica já tinha sido arrasada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos por não cumprir a obrigação de garantir as condições mínimas para estas pessoas e, aparentemente, a desumanização destes processos continua a ser a política-comum. Estes cerca de duzentos refugiados, pelo menos, terão um lugar quente para passar as próximas noites e é agora que começa um novo capítulo: anos de espera até ao reconhecimento do estatuto de refugiado ou equivalente. A ponte sobre o canal está vazia, mas nos cantos de Bruxelas 2 300 continuam sem-abrigo. Hoje nevou na cidade.

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