Exclusivo. Maior ilha do Tejo em risco. Promessas do Governo nunca saíram do papel - TVI

Exclusivo. Maior ilha do Tejo em risco. Promessas do Governo nunca saíram do papel

  • Nuno Guedes
  • 17 jan 2023, 00:34

Imagens revelam a destruição causada por um rombo que dura há sete anos. O "desastre ecológico", como é classificado pelos ambientalistas, já custou milhões de euros aos municípios de Lisboa pelos efeitos na central de queima de lixo localizada na outra margem do rio.

Há uma ilha gigante à beira de Lisboa, em plena Reserva Natural do Estuário do Tejo, que está à beira de desaparecer. Tudo por causa de um rombo num dique que o Governo promete há anos que vai resolver.

A ilha, conhecida pelo nome de Mouchão da Póvoa, fica entre Alverca e Loures – quase a chegar ao Parque das Nações –, e é tão grande que existe um grupo de peritos que defende que é a solução ideal para o futuro aeroporto de Lisboa.

A proposta é mesmo feita por um antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, numa hipótese difícil de imaginar depois de ver as imagens captadas pelo Exclusivo da TVI (do Grupo da CNN Portugal) que revelam a devastação numa zona  que durante séculos foi uma vasta ilha agrícola, com cerca de mil hectares, mas que hoje está quase toda debaixo de água, ao ritmo da maré cheia.

Os mouchões são ilhas que existem nos estuários dos rios. No Tejo há três e o Mouchão da Póvoa é, há séculos, o maior.  À semelhança da Lezíria, como explica o presidente da Câmara de Vila Franca de Xira, estas ilhas têm de ser protegidas por muros, sob pena de serem invadidas pelas águas salgadas do mar que sobem pelo estuário.

Foi isso que aconteceu em 2016 quando surgiu um pequeno rombo no Mouchão da Póvoa que a Agência Portuguesa do Ambiente proibiu que fosse estancado de imediato, para espanto do proprietário e dos pescadores da Póvoa de Santa Iria que queriam travar o problema pela raiz. Era preciso ter um projeto aprovado e confirmar que a propriedade seria pública ou privada.

"Eu gostava de ter o nome das pessoas que falaram comigo na altura para lhes perguntar o que fazem agora", desabafa o pescador Alfredo Fernandes.

Ex-ministro confirma "erro gravíssimo"

Desde 2016 sucederam-se as promessas do Ministério do Ambiente que logo na altura prometeu tapar o rombo pelas graves consequências ambientais que eram diagnosticadas pelos serviços competentes.

Em 2018, o ex-ministro do Ambiente, Matos Fernandes, foi inclusive à Póvoa de Santa Iria assinar um contrato de um milhão de euros para avançar com obras que já na altura eram classificadas como urgentes, mas o empreiteiro desistiu quando chegou ao local e viu que o rombo tinha aumentado para um tamanho muito superior ao que estava no caderno de encargos – o buraco cresce com os detritos arrastados por cada maré.

O antigo governante confirma agora à TVI que houve um "erro gravíssimo" no projeto que levou mesmo à saída de um vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Apesar da falta de respostas da APA ao Exclusivo ao longo de 3 meses de insistência, o portal da transparência do Estado revela que a agência tutelada pelo Governo assinou um novo contrato há menos de um mês: quase 80 mil euros para fazer um novo projeto de obras que tape o rombo no Mouchão da Póvoa. 

O valor da obra é nesta altura imprevisível, mas parece certo que será muito superior ao concurso público adjudicado em 2018 por um milhão de euros, havendo quem defenda que não se justifica que o Estado pague uma intervenção num espaço privado.

Estado perde processo em tribunal. Ilha é mesmo privada

O Mouchão da Póvoa é hoje o principal bem da massa falida da empresa que era dona daqueles terrenos, a "Ilha Indústria Agrícola SA", que o tribunal declarou insolvente em 2017 com dívidas superiores a 7 milhões de euros, como revela o processo consultado pela TVI que ainda hoje corre no Tribunal do Comércio.

Há três meses o Estado perdeu, inclusive, um processo no Tribunal da Relação que confirmou que a grande ilha do Tejo é mesmo privada e não pública, ao contrário da hipótese levantada pela APA com base numa lei de 2005.

Os responsáveis pela massa insolvente foram à Torre do Tombo para provar que o Mouchão é privado desde pelo menos o início do século XIX. 

Em 2022 o Montepio vendeu a uma outra empresa privada, por 300 mil euros, os créditos referentes a dívidas superiores a 5 milhões de euros que tinha sobre a empresa insolvente.

O Mouchão da Póvoa, que antes do rombo já estava semi-abandonado, sem cultivos agrícolas há vários anos, está hoje cheio de água na maré alta e lama na maré baixa. 

Os solos muito férteis do passado, como revelam os relatos de quem lá trabalhou, estão altamente danificados pelo sal que impedirá, segundo os ambientalistas, qualquer plantação durante muito tempo.

Estamos à beira de um ponto de não retorno, sem solução possível, afirma Hélder Careto, dirigente do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), que fala mesmo num "desastre ecológico".

Rui Pinheiro, da Associação de Defesa do Ambiente de Loures, sublinha que o fim do Mouchão significa alterar todo o ecossistema da zona, com graves consequências para o Tejo.

Queima do lixo da Grande Lisboa em risco

Tomás Serra, administrador da Valorsul, empresa que gere a central de queima de lixo de 1,6 milhões de pessoas na outra margem do Tejo, confirma que ao longo dos anos têm tido imensos problemas por causa da destruição do Mouchão da Póvoa.

Quando a maré vaza saem da ilha toneladas de água e muita lama que fez subir, em vários metros, o fundo do rio, pondo em causa a captação de água fundamental para arrefecer a Central de Valorização Energética que já esteve mesmo em risco de parar.

Hoje o risco está "mitigado" e controlado, ao contrário do que aconteceu num passado recente, mas a lama que é sugada pelos tubos continua a ser demasiado abundante, reduzindo a capacidade de produzir energia elétrica.

A fatura dessa redução na produção de eletricidade é refletida na taxa paga pelos 19 municípios da Região de Lisboa e da Região Oeste que depositam ali o lixo, num custa extra, segundo a Valorsul, de cerca de um milhão de euros por ano, a mais, para os cofres públicos das autarquias.

Um aeroporto no meio do Tejo?

Enquanto as obras não saem das intenções e o Mouchão da Póvoa está inundado de água e repleto de aves que a determinadas horas enchem os céus, há uma ideia em cima da mesa apresentada por vários peritos, sobretudo engenheiros, encabeçados por Carmona Rodrigues, o antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa: trazer para esta enorme ilha à beira de Lisboa o novo aeroporto de capital, juntando-a à base aérea de Alverca que fica ali ao lado.

As duas pistas necessárias para construir o aeroporto ficariam no Mouchão que tem tamanho mais que suficiente e cuja destruição atual, provocada pelo rombo no dique, para estes engenheiros, é vista como uma oportunidade para resolver os problemas aeroportuários de Lisboa.

Aos críticos, os especialistas recordam que há outros aeroportos pelo mundo construídos em ilhas. 

Em relação aos milhares de aves que hoje se encontram naquele espaço, como revelam as imagens captadas pelo Exclusivo, José Furtado, engenheiro e porta-voz deste grupo de peritos, diz que os estudos feitos antes da inundação revelavam a presença de muito poucas aves. 

As que hoje se encontram no Mouchão da Póvoa, afirma José Furtado, terão sido atraídas pela água que vai desaparecer quando o rombo for arranjado. A presença das aves será provisória, afirma. 

Comissão estuda aeroporto

Fonte ligada à comissão nomeada pelo Governo para escolher a localização do futuro aeroporto confirma que a opção Alverca/Mouchão vai ser alvo de uma primeira avaliação para perceber se faz sentido passar para uma fase mais avançada de estudos.  

Vários membros da comissão de acompanhamento têm, no entanto, muitas dúvidas. Em causa, por exemplo, os impactos ambientais sublinhados pelos ambientalistas: ao contrário de qualquer outra alternativa, o Mouchão da Póvoa está dentro da Reserva Natural do Estuário de Tejo.

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