Quando se coloca ‘Rui Nabeiro’ no GPS, são devolvidos quatro resultados em Campo Maior: a rua, o centro escolar, o centro internacional e o pavilhão. Mas, em abono da verdade, há que juntar-lhe um quinto: a estátua do comendador, logo à entrada da vila.
Segue-se até à Rua Rui Nabeiro, algo afastada do centro. Joaquim Galega chega de carro. Aos 89 anos, ainda guia. Foi buscar o jantar, que traz numa pequena cesta de plástico. “Eu já cá morava quando a rua mudou de nome. O senhor comendador é qualquer coisa.”
Chama-lhe “senhor comendador” mesmo que, em gaiato, tenha sido seu “camarada de bola de trapo”. “Jogávamos lá em baixo”. Joaquim andou durante muitos anos pela Bélgica, mas agora não há quem o tire de Campo Maior. “O melhor do mundo é este solinho do Alentejo.” Desta terra já ninguém o tira.
O futuro: Rui e Rita
Também Rui Nabeiro, que será sepultado na tarde desta terça-feira, nunca se quis separar da terra. A partir dela criou o império da Delta. E os campomaiorenses, por mais que queiram acreditar que o “senhor Rui” deixou tudo bem distribuído, não deixam de recear que a nova geração faça as coisas de uma forma diferente.
Porque Rui Miguel Nabeiro, presidente do grupo Delta Cafés desde 2021 por decisão do avô, e Rita Nabeiro, responsável pelos pelouros da sustentabilidade e dos recursos humanos, por muito que possam estar ligados à terra, não nasceram nem cresceram aqui. Foi em Lisboa que fizeram as suas carreiras. E não se deseja que eles levem para a capital o que tantos anos levou a construir nesta vila raiana.
“É um ciclo que se encerra. E uma nova era que começa. Mas a ligação pessoal com Campo Maior vai perder-se”, diz André Caldeirão. Trabalhou seis anos na Delta, os estudos levaram-no para o Algarve, mas o “senhor Rui” nunca lhe fechou a porta para o caso de ele querer voltar. O jovem segue apressado no largo da igreja matriz, de óculos escuros, depois de ter estado na fila para prestar uma última homenagem. Veio de propósito do Algarve. Não podia ser de outra forma.
Decisão semelhante tomou Xavier Gonçalves que, ao saber da notícia da morte, abalou logo de Lisboa para a terra natal. Sobre o futuro, não tem dúvidas: “é preciso continuar a deixar o centro de decisão em Campo Maior” e a apoiar as instituições locais. Só isso garante que a gente se fixe e se sinta abraçada pela Delta. Aos herdeiros, reconhece a preparação. “Mas não é nada fácil ser o sucessor num império com tantas questões emocionais.”
“Nascidos na riqueza”, aprovados na pobreza?
“Deus queira que continuem a ajudar os pobres de Campo Maior. Porque os netos já nasceram na riqueza”, ouve-se entre as conversas do povo. Há impérios que surgem do nada. Mas, quando a dinastia está fixada, não há como contrariá-la. São muitas as vezes em que, por estas bandas, Rui Nabeiro é comparado a um rei. O rei do café. Mas, sempre que parte um monarca, coloca-se a questão: será o próximo tão bom?
À CNN Portugal, um dos diretores da Delta, que prefere manter o anonimato, avisa que não é possível fazer comparações. “Seria um desrespeito para ambas as partes, para quem parte e para quem fica”. Mas as comparações são inevitáveis. Porque Rui Nabeiro, no seu estilo, fez bem a muita gente, resolveu mais problemas do que o dever lhe competia.
Ao telefone, a partir de Lisboa, a psicóloga Ana Rute Farinha reconhece que Campo Maior (e o país) está perante um cenário de “tristeza coletiva e comoção generalizada”. O consenso que reuniu o empresário, diz, ajuda às manifestações de carinho mais exacerbadas, mesmo junto de quem não o conhecia pessoalmente. Mas esse consenso também alimenta comparações.
“É normal haver tanta especulação e expectativa em relação àquilo que os seus descendentes vão fazer daqui em diante. Poderá não ser justo, mas é expectável, tendo em conta aquilo que Rui Nabeiro fez e representa. É normal que as pessoas esperem que os seus descendentes sigam o legado, pois é de grande valor”, completa.
Um velório à antiga
A nova geração à frente da Delta vai ter de provar que tem mesmo raízes em Campo Maior. É isso que os campomaiorenses esperam deles, mesmo sabendo que não lhes poderão pedir trabalho de viva voz, como se fazia ao avô. Na dor da despedida, essas preocupações importam, mas são secundárias. O que importa é honrar as memórias boas do empresário.
Na igreja Matriz de Campo Maior, as filas foram constantes ao longo do dia. Praticamente não pararam. A meio da tarde, três horas depois de o velório ter aberto as portas aos populares, eram mais de duzentas as páginas assinadas no livro de condolências. Ao início da noite, mais de cinco mil pessoas tinham passado pela igreja matriz. Todos recebidos pessoalmente pela família Nabeiro. Os filhos, João Manuel e Helena, iam cumprimentando quem chegava, agradecendo o apoio e as recordações trazidas. Os familiares iam-se revezando na função. Porque o velório, honrando a tradição alentejana, é levado noite dentro, as portas não se fecharam. Nem para os campomaiorenses nem para todos aqueles que, vindo de fora – como as grandes figuras da política e da economia, como Marcelo Rebelo de Sousa ou Augusto Santos Silva, esperados esta terça-feira – se quiseram despedir.
Do marco à marca
Mas, e no dia a seguir, quando as atenções se virarem para outro lado? Por aqui, espera-se que o nome e o rosto do comendador continuem a puxar pela terra e pelo trabalho daqueles que nela vivem.
Xavier Gonçalves faz mesmo uma comparação: que, tal como aconteceu com a gigante da alimentação KFC, que usa o rosto do fundador no seu logotipo, também a Delta possa fazer essa homenagem. Passar do marco que foi o homem à marca.
Carlos Moura, empresário e presidente da AHRESP, associação que representa o setor da restauração e turismo, também veio de Lisboa de propósito para prestar a última homenagem ao comendador. Negociou com várias gerações da família e lembra os tempos em que gigante Nestlé acenou a Nabeiro com propostas de compra: “mas o comendador tinha um princípio em que não cedia. Sempre impôs que a fábrica não saísse de Campo Maior”. “Nada é inalterável. Não temos o condão de adivinhar. Mas as raízes são muito profundas”, diz.
Entre os populares, há mesmo quem conte que “o senhor Rui” costumava dizer que, enquanto tivesse os olhos abertos, não ia nada para Lisboa. Os olhos do “senhor Rui” fecharam-se.
Devolver o gesto: as flores
O povo sabe que todas as homenagens serão sempre poucas. E não se preparou para a despedida, mesmo que a idade de Rui Nabeiro implicasse que se começasse a preparar esse cenário. “As pessoas que amamos não têm idade”, dizem. E, talvez por isso, a própria autarquia não tenha planos para, no curto prazo, desenvolver outras formas de homenagem, como admitiu o atual autarca Luís Rosinha à CNN.
Ricardo Pinheiro, hoje deputado, também já assumiu a liderança da Câmara de Campo Maior – tal como “o senhor Rui”, seu antigo patrão, por quem não contém as lágrimas. “Tinha uma forma absolutamente inteligente de olhar para as pessoas e era capaz de lhes tirar o valor sem olhar para os currículos”.
“A maior característica do senhor Rui era a presença diária”, acrescenta. Mas, agora que essa presença física não pode continuar, como fica Campo Maior? Fica com os valores do empresário, que nunca escondeu a vontade de “criar esse valor a partir de Campo Maior”. “A melhor forma de o homenagearmos é sonharmos com muitos projetos”.
E o povo encontrou forma de o homenagear, pelas flores, com dezenas de grinaldas, que vão chegando ao longo do dia. Devolvendo o gesto que o “senhor Rui” sempre tinha quando alguém morria na vila: mal sabia da notícia, fazia questão de ser dos primeiros a estar no velório. Hoje, a terra amada foi pequena para tantos.