Um antiobituário: Ryuichi Sakamoto está vivo - TVI

Um antiobituário: Ryuichi Sakamoto está vivo

Ryuichi Sakamoto em 2009 (AP)

Mas está doente. Muito doente. Ele que fez de tudo, incluindo toques de telemóvel do Nokia 8800, ele que ganhou tanto - até um óscar. Tem cancro. Mas está valente: tem um novo disco

“Música, trabalho e vida têm um princípio e um fim”, disse Ryuichi Sakamoto no início de 2019. “O que quero fazer agora é música livre das restrições do tempo.” A que soa a música sem tempo? 

Descobrimo-lo, em parte, a 11 de dezembro, quando o músico transmitiu um concerto via streaming para 30 países, no qual interpretou alguns dos seus temas mais conhecidos e outros inéditos. Sakamoto, que está doente com cancro numa fase bastante avançada, admitiu que não se sentia com força suficiente para interpretar um concerto com uma hora de duração. Por isso, cada tema foi gravado isoladamente e depois montado para ser apresentado como “um concerto convencional”, explicou. “Não tenho energias para apresentações ao vivo, esta poderá ser a última vez que me veem desta forma.”

Alguns dos temas que interpretou nessa ocasião fazem parte do seu novo álbum, intitulado “12”, que é lançado esta terça-feira, dia em que celebra o 71º aniversário. Será o seu 15º álbum de estúdio a solo e o primeiro em seis anos com material que não pertence a nenhuma banda sonora. Os 12 temas novos foram compostos e gravados ao longo dos últimos dois anos, ao mesmo tempo que o músico realizava tratamentos contra o cancro. Quase como um diário, os títulos das peças correspondem às datas das gravações, com exceção de “20220302 - sarabande”, que é um estilo de dança do século XVII.

"Depois de finalmente 'voltar para casa', para o meu novo alojamento temporário após uma grande operação, dei por mim a pegar no sintetizador", contou Sakamoto. "Não tinha intenção de compor algo, só queria ser inundado de som."

Em 2014 foi-lhe diagnosticado cancro da garganta, que foi curado após anos de tratamento. “Foi o momento mais difícil e fisicamente mais doloroso da minha vida. Quase não conseguia comer, quase não conseguia engolir a minha própria saliva”, contou mais tarde.

“Não sei quantos mais anos tenho pela frente, mas sei que quero fazer mais música. Música que não tenha vergonha de deixar para trás, trabalho significativo”, dizia Ryuichi Sakamoto no documentário “Coda”, realizado por Stephen Nomura Schible em 2018, num momento em que se julgava já recuperado e em que se expôs como nunca tinha feito antes, revelando também algumas das suas preocupações com o ambiente, com a energia nuclear e com o futuro do planeta.

Mas em janeiro de 2021 revelou que lhe tinha sido diagnosticado um cancro no intestino um ano antes. E em junho passado escreveu um ensaio intitulado “Viver com cancro”, no qual explicava que a doença se tinha espalhado, apesar de várias cirurgias, e que estava agora na muito avançada fase quatro. "Acabei de fazer 70 anos, mas quantas mais vezes verei a lua cheia?", perguntava-se. "Mas mesmo pensando nisso, como me foi dado o dom da vida só rezo que possa fazer música até aos meus últimos momentos, tal como os meus amados Bach e Debussy."

Beatles e Debussy, piano e sintetizador

Na biografia que está no seu site oficial, a história de Sakamoto começa com as viagens de comboio que ele fazia diariamente quando estava no liceu. Foi nessas viagens, prestando atenção aos muitos ruídos do comboio e do mundo, que aprendeu a ouvir, conta. A ouvir verdadeiramente. “Temos de abrir os ouvidos o tempo todo, porque qualquer coisa pode acontecer inesperadamente.”

Sakamoto nasceu em Tóquio, no Japão, em 1952, ano em que John Cage compôs “4′33”, e cresceu imerso nas artes. O seu pai era editor dos romancistas Kenzaburō Ōe e Yukio Mishima. “A toda a hora, esses jovens aspirantes a escritores e romancistas vinham a nossa casa e havia muita bebida e muitos livros, tínhamos de ter cuidado para evitar que as pilhas de livros não desabassem sobre nós”, disse numa entrevista ao The Guardian em 2018. Foi para "uma das escolas infantis mais liberais e conceptuais" do Japão, que Yoko Ono também frequentou e onde desde muito cedo teve contacto com a arte e a música clássica, pintando e tendo aulas de piano desde os seis anos de idade.

Aos 11 anos apaixonou-se pelos Beatles e pelos Rolling Stones. “Eu não sabia se eram britânicos ou americanos, apenas que eram ocidentais”, dizia. “Mas adorava-os. Tinha a música pop de um lado e Bach e Haydn do outro. Depois, quando eu tinha 13 anos, Debussy entrou no meu ouvido. Música sobre um estado de espírito e atmosfera e não de leste ou oeste. A música asiática influenciou Debussy, que me influenciou – é tudo um grande círculo.”

Quando chegou à Universidade de Artes de Tóquio para estudar etnomusicologia e composição musical, Sakamoto começou também a interessar-se pelo uso do sintetizador, à semelhança do que fazia Ianis Xenakis. Isso foi em 1970. Nessa fase já era um intérprete procurado. Tocou com bandas de free jazz e, em 1972, conheceu o cantor de folk-rock Masato Tomobe, que o levou em digressão como seu teclista. “Eu trabalhava com o computador na universidade e tocava jazz durante o dia, à tarde comprava discos psicadélicos e os primeiros discos do Kraftwerk e à noite tocava folk.”

Dessa digressão surgiram contactos na indústria e a possibilidade de conhecer e tocar com outros músicos, como Yukihiro Takahashi e Haruomi Hosono, com quem em 1978 formou a banda de electropop Yellow Magic Orchestra (YMO). O techno-pop da YMO, com temas como “Computer Game”, foi um sucesso mundial, especialmente nos Estados Unidos, e o grupo acabaria por ser pioneiro e influenciar muitos dos novos géneros músicais, do techno ao hip hop e à electro. Sakamoto foi o compositor de muitos dos temas, tocava teclas e às vezes também cantava. O grupo existiu até 1984 mas ele acabou por desde logo iniciar também uma carreira a solo com "Thousand Knives". 

Ryuichi Sakamoto nunca rejeitou a sua obra com a YMO e voltou várias vezes a ela - mas sem saudosismo. “É uma sensação boa mas o passado já passou”, diz. “Estou sempre ansioso porque quero ouvir ou ver ou sentir algo desconhecido. Andar para a frente, não para trás.”

Sempre a explorar: do cinema às músicas de todo o mundo

Em 1980, Sakamoto lançou o álbum “B-2 Unit”, considerado o seu disco "mais ousado" e que incluía "Riot in Lagos", um dos primeiros exemplos de música electro-funk. Em 2011, o tema foi incluído pelo The Guardian na lista dos 50 principais eventos na história da “dance music”.  Por esta altura iniciou a colaboração com o músico David Sylvian e em 1983 participou no filme “Feliz Natal, Sr. Lawrence”, do realizador Nagisa Oshima, no qual atuou ao lado de David Bowie - e cuja música se viria a tornar a sua imagem de marca.

Nos anos seguintes prosseguiu a sua carreira elegendo o piano e o sintetizador como instrumentos preferenciais e colaborou com músicos como David Byrne, Iggy Pop, Bootsy Collins, Brian Wilson, Arto Lindsay ou Youssou N'Dour. Ao mesmo tempo envolvia-se cada vez mais no mundo do cinema. Em “All Star Video” (1984), as suas composições digitais misturavam-se com a videoarte de Nam June Paik. Ganhou um óscar pela banda sonora de “O Último Imperador” (1997), iniciando aqui uma longa e premiada parceria com o realizador Bernardo Bertolucci. 

A ópera “LIFE”, de Sakamoto, estreou-se em 1999 com direção visual de Shiro Takatani. Este ambicioso projeto multimédia contou com contribuições de mais de 100 artistas, incluindo a coreógrafa Pina Bausch, o cantor José Carreras, o Dalai Lama e o escritor Salman Rushdie.

A equipa do filme "Merry Christimas, Mr. Lawrence": o produtor Jack Thomas; o compositor Ryuichi Sakamoto; o músico David Bowie; e o realizador Nagisa Oshima, em 1983 (AP)

Quando Sakamoto chegou a Nova Iorque, onde mora desde os anos 90, experimentou quase todos os géneros musicais: pop, hip-hop, bossa nova, ambiente. Ao longo da sua carreira trabalhou com Laurie Anderson, Jacques Morelenbaum, Brian Eno, Kraftwerk, Cyndi Lauper, Caetano Veloso e tantos outros. Em 2004 interpretou ao piano dois temas do álbum “Cinema”, do português Rodrigo Leão.

Mas o seu trabalho tornou-se conhecido do grande público sobretudo através das bandas sonoras que compôs para obras de realizadores como Pedro Almodóvar (“Saltos Altos”), Oliver Stone (a série “Wild Palms”), Brian de Palma (“Os Olhos da Serpente”, entre outros),  Luca Guadagnino (“The Staggering Girl”) ou Alejandro González Iñárritu - Sakamoto esteve nomeado para um globo de ouro com a música “The Revenant: O Renascido”, feita com o seu colaborador habitual, Alva Noto. “Compor para um filme é como viajar para um lugar desconhecido”, disse uma vez. O cinema permitiu-lhe sair do seu universo. Ainda há pouco tempo foi revelado que é sua a banda sonora de “Monster”, o próximo filme do japonês Kore-eda Hirokazu (o realizador de “Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões”).

Compositor, instrumentista, produtor, Sakamoto faz muitas coisas diferentes. “Idealmente, estaria sempre a gravar, 24 horas por dia, mas não consigo.” Compôs a música para a cerimónia de abertura das Olimpíadas de Barcelona em 1992 e a sua composição "Energy Flow" (1999) foi o primeiro single instrumental a chegar a número um na história das tabelas de vendas japonesas. Explorou a música das ilhas japonesas de Okinawa, as sonoridades latinas (como o flamenco) e a música africana. Criou instalações artísticas e foi responsável pelos toques de telemóvel do modelo Nokia 8800. Antes deste "12", o seu último disco de estúdio a solo, “async”, tinha sido lançado em 2017.

Ryuichi Sakamoto vai fazer 71 anos e não sabe quantas vezes mais vai ver a lua cheia, mas continua a criar beleza. E esse é um dos motivos para o celebrarmos.

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