E se Putin estiver só na fotografia? - TVI

E se Putin estiver só na fotografia?

    Sebastião Bugalho
    Comentador
  • 21 mar 2023, 14:55
Vladimir Putin recebe Xi Jinping em Moscovo (Foto: AP)

Como Xi mantém a ambiguidade sobre a Ucrânia, mantém pontes com o Ocidente e não deixa a Rússia cair

LIMITAR O QUE NÃO TINHA LIMITES
POR SEBASTIÃO BUGALHO

A ida de Xi Jinping a Moscovo, na primeira visita de Estado do seu terceiro mandato como presidente da China, é um sucesso diplomático de Vladimir Putin mas não um triunfo político. Tem um significado, é certo, mas dificilmente uma concretização realmente favorável ao presidente russo.

A ideia de "parceria sem limites", verbalizada 20 dias antes da invasão da Ucrânia, em 2022, foi sendo sucessivamente moderada após o início da guerra. Se escutarmos ao pormenor, damos conta de como nenhum alto-dignitário chinês tornou a enunciá-la explicitamente, muito menos Xi. O presidente da República Popular da China fala hoje em "relação próxima", o seu novo ministro dos Negócios Estrangeiros chama-lhe "força motora" da ordem internacional e não mais do que isso. No último ano, o que "não tinha limites" passou a tê-los. 

Essa ambiguidade chinesa é frequentemente confundida (pelo Ocidente) com hostilidade (ao Ocidente), mas o seu posicionamento é feito de equilíbrios muito próprios que carecem de aprofundamento. A China, à semelhança dos Estados Unidos, tem como prioridade o mundo que sair da guerra na Ucrânia mais do que a Ucrânia que sobreviver a essa guerra. A disputa entre as duas superpotências tem mais que ver com o futuro (que ordem internacional?) do que com o presente (quem ganha a guerra?). E a visita de Xi Jinping compreende-se melhor através desse ângulo.

O modo como a China tem procurado instituir-se como promotora de paz no Médio Oriente e no continente europeu visa contrapor a imagem de um Ocidente que se está armar, não para a atacar, mas para a conter. O timing de Xi foi claro: a mediação do acordo Irão-Arábia Saudita na semana em que o AUKUS se reuniu a bordo do USS Missouri; a entrega do caderno de paz a Putin na semana em que a União Europeia anunciou a compra conjunta de munições. Para nós, europeus, são gestos de fugaz importância. Para o sul do globo, cuja influência não se deve menosprezar na reforma da ordem internacional, é uma demonstração de estabilidade. E a estabilidade, num mundo em guerra, é força. 

Para a China, o conflito no leste europeu teve duas consequências imediatamente contrárias aos seus interesses: unificação ocidental e perturbação dos mercados; revitalização da NATO e tensão comercial. Para um poder de vocação simultaneamente revisionista e exportadora, ambas foram péssimas notícias. Mas no longo prazo, na batalha pelo que vem a seguir, não é necessariamente assim. Se uma vitória de Putin enfraqueceria o Ocidente, uma derrota da Rússia torná-la-ia ainda mais dependente da China, o que faz de Xi o único líder que não joga diretamente o seu futuro estratégico no resultado do conflito. A China é o vértice mais protegido de um triângulo em inevitável rodopio. E é essa ambivalência que ajuda a explicar a sua ambiguidade: é do seu interesse. 

Mantê-la exige um esforço diplomático constante e um custo político ocasional, mas numa óptica global - que é a sua - não se trata de algo despido de sentido, na medida em que os seus três objetivos são compatíveis, quando não dependentes, disso mesmo. O primeiro, abertura de mercados, para recuperar crescimento no pós-pandemia. O segundo, defesa da integridade territorial na arena internacional, fomentando a sua soberania sobre Taiwan e sobre o seu mar do sul. O terceiro, autonomia estratégica na ordem internacional que sair da guerra, contestando a vocação unipolar de Washington.

Ora, dos três objetivos apenas o último é coincidente com a Rússia. O primeiro, a abertura de mercados, obriga Xi a manter pontes políticas com o Ocidente que travam o seu apoio a Vladimir Putin. É ver os números: em 2022, a relação comercial da China com a Rússia valeu 190 mil milhões de dólares, enquanto a relação comercial da China com os Estados Unidos valeu 690 mil milhões. O segundo, a defesa da integridade territorial, é um fator de distanciamento óbvio de um país que, neste momento, ocupa outro. O terceiro, a contestação à vocação unipolar norte-americana, é verdadeiramente o único que une os interesses chineses aos russos. E isto também explica melhor como – e porque – é que a China limitou uma parceria que, antes da guerra, não conhecia limites.

Garantir que o terceiro ponto não se sobrepõe aos dois primeiros é o desafio diplomático desta década, se não deste século. 

Que papel desempenhará a Europa nesse desafio? 

Sem uma política externa, nenhum. 

E sem diplomatas também não.

Continue a ler esta notícia

EM DESTAQUE