Sara Henriques tem 37 anos. Trabalha há 12 anos na mesma empresa, mas a sua experiência profissional é muito maior e há muitos anos que não precisava de “prestar contas” a ninguém. Vivia numa casa que pertencia a um familiar e foi obrigada a sair. Quando percebeu que o salário mínimo que recebe não lhe permitiam fazer face ao arrendamento de uma casa para viver com o filho de oito anos, foi um choque. Valeram-lhe os “braços abertos” com que o pai, José Henriques, a receberam a ela e a Rafael, que, na altura, tinha apenas três anos.
José prontificou-se a ceder o próprio quarto no T1 onde vive, em Odivelas, às portas de Lisboa, para a filha e o neto dormirem. Fez do sofá da sala a sua cama. É assim há três anos. “Apesar de ter pontuação máxima para ter direito a uma casa com renda acessível, ainda estavam a meter pessoas de 1983. Mandaram-me inscrever-me de dois em dois anos e é o que tenho feito. Neste momento, é um quarto para mim e para o Rafael e o meu pai dorme na sala. O Rafael não tem o quarto dele, as condições dele. Não tem a privacidade dele. E está a entrar numa idade em que já começa a pedir isso. E mesmo eu… nós mulheres gostamos sempre do nosso canto. Não é a mesma liberdade. É sempre diferente. Já estamos aqui há três anos. Chega a um ponto que começa a ser um pouco cansativo”, admite Sara.
Sara confessa que “o que mais queria” era ter uma casa para ela e para o filho e devolver ao pai a privacidade que sente que lhe roubou. “Não vivemos mal, mas não são condições. Damo-nos muito bem. Somos muito amigos um do outro. Mas claro que agora há sempre mais implicâncias. Começa a haver divergências, mas acaba sempre por se resolver”, diz.
“É um tiro no ego da pessoa ter de se sujeitar a isto de voltar para casa dos pais por não conseguir pagar a renda, apesar de trabalhar desde os 18 anos. Eu gostava de viver numa casa onde coubéssemos todos. Não me importava de continuar a viver com o meu pai, mas queria viver pelo menos num T2, para o meu pai não ter de dormir na sala”, lamenta.
A gestão do espaço e das relações
A falta de espaço é mesmo um dos aspetos abordados pela psicóloga clínica e educacional Ana Isabel Lage-Ferreira, membro da direção nacional da Ordem dos Psicólogos. Mesmo que a casa seja suficientemente grande para acolher os novos membros e não se viva o extremo que viveu José de ceder o quarto à filha, as questões do espaço são sempre delicadas.
“Traz sempre algumas entropias”, resume a especialista.
“Quando são pessoas de quem eu gosto, torna-se mais difícil. Quase não tenho direito de me chatear… E estamos a partir do pressuposto em que a relação já era positiva antes da mudança. Se já não era positiva ou só era positiva porque as pessoas só se viam pontualmente, em jantares ou festividades, é pior. Implica uma grande autoconsciência, uma grande capacidade para pensar em tudo o que nos está a acontecer”, acrescenta Ana Isabel Lage-Ferreira.
“Teresa”, chamemos-lhe assim, prefere manter o anonimato. Não tanto por vergonha da situação, mas mais para preservar os familiares envolvidos, incluindo a filha Maria, de 11 anos. Também há três anos e meio, “um mês antes de começar a pandemia”, separou-se. Tinha “uma vida boa” e uma vivenda espaçosa. Mas o divórcio trocou-lhe as voltas. Engenheira civil e um emprego estável, “ganhava 1200 euros limpos por mês”. Insuficiente para fazer face ao aluguer de uma casa para ela e para a filha, na região de Santa Maria da Feira, onde vive.
“Considero-me uma afortunada, porque os meus pais têm boas condições. Cada uma tem o seu quarto. Sempre tive uma boa relação com os meus pais e eles abriram-me a porta imediatamente. Mas eu gostava de receber os meus amigos, cozinhar para eles. Deixei de o fazer, porque não estou na minha casa. Mesmo a Maria não está completamente à vontade para receber as amiguinhas. Apesar de os meus pais dizerem ‘a casa é tua’, não é. Eu sinto que tenho de lhes pedir permissão”, relata.
Mas se os conflitos, que os há e “Teresa” não os nega, não têm origem no espaço e na falta dele, há outros aspetos da vida em que a interferência é inevitável: “A educação da Maria, por exemplo. Eles acabam por interferir sempre como avós. Eu própria sinto-me, por vezes, no meio dos conflitos entre eles, como casal. Vivo lá, não consigo alhear-me do que se passa. Não quero tomar partido entre eles, mas acabo sempre por estar envolvida.”
E, quando os ânimos azedam, há sempre palavras que uns não gostam de ouvir e outros se arrependem de dizer. “O meu pai, às vezes, no meio de uma discussão lá me diz ‘com 40 anos já tinha a minha independência’. Não o diz por mal e é no calor da discussão, mas magoa sempre…”, confessa “Teresa”.
"Reconstrução"
A psicóloga Ana Isabel Lage-Ferreira diz que “conviver com outra família, que por acaso são meus pais”, depois de anos de independência, nunca é fácil. “Se forem pais, às vezes ainda é pior, porque há sempre algumas implicações no que toca aos limites. Mesmo que seja uma relação positiva, significa sempre uma redefinição destes limites”, explica a especialista.
E os reflexos na saúde mental são quase inevitáveis. “Ansiedade aumentada, tensão psicológica, dificuldade em expressar-me e em assumir a minha autonomia”, enumera Ana Isabel Lage-Ferreira, adiantando que as implicações podem não ficar por aqui.
“A pessoa está sempre numa situação mais frágil, de reestruturação. É muito fácil ficar com as rotinas de quem nos acolhe e muito difícil adquirir novas rotinas. E o que no início pode ser muito securizante, pode tornar-se contraproducente”, acrescenta.
“Francisca”, 26 anos, pede anonimato. Não se sente “confortável”, para expor “com nome e rosto” o que viveu no último ano, embora sinta que o pior já passou. “Não deixa de ser uma situação real, mesmo não dando nome e a cara. Uma situação com a qual as pessoas se podem identificar e sentir que não estão sozinhas”, justifica.
Com menos de 20 anos, rumou do Porto a Lisboa para estudar dança. Cedo começou a trabalhar na área e acabou por abandonar os estudos. Habituou-se a trabalhar a dobrar para pagar as contas. Tenha o trabalho como bailarina, a recibos verdes. Passou mesmo pela revista do Parque Mayer. Mas o mundo do espetáculo é tão precário que fez sempre outras coisas: “Trabalhei em call center, em supermercados, em lojas… fiz tanta coisa. O objetivo era manter sempre as contas fixas asseguradas com este segundo emprego e, depois, os recibos verdes vinha o que viesse.”
“No ano passado, decidi arriscar e apostar só na dança. Tinha alguns contactos com artistas e arrisquei. Mas é um mundo extremamente incerto. Pode haver espetáculos ou não e não há espetáculos todos os dias. Depois, constatei que é maior a procura do que a oferta de trabalho e são poucos os que conseguem ter trabalho suficiente para pagar as contas e sobreviver”, recorda.
Com a escassez de trabalho e empresas a exigirem-lhe uma exclusividade que não lhe permitia procurar rendimentos extra, “Francisca” conseguiu aguentar a exclusividade do sonho apenas três meses: “Voltei para o Porto. O objetivo era reorganizar a minha vida e voltar para Lisboa. Juntar dinheiro para poder alugar de novo um quarto, pagar renda, caução, deslocações”.
“Os meus pais receberam-me bem. Entenderam a situação e tive apoio deles. Mas eu senti que tinha falhado, senti-me derrotada. Como se tivesse caído na vida. Ter de voltar à estaca zero, ter de arranjar um trabalho diferente daquilo que gosto…”, recorda.
Esteve seis meses num emprego que a consumia, a dividir a rotina com a família de quem se tinha separado seis anos antes para ser independente. “Recebi a proposta de vir para a Alemanha. Sou bailarina num parque que tem animação. Agora, vivo do que gosto de fazer e já consigo trabalhar sem viver na angústia permanente de saber como vou pagar as contas do próximo mês”, sublinha.
“Prefiro mil vezes isto do que estar a ter um trabalho que me afastava do meu sonho, só para poder pagar as contas”, admite.
A reconstrução é necessária do lado de quem chega, mas também do lado de quem recebe. A psicóloga Ana Isabel Lage-Ferreira dá um exemplo: “Eu mãe, que já não tinha umas rotinas tão rígidas, e, de repente, tenho outra vez refeições para fazer, até a tomar conta de crianças. Mesmo que não seja obrigada, sinto-me na obrigação de o fazer. Tinham uma rotina que fica interrompida, se não interrompida, fica com algum ruido.”
Assim, é necessário a ambas as partes fazerem o luto de uma vida que ficou para trás ou pelo menos interrompida: “Dar-nos tempo para ficarmos tristes, sem energia. Se não tiver outra utilidade, que o sofrimento nos faça parar para que a reflexão seja mais ponderada. As emoções negativas da frustração, da tristeza, do desamparo têm de ser vividas”.
A gestão das contas e da casa
“Teresa” tem 42 anos e passa pela angústia de não ver luz ao fundo do túnel. “Já me mentalizei que, enquanto não refizer a minha vida amorosa e encontrar uma pessoa com quem dividir contas, não vou sair de casa dos meus pais. Tenho dias em que penso que vou gerir a situação da melhor maneira e me sinto conformada. E tenho dias em que me apetece sair dali e educar a Maria à minha maneira, sem interferências”, revela.
A engenheira civil não quer ser um fardo para os pais. Eles fazem questão de pagar o grosso das despesas da casa, mas “Teresa” esforça-se para contribuir: “Pago coisas residuais. As minhas coisas e as da Maria. Vou ao supermercado e compro as coisas que especificamente são para nós. A Maria faz uma alimentação sem glúten e eu compro as coisas para elas. Pago a internet, a Netflix e os telemóveis de todos. De resto os meus pais assumem as despesas todas da casa. Em termos de tarefas, sou eu que limpo os nossos espaços, passo a ferro a minha roupa e a da maria e tento ajudar os meus pais naquilo que posso, quando é necessário.”
Em casa dos Henriques, Sara é uma rainha entre os homens e a gestão da rotina é simples, assegura. “O meu pai levanta-se às 06:00 e vai logo para o trabalho. Nem damos conta de ele sair. Eu e o Rafael levantamo-nos por volta das 08:30. Às 09:30, deixo o Rafael na escola e vou para o meu trabalho. Por volta das 18:00, está tudo em casa outra vez. Às vezes, há pequenas confusões, mas conseguimos gerir tudo. Damo-nos muito bem. Em termos de lides domésticas, todos ajudam, incluindo o Rafael”, relata.
Os conselhos para um regresso pacífico
Ana Isabel Lage-Ferreira sublinha que, “antes de mudar, é necessária uma clarificação das expectativas”. “Dar um limite temporal à situação, por exemplo, pode ser importante”, começa por aconselhar.
Além disso, é importante, sublinha, fazer “uma gestão das expectativas de limites, dividir orçamento, organizar as rotinas, ‘o que eu espero que tu faças ou não faças’ e também ‘o que não esperar de nós’”. Na realidade, reforça a psicóloga, a comunicação é a chave para resolver problemas que se instalam e evitar mesmo que surjam: “Quanto mais cedo falarmos dos nossos desconfortos e do nosso mal-estar, melhor. Não deixar acumular, porque a forma como vamos lidar vai ser desajustada”.
Para os pais que recebem os filhos, a especialista aconselha que “procurem manter as suas rotinas habituais, que não hipotequem toda a vida por causa desta situação”. “Se eu ia à hidroginástica ou tomar café com as amigas, é importante que o continue a fazer. Se íamos para fora aos fins de semana, é importante que continuemos a ir”, exemplifica.
Para os filhos que regressam ao ninho, Ana Isabel Lage-Ferreira lembra que “os lutos nunca serão fáceis em circunstância nenhuma”, mas podem ser mais fáceis quando temos a capacidade para identificar outros recursos: “Perceber que não perdi tudo… perdi aquela pessoa, perdi aquela casa, perdi aquele emprego e sinto que perdi tudo. Mas, se olhar à volta, percebo as competências que tenho, as relações que tenho, a vida que tenho.”
“Sejam recursos sociais, amigos com quem posso conversar e que me podem ajudar a ultrapassar a situação, sejam recursos financeiros, ou mesmo recursos emocionais. Olhar para mim e perceber que perdi alguma coisa, mas não perdi a minha capacidade de me reestruturar é muito importante”, sublinha.
À família que resulta da junção das duas famílias, a psicóloga lembra que é importante “haver tempo para ambas as famílias estarem sozinhas. Não precisam de fazer tudo juntos e é até muito bom que o não façam.”