Os surdos não se veem como deficientes. E receiam ser extintos por falarem uma língua diferente - TVI

Os surdos não se veem como deficientes. E receiam ser extintos por falarem uma língua diferente

Capa Os surdos não se veem como deficientes. E receiam ser extintos por falarem uma língua diferente

A história da comunidade surda é feita de múltiplas perseguições e por um ensino que durante muitos anos tentou forçá-los à oralidade. Os tempos mudaram, mas a surdez ainda é encarada como uma deficiência. Para os surdos, mais do que uma limitação, a sua condição carrega uma cultura e uma língua únicas, que consideram urgente preservar

Relacionados

"No som ou no silêncio". Este é o segundo de quatro capítulos de uma grande reportagem sobre a comunidade surda em Portugal.

O simples ato de tirar um café é rico em sons. As peças de metal que se desencaixam, o manípulo a bater na madeira, a borra a cair no plástico. Pedro Mourão domina o procedimento, mas não ouve nenhum destes sons. É surdo profundo, nascido numa família onde existem outros surdos. Hoje é o presidente da Associação Portuguesa de Surdos, uma casa para todos aqueles para quem o mundo do som é um mistério.

Pedro não é pai. Mas, se esse dia chegar, não receia ter um filho que não ouve. “A surdez é natural. As pessoas gestuam de forma natural.”

“Se eu pudesse escolher ter um filho surdo, teria de estar preparado. A questão está sempre na sociedade, na escola, no facto de haver ou não educação bilingue, nas formas de acessibilidade ao longo da vida. Tinha de ser um superpai.” Para Pedro, ser-se surdo não é uma deficiência. É uma identidade e uma cultura, assentes na Língua Gestual Portuguesa (LGP). E essa mesma língua molda uma visão sobre o mundo.

Existem, em geral, duas formas de olhar para a surdez. Como deficiência ou como identidade linguística e cultural. A comunidade surda portuguesa prefere a segunda, embora alguns elementos concordem com a primeira visão – são, sobretudo, as pessoas que nasceram ouvintes mas que acabaram por perder esse sentido, por exemplo, devido a uma doença ou a um acidente de trabalho.

“Os médicos veem-me como uma pessoa doente, mas eu não sou uma pessoa doente. Sou uma pessoa feliz assim. E há muitos surdos que também o são”, diz o também coordenador pedagógico da Associação Portuguesa de Surdos.

Pedro confessa que chegou a desejar ouvir, quando era mais novo, mesmo tendo passado por uma educação bilingue. Isto é, com aprendizagem da Língua Gestual Portuguesa e do português escrito. Esta fórmula permite, mais tarde, com recurso à terapia da fala, aprender a ler os lábios dos interlocutores e ter a própria pessoa surda a vocalizar palavras.

Pedro chegou a ter um aparelho auditivo e a conseguir distinguir alguns sons que o envolviam. Mas, a determinada altura, sentiu que os ganhos não eram justificavam o esforço. “Não entendia o que eram aquelas palavras, a voz em si”. Retirou o aparelho, como muitos outros jovens que, nos dias de hoje, retiram o implante coclear quando pensam que ninguém está a ver.

“Comecei a entender que, na verdade, o problema não estava em mim. Todos os problemas que foram surgindo ao longo do meu crescimento podiam ser resolvidos tendo um intérprete de LGP. Se os professores dominassem a LGP, se os alunos ouvintes tivessem a LGP como opção... As limitações sociais não vêm do facto de sermos surdos. Vêm das barreiras de comunicação e dos preconceitos.”

Pedro cruzou-se com um livro de Oliver Sacks, com o título “Vendo Vozes”, onde o autor, neurologista, explica que, “muitas vezes, os ouvintes têm o receio de que os seus valores familiares” não passem para os filhos surdos. “Mas isso é algo que, se os pais aceitarem a criança como é, se consegue, na verdade, preservar”. E o veículo para essa passagem será a língua de gestos.

Uma história de perseguições

Pode-se fazer parte da comunidade surda sem se ser surdo? Sim. Cristina Gil é exemplo disso. Aos 17 anos, cruzou-se com a Língua Gestual Portuguesa num ecrã de televisão. E quis aprender, dominar uma nova língua. Algo que só se consegue com muita prática, tal como aprender inglês, alemão ou francês. Tornou-se intérprete mas não ficou por aí. Agora, estuda a comunidade, a sua história e peculiaridades: no mestrado dedicou-se à liderança na comunidade surda, no doutoramento debruçou-se sobre as distopias a ela associadas.

“O que torna a comunidade surda uma comunidade diferente é o facto de estar unida pela língua, pelo imaginário partilhado, e por uma vivência cultural específica que lhes é providenciada através desta língua visual.” A língua e a forma como se compreende o mundo estão intimamente ligadas, ditando a identidade de cada um. Por exemplo, no norte da Europa, há múltiplos termos para "neve", cada uma com significados próprios, enquanto em português só existe uma palavra. Esta diferença limita logo a percepção. “Com a pessoa surda, o processo é exatamente o mesmo.”

Ao longo de muitos séculos, as línguas gestuais foram perseguidas. E, com elas, toda uma comunidade, que vive com receios de extinção. Ao longo da história, foram postas em prática medidas como a esterilização de pessoas surdas, a proibição de casamentos entre a comunidade e até mesmo a morte daqueles que não ouviam. Estas práticas foram abandonadas, mas as ameaças mais recentes foram criadas pela ciência e pela possibilidade de eliminar os embriões que transportam os genes associados à surdez e pela colocação de implantes cocleares, aparelhos que transmitem diretamente ao cérebro a informação que um ouvinte recebe através do ouvido.

A primeira referência que existe a uma pessoa surda remonta ao Antigo Egito, onde os surdos eram encarados como deuses. Nessa altura, a comunicação por gestos era vista como uma forma de comunicação superior. Cenário diametralmente oposto tinha lugar na Grécia Antiga, onde o surdo era visto como um ser imperfeito e incapaz de ser ensinado. O filósofo Aristóteles defendia mesmo que, como a oralidade era a forma de aceder ao pensamento, os surdos não eram capazes de raciocinar. Havia, então, quem fosse atirado ao rio à nascença.

Na Idade Média, ser-se surdo era uma maldição: dizia a Igreja que, como não conseguiam dizer os sacramentos, não poderiam salvar a própria alma. Eram impedidos de casar e receber heranças. E é por causa disso que surgem as primeiras tentativas de ensino, entre as famílias nobres com filhos surdos, onde se procurava forçar a oralidade para garantir a transmissão da herança.

Em 1880, no Congresso de Milão, educadores ouvintes decidiram excluir as línguas gestuais da educação dos surdos. Este é considerado, pela comunidade surda, como um dos momentos mais difíceis da sua história, com impactos no desenvolvimento intelectual de milhares e milhares de pessoas.

"Os surdos-mudos falam!" Imagem de reportagem publicada no Jornal O Século, do início do século XX. Fonte: Torre do Tombo
O exame de um surdo-mudo para admissão ao curso dos liceus. Fotografia de 1928. Fonte: Torre do Tombo

O princípio da oralidade afirmou-se ao longo de praticamente todo o século XIX. Regimes como o nazi foram mais longe na repressão, ditando a morte de quem tivesse nascido surdo. Noutros países, como a Finlândia, procedeu-se à esterilização de mulheres surdas, para que não pudessem ter filhos.

Só a partir da década de 1960, é que há uma tentativa de reabilitar as línguas gestuais, resgatando-as da clandestinidade, com vários estudos subsequentes que foram confirmando as suas vantagens.

Em Portugal, as primeiras referências históricas à educação de surdos datam de 1822. Contudo, a comunicação gestual terá surgido muito antes, entre os monges silenciosos em Alcobaça, no século XIII.

O ensino estruturado da LGP dá-se apenas na década de 1980, com a criação de cursos e a implementação do modelo bilingue. Até então, o ensino era focado na utilização de técnicas que aproximassem os surdos do mundo oral. Na década de 1970, o ministério da Educação português já questionava os resultados do oralismo.

O ensino bilingue solidifica-se na década de 1990. Em 1997, a LGP – que é inspirada na sueca, por influência do modelo de Pär Aron Borg – foi reconhecida na Constituição da República Portuguesa. “O Estado tem a obrigação de proteger e valorizar a LGP como expressão cultural e instrumento de acesso à educação e à igualdade de oportunidades das pessoas surdas”. Mas ainda há muitos passos para dar no reconhecimento da comunidade.

Só há uma solução

Paulo Vaz de Carvalho nasceu ouvinte mas cresceu entre surdos. A mãe era professora no Instituto Jacob Rodrigues Pereira da Casa Pia de Lisboa, numa altura em que o ensino de surdos assentava num modelo oral. À tarde, como não tinham onde ficar depois da escola, ele e o irmão iam ter com a mãe. Os amigos de brincadeiras eram todos surdos. No recreio, o gesto dominava a comunicação.

“A LGP era proibida, não se podia usar na sala de aula. Eu fui aprendendo porque era assim que funcionava cá fora. O objetivo era que eles falassem e se tornassem ouvintes. Se compreendiam a língua ou não, pouco interessava, desde que a repetissem, como se fossem papagaios… Era esse o sucesso da educação, assente numa estrutura de uma língua que a criança não ouvia.” Paulo tornou-se professor e investigador e tem, nesta língua de gestos, um dos focos da sua pesquisa.

“Não consigo separar o que é língua, o que é cultura, o que é história, porque tudo emerge em conjunto. A própria língua reflete uma cultura mas é também por existir uma cultura surda e uma comunidade surda que emerge a língua”, resume.

Para a comunidade surda portuguesa, só há uma alternativa: a educação bilingue. Mesmo que a criança tenha um implante coclear, que lhe permitirá a compreensão do mundo do som, argumentam que ela nunca deverá ficar sem acesso à LGP. É nela que tudo deve começar. Aos gestos juntam-se as palavras escritas. E ambos devem fazer parte da mesma realidade.

É esse o caminho que Joana Cottim quer para os três filhos que nasceram ouvintes. O mais velho avisa a mãe quando ouve um dos gémeos, mais novos, a chorar. Mesmo que Joana já tenha dado por ela, com ajuda da tecnologia. “Os meus filhos fazem parte da comunidade surda.” No infantário há pouco tempo, o primogénito já ensina os gestos aos colegas.

Veja também:

Continue a ler esta notícia

Relacionados