O futebol não vive sem rivalidades. Os sorrisos de uns são as lágrimas de outros, o saltar repentino de uma cadeira contradiz com o cabisbaixo do derrotado, a alegria contagiante opõe-se à azia pós-derrota.
É fácil ser adepto depois das vitórias, mas custa ser alvo de chacota depois do desaire. São horas de má disposição, dias sem vontade de comer e ânsia de um novo jogo para apagar da memória um resultado negativo.
Quando se fala de clássicos ou dérbis, os sentimentos são levados ainda mais ao limite. E, se a isso juntarmos as diferenças no seio da família, temos a rivalidade no seu estado mais puro. Mas uma rivalidade não tem de significar, per si, algo negativo. É ela que sustenta o desporto e alimenta o constante desenrolar da atividade.
Há quem tenha nascido numa família de futebol, com o gosto pela bola em cada poro da pele, mas mesmo assim saiba separar as águas e não extravase a linha da disputa saudável. É o caso da família Alves, que teve três gerações de futebolistas – e a quarta parece estar a caminho.
O pai e os tios de Washington já jogavam no Brasil, o próprio foi futebolista no Flamengo, mas na década de 70 veio para Portugal e não mais daqui saiu. Figura icónica do Varzim, passou o ADN futebolístico aos filhos Geraldo, Bruno e Júlio.
Todos lhe seguiram as pisadas, tiveram a oportunidade de representar os grandes, mas só dois deles – os mais velhos – viveram a intensidade dos clássicos.
«A minha infância foi acompanhar o meu pai, que era futebolista, o meu avô e os meus tios também, por isso era muito difícil sairmos dessa zona. A bola sempre foi o nosso brinquedo favorito, provavelmente o único porque naquela altura não existiam brinquedos como existem hoje. Jogávamos muito na rua e na escola. No final do dia, íamos para o treino», conta, em conversa com o Maisfutebol, Geraldo, agora treinador de camadas jovens na Roménia, onde terminou a carreira.
Apesar de ser mais velho do que o irmão Bruno, os dois coincidiram na formação do Varzim e já aí o temperamento tinha de ser controlado. «No clube era tranquilo, mas o meu irmão tinha um temperamento que obrigava, muitas vezes, a acalmá-lo. Era difícil. O meu pai era nosso treinador e ele, às vezes, dava umas "sarrafadas" e o meu pai tinha de o tirar do treino. Já vinha dele, a raça estava nele.»
No início deste século, à boleia de uma conversa do seu tio com Mozer, Geraldo fez testes no Benfica e integrou a equipa B dos encarnados. Pela mesma altura, Bruno Alves rumou ao FC Porto. Dois irmãos separados por vários quilómetros e cores diferentes.
«O meu tio encontrou-se com o Mozer, que também jogou nas camadas jovens do Flamengo, perguntou pelo meu pai e o meu tio, em conversa, sabendo que o Mozer estava na estrutura do Benfica, perguntou se o sobrinho – que era eu – podia ir lá fazer provas. E fui com sucesso. Depois de três dias, assinei», lembra.
«O Bruno vai no mesmo ano para o FC Porto. Tinha feito o torneio Ala-Arriba contra o FC Porto, parte a tíbia e o perónio, mas consegue recuperar em tempo recorde e o João Pinto disse que ele ia com eles na mesma», recorda ainda.
Começou aí a rivalidade «saudável», como faz questão de frisar várias vezes em conversa com o nosso jornal. Geraldo era voz de comando na defesa, mas, além da sua equipa, também tinha de se preocupar com o irmão. Em casa, o ambiente era «picadinho» a ver os clássicos, mas o «amor de irmãos» sempre se sobrepôs à paixão pelos clubes.
«Num torneio de Odivelas, aconteceu algo caricato. O Bruno estava a jogar contra o Barcelona ou o Real Madrid, foi expulso e a nossa equipa estava prestes a entrar para o aquecimento. Ele vem todo irado e ninguém o conseguia segurar, nem os diretores do FC Porto. Saí da zona onde estava no estádio, fui ter com ele e toda a gente ficou admirada: eu com a camisola do Benfica e ele com a do FC Porto. Fui a única pessoa a acalmá-lo, a levá-lo ao balneário e ninguém entendeu nada. Ninguém sabia que era o meu irmão, só os meus colegas de equipa. Toda a gente no estádio ficou admirada», revela.
O sofá lá de casa ainda é palco de muita «picardia» com «cada um a puxar para o seu lado».
«Existia o amor de irmão. Queria muito que ele estivesse bem e que a equipa dele ganhasse. E ele queria a mesma coisa. Obviamente que, quando jogávamos um contra o outro, cada um tinha as suas cores, mas no final tudo acabava bem», lembra ainda Geraldo, que destaca a importância do pai Washington, pilar da mentalidade dos filhos.
«O meu pai via mais o futebol na parte individual, não tanto como adepto. Falávamos como agir no campo, manter a calma e da parte de treino. O meu irmão, na altura, já treinava imenso sozinho. O meu pai também me dizia o que fazer. O papel principal dele foi esse e não tanto a rivalidade Benfica-FC Porto. Isso passava-se mais quando estávamos em casa a ver os jogos. Aí sim, cada um torcia pelo seu e era "picadinho"», confessa.
A «mística» encarnada e o «milagreiro» do FC Porto
Mais de 20 anos volvidos, as duas equipas encontram-se em situações diferentes. Geraldo assume que viveu num «Benfica com imensos problemas, com muitos jogadores com um grande potencial, mas numa equipa sem muita crença, que não conseguia lutar pelos lugares de cima». O principal foco de instabilidade foram as sucessivas trocas de treinadores.
Apesar disso, os dérbis e clássicos não tinham menor peso.
«Ainda me lembro de ir ao Estádio das Antas e levar com bolas de golfe. Estávamos todos no corredor, com cortinas fechadas e depois tínhamos de aquecer no campo de fora e não no campo principal, porque eles não deixavam na altura. Não era fácil, mas adorava esses jogos. Eram jogos com muita emoção, muita adrenalina. O Benfica não tinha uma equipa melhor que a do FC Porto, se calhar tinha individualidades melhores, mas não era como agora. O Benfica está muito melhor», considera.
Geraldo avalia que «poucos são os jogadores que conseguem continuar a mística do Benfica» atualmente, devido à incapacidade dos encarnados em segurarem os melhores futebolistas.
«Os jogadores que sentem o Benfica mais do que ninguém são os jogadores mais jovens. Os estrangeiros ainda não sentem. O maior problema do Benfica é não conseguir manter certos jogadores por um determinado período para manter a mística do Benfica», salienta.
Por outro lado, o antigo defesa-central destaca que a mística portista «continua muito forte, por muitos problemas que tenham».
«O jogo contra o Benfica, de momento, é o conquistar de um campeonato para o FC Porto. Para o Benfica, é um jogo difícil, mas o Benfica lutará sempre pelo campeonato, são objetivos diferentes», alerta, considerando que os dragões podem baralhar a luta pelo título em caso de vitória.
Para isso, pode ser importante Sérgio Conceição que, «sendo português e portista», consegue transmitir aos jogadores o peso da responsabilidade que têm em mãos.
«O Sérgio Conceição neste momento é um milagreiro, consegue fazer bastante com pouco. O Roger Schmidt faz um trabalho bom porque tem bons jogadores», atira.
Mas, conseguir um bom resultado nestes jogos vai além de entender a importância de um clássico ou dérbi. E Geraldo sabe-o bem, já que se estreou pela equipa principal do Benfica diante do Sporting e cumpriu o segundo jogo… frente ao FC Porto.
«Senti mais importância no Benfica-Sporting, do que propriamente da parte do Benfica em relação ao FC Porto. Acho que o FC Porto deu mais importância em relação ao Benfica. O Benfica deu mais importância ao Sporting, num estádio completamente cheio. Estava a jogar snooker antes do jogo e o estádio quase abanava quando gritavam», recorda.
No domingo, Geraldo vai estar novamente no sofá, a recordar as picardias com o irmão e a puxar para o seu lado, sabendo que só um poderá sorrir no final. «Que seja um bom Clássico e espero que ganhe o Benfica. Já o meu irmão… foi capitão do FC Porto, tem de sangrar azul.»
O futebol não vive sem rivalidades. E domingo é dia de uma das maiores do futebol português: FC Porto-Benfica no Dragão.