Quando entrou no capital da TAP, David Neeleman já levava na bagagem um acordo com a Airbus para desistir de uma encomenda de 12 aeronaves A350 e comprar 53 novos aviões de vários modelos. De acordo com uma análise da Airborne Capital, a companhia aérea portuguesa terá sido lesada nas duas operações, num montante estimado de 444 milhões de dólares. E são estes indícios que levaram o Ministério Público a abrir um inquérito.
Logo após a Atlantic Gateway ter sido selecionada para a privatização e 61% da TAP, em junho de 2015, David Neeleman assinou um memorando de entendimento com a Airbus. Segundo uma análise legal da Serra Lopes, Cortes Martins & Associados (SLCM) a que o ECO teve acesso, o fabricante de aviões entregou 226,75 milhões de dólares a uma sociedade do empresário de nacionalidade americana e brasileira, que depois passou à Atlantic Gateway de Neeleman e Humberto Pedrosa. Terá sido este o dinheiro usado por esta última para a injeção de capital que garantiu a privatização.
O benefício para a Airbus terá sido o acordo celebrado primeiro com a DGN (acionista da Atlantic Gateway) de David Neeleman e depois com a própria TAP SGPS para desistir do leasing de 12 aeronaves A350 e a assinatura de um novo contrato para adquirir 53 novos aviões — 15 A320 Neo, 25 A321 Neo e 14 A330-900 Neo. Quando no ano passado tentou renegociar o contrato com a Airbus, a TAP apercebeu-se que estava a pagar mais do que a concorrência. Foi aí que pediu uma avaliação à Airborne Capital, especialista em leasing de aviões.
A consultora irlandesa estima que a TAP estará a pagar cerca de 254 milhões de dólares acima do valor de mercado no leasing dos novos aviões, segundo a análise a que o ECO teve acesso. O “prémio” que a companhia aérea está a pagar situa-se entre os 20% e os 28% face ao cobrado a outras companhias aéreas, quando comparado com os preços mais baixos, e entre 3% a 13% quando comparado com os preços mais altos. A Airborne Capital comparou os valores cobrados à TAP com os de outras dez encomendas do mesmo tipo de aviões.
A consultora contesta também os valores de mercado que foram apresentados para comparação à altura, desde logo por considerarem a entrega das aeronaves em 2015, quando as primeiras entregas ocorreram entre 2016 e 2018. De acordo com o calendário previsto, a transportadora aérea tem ainda a receber 14 aviões, seis este ano, quatro em 2024 e mais quatro em 2025.
A Airbus terá também beneficiado, e a TAP perdido, com o cancelamento dos 12 aviões A350. Segundo a Airborne, assumindo que as aeronaves seriam entregues entre 2017 e 2022, a companhia portuguesa teria pago menos 190 milhões de dólares do que o preço estimado de mercado. Já a Airbus, que teve de alterar o desenho do avião, teria sido incapaz de cumprir as datas de entrega e incorria em perdas. Com a desistência, pode vendê-los mais caros. Somando o que a transportadora portuguesa teria poupado nos A350 com o que alegadamente estará a pagar a mais pelos novos aviões, chega-se a um montante de 444 milhões.
A TAP está ainda limitada na possibilidade de renegociar o contrato com a Airbus, uma vez que contém uma disposição que a amarra à compra das 53 aeronaves. A cláusula 2 prevê o pagamento pela companhia aérea portuguesa de novation fees, na prática uma penalidade que terá de ser paga caso a TAP não receba um ou mais aviões ou resolva o respetivo contrato quanto a um ou mais aviões. O valor total desta taxa é de 226.750.002 dólares, mais dois cêntimos do que o valor entregue pela Airbus à DGN de David Neeleman e posteriormente injetado na TAP SGPS. A SLCM considera que existem fortes indícios de potencial violação do direito da concorrência.
“O que eu fiz foi ir à Airbus e dizer que não queria os A350, porque não faziam falta à TAP. Mas queria os A330 e os A321 LR (Longo Alcance) porque são mais rentáveis. A TAP pode, com os A321 LR, voar para Toronto, Boston, Nova Iorque e até Chicago, com custos mais baixos”, afirmou David Neeleman numa entrevista à Visão em janeiro de 2016. Uma estratégia que se mantém até hoje. “Eu não tirei nada da TAP. Estou a trazer este valor todo e não posso tirar um cêntimo enquanto a dívida bancária da TAP não estiver toda paga”, acrescentou.
Em outubro, o antigo acionista voltou a negar qualquer irregularidade: “Os novos aviões da TAP foram adquiridos a preço de mercado, como demonstram as várias avaliações independentes apresentadas e confirmadas pelo rigoroso e exaustivo escrutínio político e técnico, típicos e desejáveis quando se trata de um processo de privatização e de um processo de reorganização acionista com o Estado Português”, sublinha o ex-acionista.
O Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu esta semana um inquérito ao negócio de compra de aviões feito entre a Airbus e David Neeleman e que permitiu ao empresário de nacionalidade americana e brasileira controlar a TAP.