Pessoas que "desaparecem", mulheres e crianças escondidas em abrigos subterrâneos, tortura. Como milhares de ucranianos estão a ser enviados à força para a Rússia - TVI

Pessoas que "desaparecem", mulheres e crianças escondidas em abrigos subterrâneos, tortura. Como milhares de ucranianos estão a ser enviados à força para a Rússia

Geolocalização de vídeo que mostra civis que aguardam a sua retirada de Mariupol. Fonte: Centre for Information Resilience

Civis ucranianos estão a ser levados para fora de Donetsk em direção à Rússia numa viagem que pode acabar perto da fronteira com a Coreia do Norte. Cruzando os dados de geolocalização, de vídeos e de relatos, investigadores conseguiram reconstituir a movimentação de milhares de ucranianos obrigados a abandonar as suas casas

Colocados em tendas, seguidos dia e noite por militares russos e obrigados a darem as suas impressões digitais, morada e as informações do seu passaporte. É desta forma que civis ucranianos começam uma viagem cujo destino final pode levar mesmo a uma nova nacionalidade a mais de mil quilómetros das suas casas, segundo revela uma nova investigação do Centre for Information Resilience que conseguiu geolocalizar, a partir de vídeos e relatos, a travessia “kafkiana” de milhares de pessoas forçadamente deslocadas do seu lar.

De acordo com dados do Alto Comissariado para os Refugiados, até ao dia 28 de junho e desde o início da guerra, 1,4 milhões de ucranianos terão atravessado a fronteira para Rússia.

Um dos pontos centrais desta investigação foi o campo de Bezimenne, em Donetsk. Aí, segundo explica à CNN/TVI Sofia Santos, uma das redatoras do relatório juntamente com Benjamin Pitet, os civis, maioritariamente mulheres e crianças escondidas em abrigos subterrâneos de Mariupol, são “colocados em tendas, durante um tempo indeterminado e rodeados por militares russos até passarem por um processo de filtragem”. Sofia Santos sublinha que não se sabe o que acontece àqueles que não conseguem passar por este exame minucioso, mas “há relatos de pessoas que desaparecem e que são agredidas”.

Geolocalização da localização da zona onde as tendas (a verde) foram montadas para acolher refugiados em Bezimenne/ Centre for Information Resilience

Paralelamente a esta zona de filtragem identificada pelo relatório, a geolocalização feita pelos investigadores do Centre for Information Resilience permitiu detetar as coordenadas de um outro edifício, uma escola, “onde homens, civis, estão detidos contra a sua vontade sem poderem sair”, explica a investigadora. 

Um vídeo, gravado com uma câmara oculta, ajudou os investigadores do centro a encontrar o local exato da escola, analisando os ângulos, as sombras e outras imagens reproduzidas pela comunicação social russa. No vídeo, uma pessoa percorre os vários corredores da escola e descreve as condições em que vive como “insalubres”, sublinhando que “não é prestada assistência médica e que um lavatório serve para mais de 350 pessoas”. 

Numa tentativa de explicar por que razão, após semanas de detenção, os homens não são autorizados a sair do edifício apesar de terem "passado pela filtragem", a pessoa que gravou o vídeo afirma ter ouvido homens russos dizer que ainda não decidiram se querem usar os civis como "mão-de-obra para trabalhar nos escombros de Mariupol" ou enviá-los para o exército russo.

 

Petro Andriushchenko, um assessor da autarquia de Mariupol que partilhou o vídeo na sua conta oficial de Telegram, revelou que os civis que foram levados para a escola em Bezimenne para fugir aos conflitos entre Kiev e Moscovo “não receberam os seus documentos de volta, recebendo em vez disso um certificado de filtragem”. Quem tentava fugir do campo, descreve Andriushchenko, era espancado e detido, sendo que, se algum dos civis não estivesse presente durante as duas inspeções feitas todos os dias, “os invasores prometiam intensificar a tortura”.

Numa altura em que a propaganda tem influenciado o espaço de comunicação, “a geolocalização destes sítios dá evidências e provas que ajudam a comunidade científica a perceber o que aconteceu, na data em que aconteceu, mesmo depois de fotografias ou vídeos serem apagados” - o que acontece frequentemente, afirma Sofia Santos.

Geolocalização do vídeo filmado dentro de um campo em Bezimenne, utilizando uma câmara oculta / Centre for Information Resilience

As limitações da Rússia e a viagem para o país

De acordo com o relatório, os civis alojados nas tendas do campo de filtragem de Bezimenne, um de onze espalhados por Donetsk, são depois escoltados por militares até centros de acolhimento temporário na fronteira com a Rússia, país onde a sua viagem irreversivelmente terminará. 

Para o Major-General Arnaut Moreira, ex- diretor de Comunicações e Sistemas de Informação do Exército português, este deslocamento “massivo e forçado” de populações pode servir os interesses do Kremlin ao facilitar a administração dos territórios ocupados. “Essa gestão tem embatido num conjunto de dificuldades muito grandes por falta de colaboração da população”, pelo que, esta é uma forma de “evitar a contaminação do espirito de revolta naqueles que viram com bons olhos a invasão russa”.

Moreira refere também que a deportação forçada de civis ucranianos para a Rússia revela como a administração de Putin, “de repente, viu-se na posse de um território com muita gente que não saiu durante a guerra e que agora não tem condições para viver”, o que mostra também como o Kremlin “não tem a capacidade económica para criar o paraíso que prometeu desde o primeiro dia de invasão”.

Outro elemento que ajudou os investigadores do Centre for Information and Resilience a mapear o percurso destes refugiados ucranianos para a Rússia foi um vídeo publicado no dia 19 de março no Taganrog Pravda, um meio de comunicação russo, que mostra vários autocarros a atravessar a fronteira até uma zona com tendas. No vídeo, os civis no autocarro explicam que são de Mariupol antes de serem informados por oficiais do Kremlin que vão ser levados para a cidade de Taganrog, na região russa de Rostov, a 50 quilómetros da fronteira. 

Geolocalização da zona onde os civis pararam antes de serem levados para Taganrog / CIR

Mas qual o local exato para onde os civis foram transportados? Para responder a essa pergunta, Sofia Santos e Benjamin Pitet serviram-se de uma fotografia que mostra Inna Titarenko, autarca de Taganrog, a visitar um centro que estava a acolher 200 pessoas vindas da Ucrânia. Ao comparar essa imagem com uma outra de uma competição de esgrima tirada em 2019, os investigadores descobriram que o abrigo temporário estava localizado no Complexo Desportivo de Dvorets. “Tinha a foto de pessoas a dormir no centro de acolhimento e tentei encontrar o mesmo edifício através de imagens de satélite, mapas ou qualquer imagem com a qual consiga provar a localização sem sombra de dúvidas”, explica a investigadora portuguesa. 

Comparação de imagens do centro de acolhimento em Taganrog e da competição de esgrima/ CIR

O panfleto das promessas

"O Extremo Oriente da Rússia está à sua espera! Condições especiais para os participantes no programa estatal para a reinstalação de compatriotas estrangeiros que escolheram as regiões do Extremo Oriente da Federação Russa para toda a vida". Estas palavras aparecem em grande dimensão num panfleto entregue aos civis deslocados no Complexo Desportivo de Dvorets e fazem parte de uma estratégia do Kremlin para colocar ucranianos em zonas pouco habitadas, como Primorye, que faz fronteira com a Coreia do Norte. As promessas são vastas e incluem o pagamento de 170 mil rublos (cerca de 2 752 euros), a aquisição acelerada da cidadania russa (até três meses) e um hectare de terra livre.

Mas estas promessas nem sempre se tornam realidade, como o relatório do Centre for Information Resilience que cita ucranianos que tentaram aderir ao programa. Na verdade, os 170 mil rublos só são dados após seis meses do início do processo e, mesmo assim, só recebem metade desse valor. Já relativamente ao hectare de terra livre, ele só é fornecido no espaço de cinco anos e é na floresta.

Imagem do panfleto dado aos civis ucranianos no Complexo Desportivo de Dvorets

Para o coronel Carlos Mendes Dias, presidente do Centro Português de Geopolítica, a partir deste panfleto, “nota-se verdadeiramente a tentativa de desenraizar para depois criar condições de vida ditas normais para a população ucraniana”. A estratégia de Putin aqui, acrescenta, é a de tentar “amenizar o ódio que é lançado com o fenómeno da guerra e mostrar sinais de que a ‘Mãe Rússia’ encontra lugar para todos e os vê como seus filhos”.

Depois, argumenta o Coronel, há aqui a sensação de que “o inimigo precisa dessa população”. Por isso, “facilita-lhes os caminhos administrativos para garantir a nacionalidade, um processo em que a pessoa assume a sua fidelidade diante de um Estado”.

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