Covid-19: pandemia fez disparar relatos de fome nas linhas de apoio - TVI

Covid-19: pandemia fez disparar relatos de fome nas linhas de apoio

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  • 6 mar 2021, 10:58
O dia a dia dos profissionais do INEM em tempos de Covid-19

"Há uma situação nova de há já alguns meses, quatro a cinco meses, que é de chamadas de pessoas a relatarem que estão a passar fome e que têm vergonha de o admitir. Este sofrimento é incrível”, diz o presidente da Linha SOS Voz Amiga

A pandemia de covid-19 fez disparar os pedidos de ajuda a várias linhas de apoio, mas entre situações de ansiedade, problemas psicológicos e solidão, há um novo fenómeno a surgir: os relatos de fome.

Foi um traço comum na linha SOS Voz Amiga, na linha Conversa Amiga, da Fundação Inatel, e no Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM. Em todas houve um aumento do número de chamadas desde março de 2020, quando começou a pandemia de covid-19.

O desemprego, as dificuldades económicas e a fome são problemas já conhecidos de algumas destas linhas de crise e que tiveram maior evidência durante a crise financeira que Portugal viveu a partir de 2010 e durante a intervenção da troika, cujo programa deixou como resultado uma taxa de desemprego que superou os 15% no auge da sua aplicação.

Anos depois, e em plena crise sanitária, estas linhas voltam a locais de desabafos para muitos que face aos constrangimentos provocados pela pandemia, com a perda de emprego ou o encerramento de negócios, ligam em busca de um consolo, de um aconselhamento ou até mesmo de um encaminhamento para estruturas mais vocacionadas para o efeito.

Se no início da pandemia os alertas estavam focados em aspetos emocionais, aumentando o número de chamadas relacionadas com a depressão, ansiedade, solidão, de ideias suicidárias e de problemas famílias, à medida que a pandemia se vai mantendo começam a chegar também outras angústias relacionadas com problemas económicos.

Joaquim Paulino, presidente da Linha SOS Voz Amiga, explica à agência Lusa que os voluntários deste serviço têm recebido chamadas de pessoas em desespero. São pessoas de várias profissões e áreas de atividade, incluindo da cultura, o que não era tão usual.

Os contactos são anónimos, explica, não existindo assim a vergonha de se expor.

Há uma situação nova de há já alguns meses, quatro a cinco meses, que é de chamadas de pessoas a relatarem que estão a passar fome e que têm vergonha de o admitir. Este sofrimento é incrível”, explicou.

O desespero, adiantou, é ainda mais vincado em famílias com crianças.

Um pai ou uma mãe que não consegue dar sustento para os filhos é uma situação desesperante”, disse, adiantando que face a estas chamadas a linha escuta as angústias e indica algumas entidades que estão no terreno e que podem ajudar as famílias nestas situações.

Desde o início da pandemia, em março de 2020, a linha SOS Voz Amiga, mantida com 35 voluntários, recebeu uma média de mil chamadas por mês, mais 400 em relação a anos anteriores.

O aumento da procura levou a uma necessidade de reforço de meios, estando previsto que em abril a equipa passe a ter 50 voluntários distribuídos por turnos, num horário de atendimento que passará a ser das 15:30 às 0:30.

Relatos idênticos têm chegado à linha Conversa Amiga, que tem vindo a receber chamadas relacionadas com a carência de produtos alimentares, insuficiência económica causada pelo desemprego ou diminuição de rendimentos, a par da violência doméstica, ocasionada pelos confinamentos, e da ideação suicida.

Segundo a Fundação Inatel, a linha cresceu 39% em termos de chamadas atendidas e de fevereiro a abril esse crescimento foi de 269%.

Já no caso do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM, foi registada uma variação de 88,9 % entre 2019 e 2020 no que respeita às chamadas relacionadas com carências económicas.

Sónia Cunha, responsável do Capic explicou que as pessoas recorrem à linha 112 por saberem que têm sempre uma resposta e porque precisam de falar.

Nestas circunstâncias são encaminhadas. A primeira triagem é mesmo em relação ao potencial risco que a pessoa possa representar para ele e para os outros. Se esta em situação de crise pode colocar-se em risco ou aos outros e nós avaliamos a situação”, frisou.

Após a avaliação, se se perceber que é emergente e requer uma resposta imediata contactamos a linha de emergência social 144.

Contudo, adiantou, se a situação não for considerada emergente, a equipa pode fazer um contacto com a Segurança Social local para referenciar a situação ou sinalizar o caso para as instituições de cariz social.

Em alguns casos pode também ser feito um contacto com centro de saúde local ou com o município.

Uma outra linha de crise, a Vozes de Esperança, que existe há 10 anos, destacou a solidão como um dos principais problemas que leva as pessoas a procurar ajuda ao ponto de ter sentido necessidade de criar, durante o primeiro confinamento em 2020, um acompanhamento de proximidade complementar à linha.

Através do Porto Escuta, 20 voluntários acompanham cerca de 50 pessoas, em particular idosos, ligando-lhes diariamente e auxiliando no que for necessário.

Milhares de pessoas recorreram à Segurança Social entre março e setembro para requerer uma prestação social, havendo quase 12 mil novos beneficiários do Rendimento Social de Inserção, uma tendência “expectável” perante um possível agravamento da situação de pobreza.

De acordo com os últimos dados do Instituto de Segurança Social (ISS), entre março (quando foi decretado o estado de emergência por causa da pandemia) e setembro, 32.036 pessoas pediram à segurança social para receber o Rendimento Social de Inserção (RSI), uma prestação social para quem está em situação de pobreza extrema.

Mais de mil pessoas pediram ajudam ao INEM em 2020 face à morte de familiar

Mais de mil pessoas que viveram situações de morte inesperada ou traumática de um familiar procuraram ajuda em 2020 junto do Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) do INEM, quase o dobro do ano anterior.

Num ano marcado pela pandemia, os psicólogos do INEM receberam 20.704 chamadas relacionadas com alterações comportamentais/estado emocional, comportamentos suicidários, comportamentos homicidas, violência interpessoal, situação social e incidentes críticos.

Em 2019 foram 20.104 as chamadas para o CAPIC, tendo os psicólogos atuado quer ao nível do aconselhamento, na estabilização emocional, no aconselhamento na notificação de morte, no apoio ao início do processo de luto, na negociação da aceitação de ajuda, na negociação em suicídio e na ativação da rede social.

A procura de ajuda face a uma morte inesperada de um familiar enquadra-se na categoria incidente crítico.

Em 2020 o CAPIC recebeu 1.220 pedidos de ajuda perante a morte inesperada de um familiar quando em 2019 foram 748 as pessoas que solicitaram acompanhamento pela mesma razão.

E entre janeiro e fevereiro deste ano, quando Portugal vivia a terceira vaga da pandemia batendo todos os máximos de casos, mortes e internamentos, 244 pessoas recorreram à linha pelo mesmo motivo. Em 2020 o serviço recebeu 124 de pedidos de ajuda face à morte inesperada de um familiar.

Segundo dados da Direção-Geral da Saúde (DGS), no mês de janeiro foram registados mais de metade do total de óbitos que ocorreram no domicílio desde o início da pandemia.

Sónia Cunha, responsável do CAPIC, explicou em declarações à agência Lusa que em 2020 estas situações foram particularmente sentidas no último trimestre de 2020, período em que foi visível um aumento de situações de morte relacionadas com a covid-19, mas também com doenças crónicas.

Ao nível da alteração comportamental/estado emocional, foi também registado um aumento de chamadas relacionadas com esta ocorrência, tendo o centro recebido 4.066 pedidos de ajuda, mais 846 do que em 2019.

Dentro desta categoria, segundo os dados estatísticos do CAPIC, estão 1.331 casos de psicopatologia agudizada (mais 305), 1.291 de crise de ansiedade (mais 207), 110 de ataques de pânico (mais 15), 509 de perda de controlo emocional (mais 121) e 460 de situações de agressividade (mais 130).

Já no que respeita a comportamentos suicidários, o Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise registou também em 2020 um aumento face a 2019.

Foram registadas 748 chamadas de tentativa de suicídio (mais 148 face a 2019), 1.110 de intenção suicida (mais 335) e 1.491 de ideação suicida (mais 349 do que no ano anterior).

“Houve um aumento da ideação suicida, mas mais significativo ao nível da intenção. Portanto revela-nos que os comportamentos suicidários tiveram um aumento, mas sobretudo ao nível da intenção e para nós é um indicador importante porque não é só o pensar sobre o suicídio, mas um nível de decisão mais presente, com maior gravidade”, explicou Sónia Cunha, destacando a importância de se vigiar estes indicadores.

O Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise (CAPIC) foi criado pelo INEM em 2004, com o intuito de atender às necessidades psicossociais da população e dos profissionais. É formado por uma equipa de psicólogos clínicos com formação específica em intervenção em crise psicológica, emergências psicológicas e intervenção psicossocial em catástrofe.

Este serviço garante o posto no Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), em regime 24/24 horas, numa escala bacional, e a operacionalização das Unidades Móveis de Intervenção Psicológica de Emergência (UMIPE).

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