Os fungos de "The Last of Us" existem mesmo e os especialistas avisam: "Não estamos preparados para lidar com uma pandemia fúngica" - TVI

Os fungos de "The Last of Us" existem mesmo e os especialistas avisam: "Não estamos preparados para lidar com uma pandemia fúngica"

"The Last of Us"

Há um fenómeno da cultura pop que, tendo surgido há vários anos num videojogo de culto, só agora aterrou nos ecrãs de milhões de famílias. Chama-se "The Last of Us" e traz-nos um mundo devastado por uma pandemia fúngica. Mas desengane-se se acha que isto é só ficção: os fungos retratados neste universo apocalíptico existem mesmo, são estudados por académicos há muitos anos e sim, quando atacam, são capazes de criar 'zombies'

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"Os vírus podem deixar-nos doentes, mas os fungos podem alterar a nossa própria mente." A frase é tanto uma premissa como um alerta e surge logo na primeira cena da série "The Last of Us". A partir daqui o espectador é preparado para o pior, que é como quem diz, para o enredo que se segue: o mundo como um cenário apocalíptico, no qual há uma infeção fúngica que transforma os seres humanos em criaturas irreconhecíveis, zombies que atacam e contaminam outros seres humanos. A série é uma adaptação de um videojogo de culto, de 2013, e, contadas poucas semanas desde a sua estreia, não será exagerado afirmar que estamos perante um novo fenómeno da televisão: a produção da HBO bate recordes de audiência, ao mesmo tempo que arranca elogios da crítica. E se para quem jogou o videojogo a série não trará grandes novidades, o mesmo não se pode dizer para o vasto leque de espectadores que só agora chegaram a este universo de fungos e monstros que outrora foram pessoas. Um conjunto de espectadores que só agora se questionam: até que ponto esta história podia mesmo acontecer? Estes fungos existem? Em que medida a ficção se cruza com a realidade?

Vamos por partes e comecemos por regressar à cena inicial de "The Last of Us" porque está lá (quase) tudo. A ação passa-se mais ou menos assim: dois especialistas debatem, num programa de televisão, quais os riscos de o mundo enfrentar uma pandemia e que fatores se colocam como as principais ameaças para que isso possa ocorrer. Um dos peritos não tem dúvidas de que as infeções por fungos constituem o maior perigo para o Homem, muito mais do que os vírus, por conseguirem "sequestrar" o hospedeiro, controlando as suas principais funções, incluindo as cerebrais. Mas o segundo investigador contesta: "Infeções desse tipo são reais, mas não em humanos".

A verdade é mesmo esta: os fungos retratados na série, do género Cordyceps, são reais, existem em florestas de todo o planeta, mas não podem infetar humanos. Estes fungos são estudados pelo menos desde 1818, ano em que o investigador sueco E.M. Fries os batizou de Cordyceps, e podem infetar insetos. De resto, Neil Druckmann e Bruce Straley, os autores do videojogo, foram inspirados por um episódio da série documental da BBC "Planeta Terra", narrada por David Attenborough, que retrata a ação destes fungos sobre as formigas. Isto mesmo foi revelado pelo próprio Druckmann, em 2013, numa entrevista ao site especializado em notícias sobre tecnologia VentureBeat.

Esse documentário que serviu de inspiração aos autores de "The Last of Us" mostra como um fungo do género Cordyceps afeta o cérebro das formigas: o parasita controla o animal, de tal forma que o leva a mover-se de forma intencional para locais com as condições ideais ao seu desenvolvimento. É por isso que se diz que estas formigas se transformam em "formigas zombie". O animal ainda sobrevive por algum tempo, mas dele começam a surgir esporos e tentáculos, que são nada mais do que uma evidência da proliferação do fungo.

Existem mais de 400 espécies de Cordyceps no planeta que, consoante as especificidades, infetam diferentes espécies. O período de incubação da infeção pode prolongar-se no tempo e a morte do animal ocorre apenas ao fim de alguns dias, sendo que, por essa altura, o mais provável é o fungo já ter contaminado muitos outros hospedeiros.

Mas há um dado essencial: os Cordyceps precisam de determinadas condições de temperatura e de humidade para se desenvolverem. E é por isso que não conseguem infetar os seres humanos. Os especialistas em microbiologia não têm dúvidas: a nossa temperatura corporal é muito alta para a maioria dos fungos, incluindo os Cordyceps.

Mas e se os fungos evoluírem e isso mudar?

Em "The Last of Us" uma infeção fúngica afeta os seres humanos e transforma-os em zombies

"Os fungos não conseguem sobreviver às altas temperaturas e ainda não há uma razão para que evoluam nesse sentido, mas e se isso mudar? E se, por exemplo, o mundo ficar mais quente? Nesse caso, haverá uma razão para os fungos evoluírem e qualquer fungo poderá ser capaz de entrar nos nossos cérebros e assumir o controlo de milhões de pessoas." As palavras são do especialista que, na já referida primeira cena de "The Last of Us", antecipa a pandemia fúngica que viria a devastar o planeta. É esta a tese que sustenta todo o enredo: por causa das alterações climáticas, os fungos evoluíram, adaptaram-se a temperaturas mais altas e tornaram-se capazes de "sequestrar" os seres humanos.

No entanto, ainda que o aquecimento global seja amplamente reconhecido pela comunidade científica, a proposta apresentada em "The Last of Us" parece muito pouco plausível aos olhos dos especialistas. E há uma série de variáveis que a ficção deixa deliberadamente de fora para servir os propósitos da narrativa. O sistema nervoso dos seres humanos, por exemplo, é muito mais complexo do que o dos insetos, como lembra Charissa de Bekker, microbióloga da Universidade de Utrecht, nos Países Baixos, que se tem debruçado sobre o estudo dos Cordyceps e o modo como estes fungos infetam as formigas.

"O sistema nervoso dos insetos é mais simples do que o nosso, pelo que é muito mais fácil sequestrar o cérebro de um inseto do que um cérebro muito mais complexo, como o de um ser humano", sublinha a especialista em declarações à BBC.

Além disso, o sistema imunitário dos seres humanos é também muito diferente. Charissa de Bekker nota que a maioria dos Cordyceps sofreu várias evoluções, ao longo de milhares de anos, para conseguirem infetar apenas uma determinada espécie. "Para esse fungo ser capaz de passar de um inseto para nós e conseguir infetar-nos da mesma forma, há uma distância muito grande", acrescenta.

Mas se a possibilidade de os seres humanos se transformarem em zombies não passa de uma ideia reservada apenas aos domínios da ficção, a eventualidade de uma pandemia causada por algum fungo não é assim tão descabida. Neil Stone, médico e especialista em fungos no Hospital de Doenças Tropicais de Londres, é perentório: "Não estamos preparados para lidar com uma pandemia fúngica."

À esquerda Ellie (Bella Ramsey) e à direita Tess (Anna Torv) na série "The Last of Us"

Quando pensamos em fungos e na forma como estes nos podem afetar, de imediato vem-nos à cabeça algo tão banal como uma micose. Mas há milhões de espécies de fungos em todo o mundo. E apesar de apenas algumas dessas espécies conseguirem infetar-nos ao ponto de causarem doenças, a verdade é que essas doenças podem ser bem mais graves do que uma micose. "Acho que subestimamos as infeções fúngicas por nossa conta e risco", afirma Neil Stone à BBC.

Apesar de os fungos não se propagarem como os vírus ou as bactérias, através da tosse ou de espirros, o especialista alerta que a ameaça de uma pandemia fúngica é real devido "ao volume de fungos no meio ambiente", ao crescimento "das viagens internacionais" e ao facto de não haver muita investigação em termos de tratamentos.

Na série "The Last of Us" a pandemia fúngica começa através da cadeia alimentar: farinha contaminada em Jacarta, na Indonésia, e uma infeção que depressa chega aos vários cantos do mundo. David Hughes, biólogo que foi consultor da produção do videojogo, explicou em entrevista à Esquire que os Cordyceps podem mesmo espalhar-se em plantas e grãos.

"Quando as pessoas comem centeio infetado, podem ter episódios psicóticos", advertiu o investigador, sublinhando que há registos documentais que sugerem alguns casos do género ao longo da História.

Por outro lado, nesta entrevista, David Hughes explicou que o combate aos fungos coloca mais dificuldades à ciência: "Os fungos são mais parecidos com os humanos, logo o que mata os fungos mata-te a ti. Ainda não desenvolvemos um bom arsenal de tratamentos. É fácil matar uma bactéria porque ela é muito diferente e os químicos que a matam não te matam a ti. Com os fungos é como o combate ao cancro - a quimioterapia pode matar-te. Esse é o problema."

David Hughes é biólogo, investigador e explica a ciência que sustenta "The Last of Us" 

"Os fungos são a 'doença infecciosa esquecida'"

"Os fungos matam mais pessoas por ano do que a malária", acrescentou o consultor de "The Last of Us". David Hughes tem razão: os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) estimam que os fungos matem cerca de 1 milhão e 700 mil pessoas por ano, ou seja, cerca de três vezes mais do que a malária.

De resto, no final de outubro do ano passado, a OMS publicou pela primeira vez uma lista de fungos que constituem um perigo para a saúde pública. São 19 espécies que são consideradas preocupantes.

"Os fungos são a 'doença infecciosa esquecida'. Os fungos causam doenças devastadoras, mas como os negligenciámos durante tanto tempo mal conseguimos perceber o tamanho do problema", afirmou o investigador Justin Beardsley, do Instituto de Doenças Infecciosas da Universidade de Sydney, que colaborou neste estudo da OMS, na altura em que a lista foi divulgada.

Nessa lista da OMS, três espécies surgem como as mais perigosas para o ser humano: a Candida auris, o Cryptococcus neoformans e o Mucormycetes. No caso da Candida auris, trata-se de uma levedura que contamina o sangue, o sistema nervoso e os órgãos internos e a OMS estima que metade das pessoas infetadas com este fungo acabem por morrer. Já o Cryptococcus neoformans é um fungo que pode entrar no sistema nervoso e causar a inflamação do cérebro. Por último, o Mucormycetes, também conhecido como fungo negro, que além de atacar o cérebro pode afetar os olhos e causar graves lesões faciais ao ponto de deixar o rosto muito desfigurado. A infeção por Mucormycetes é rara em humanos, mas, durante a pandemia de covid-19, houve uma explosão de casos na Índia. Pensa-se que este pico de infeções na Índia se tenha registado por causa da combinação de dois fatores: o sistema imunitário debilitado devido à covid-19 e os altos níveis de diabetes da população do país.

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