Crianças, adolescentes, pais, professores, pediatras: vamos lá discutir o fim (ou não) dos TPC - TVI

Crianças, adolescentes, pais, professores, pediatras: vamos lá discutir o fim (ou não) dos TPC

Escola (EPA)

O Presidente da República da Irlanda defendeu recentemente o fim dos trabalhos de casa (TPC) no país. Acredita que as crianças precisam de mais tempo com a família. Há décadas que este tema causa divisão em Portugal - e não só. Mas nem somos dos países onde os alunos passam mais tempo a trabalhar em casa

“Pessoalmente, penso que o tempo na escola é uma experiência educacional e deve ficar concluída na escola, enquanto em casa se deveria usar o tempo para outras atividades criativas”, defendeu recentemente Michael D. Higgins, Presidente da República da Irlanda. Em Portugal, segundo os últimos dados disponíveis do relatório PISA da OCDE, os alunos perdem em média quatro horas por semana em TPC.

Os mesmos dados da OCDE revelam, por exemplo, que a Finlândia era dos países onde as crianças dedicavam menos tempo semanal a estas tarefas: perto de três horas - sendo que atualmente, neste país, praticamente não existem nem trabalhos de casa nem exames. Olhando para a Europa, Polónia e Irlanda estão na ponta oposta, com sete horas semanais, e Espanha, com seis. Mas há países onde as crianças passam ainda mais horas em tarefas escolares. Na China ultrapassam as 13 horas, na Rússia o valor estará perto das dez horas e em Singapura acima das nove.

Recentemente, Mariana Carvalho, presidente da Confap (Confederação Nacional das Associações de Pais), resolveu por iniciativa própria esquematizar as horas ideais para uma vida de qualidade: “Supostamente trabalhamos oito horas, dormimos oito horas e teríamos oito horas de lazer. Mas esta não é a realidade”. Ou seja, “cada vez mais existe uma dificuldade de conciliação da vida profissional com a vida familiar” e este “é um problema da sociedade atual” - as horas que se perdem no trabalho, nos percursos para o trabalho, na vida doméstica e de gestão da casa. “Acabamos por perceber que o tempo de qualidade, de foco com os nossos filhos, acaba por ser muito reduzido”, conclui Mariana Carvalho.

Num cenário ideal, provavelmente não haveria os chamados TPC, mas a presidente da Confap admite que “em determinadas matérias, em determinadas situações e no caso das crianças que precisam de estudar um bocadinho mais” os trabalhos possam existir. Todavia, “os nossos filhos, os nossos alunos, do ponto de vista de currículo e de horário, já se encontram muitas horas dentro das salas de aula”, lembra.

Da experiência que tem, também reconhece que agora há uma maior preocupação das escolas em relação ao tema e uma maior flexibilidade. Sem desresponsabilizar nenhuma das partes, garante que “é importante que os pais estejam lá e acompanhem um bocadinho as matérias, mas é preciso sensibilidade no número de trabalhos e ao tempo que os miúdos demoram agarrados à escola mas em casa”.

E assume que cada vez mais famílias, por falta de opção e com vidas profissionais exigentes, “recorrem cada vez mais ao serviço de privados, sejam ATL ou Centros de Apoio ao Estudo”. Um negócio que tem estado a florescer.

Os argumentos contra os TPC

“Totalmente contra”, é assim que o pediatra Mário Cordeiro responde à pergunta se concorda com a existência dos trabalhos de casa. “Eu sou totalmente contra os chamados TPC. Os trabalhos de casa vistos naquela perspetiva reducionista habitual. Trabalhos de casa, mais fichas de matemática, mais textos e mais coisas”, afirma de forma perentória. 

E o primeiro motivo é simples: “Os alunos já trabalham muito na escola. São muitas horas letivas. Às vezes, há a ideia de que eles não fazem nada, mas fazem muito”. Ou seja, “já passam tempo suficiente na escola para apreenderem a matéria”. “Se não a apreendem, se ela não lhes é ensinada”, para o pediatra a questão não se resolve com “mais trabalhos de casa” - e diz mesmo que “se calhar é preciso uma mudança que nos levava a outra conversa muito grande sobre o modelo de ensino e aprendizagem”.

Mas há mais razões para a sua posição - como por exemplo o facto de ser pelos 25 anos “mais ao menos que neurologicamente, isso já se sabe, a inteligência emocional está totalmente desenvolvida”. Ela vai melhorando à medida que se cresce. E, por isso, “a capacidade de receber informação e a arrumar imediatamente e no sítio certo, sem misturar, sem atirar tudo para dentro da gaveta, ainda é muito reduzida”, principalmente nos mais pequenos. “Por exemplo, por isso é que os bebés e as crianças pequenas têm de dormir a sesta, que é para arrumar aquilo que aprenderam durante a manhã.” 

De alguma forma, “aquilo que se aprende não se pode logo ir trabalhar e responder, é preciso um tempo - uso até a expressão ‘dormir sobre o assunto’”.  E não tem dúvidas: “Um trabalho de casa feito às sete da tarde, oito ou nove da noite é totalmente inútil em termos de aprendizagem neurológica. Não se ganha nada com isso”.

A neurologia diz também que ao final do dia “é preciso o preparar, o encaminhar para o sono”, seja sem ecrãs, seja com atividades mais calmas. E os trabalhos de casa não ajudam neste caminho. “Os alunos estão cansados, não conseguem apreender, estão fartos. Os pais obrigam a fazer os TPC e gera-se um ambiente mau, de pais a berrar com filhos e filhos a berrar com pais - o que até vem prejudicar as escassas horas que os pais têm para estar com os filhos. Já são tão poucos os minutos que estragá-los com lutas dessas é uma pena.”

Mário Cordeiro tem mesmo dúvidas de que os professores consigam corrigir os trabalhos: “São tantos, são 25 ou 30 todos os dias, que é impossível um professor analisar convenientemente”. O especialista apela à “criatividade” dos professores nas tarefas que enviam para casa e que, pontualmente, tentem que os alunos levem para a escola e partilhem com os colegas o que fizeram nos seus tempos livre e em família. Isso também poderia “ser avaliado” sem que tudo se limite “aos testes e exames”.

Os argumentos de quem está a favor dos TPC

É provavelmente entre os professores que encontramos os maiores defensores dos trabalhos de casa e há motivos diversos. Mas, em comum, partilham da opinião de que não devem ser exagerados, “para não se tornarem contraproducentes”.

“No agrupamento de escolas onde trabalho, há o cuidado de marcar trabalhos de casa duas vezes por semana nos dias em que têm menos aulas e eu acho que é muito importante que existam”, considera Helena Marvão, professora de Educação Musical no 2º ciclo, no Porto.

E porque é importante? “Hoje em dia, as crianças têm um grau de atenção muito reduzido. As aulas continuam a ser enormes. Eles não conseguem estar atentos nem metade da aula, quanto mais a aula toda. Os trabalhos de casa são uma consolidação dos conhecimentos. Apesar de eles ouvirem parte na aula, o facto de terem de o fazer de novo em casa, ou que seja dois dias depois, obriga-os a ler outra vez a matéria e reforçar aquilo que ouviram ou até aquilo que não ouviram.”

Apesar de muitas escolas terem salas de estudo, o estudar sozinho tem outros benefícios: “É importante o momento de alguma intimidade. Estarem com eles mesmos a refletir naquilo que estão a fazer e é esse o objetivo dos TPC. É estarem em casa, no canto deles, concentrados”.

Para Helena Marvão, “o que está errado é a quantidade de atividades que eles têm fora da escola”. “Se não tivessem, eles conseguiam ter tempo em casa para ter esse momento de tranquilidade.” Mas Helena Marvão admite que “há professores que exageram” e não concorda “com excessos”. “Muitos trabalhos de casa, todos os dias, não”, conclui.

Há mais de 20 anos ligada ao ensino de Português, Manuela Albuquerque é docente numa escola em Agualva-Cacém. Desde que não sejam “de uma forma repetitiva e exaustiva”, concorda com os trabalhos de casa. “Servem para avaliar vários aspetos: se o aluno apreendeu as competências, os conhecimentos, aquelas matérias que foram lecionadas”, até porque se pode saber na teoria “mas pode não saber-se aplicar”. E tem ainda uma vertente “de diagnóstico”: “Tem uma importância de avaliação formadora. O próprio aluno tem de ter consciência daquilo que sabe e daquilo que não sabe. Portanto, é para aumentar a autoconsciência. A partir dali, detetando as suas dificuldades, com a ajuda do professor, ele pode superar”, defende.

O tempo que passam junto da televisão ou com os telemóveis na mão pode ser perigoso: “Chegam a casa e esquecem a escola, ligam-se ao telemóvel, à televisão. De alguma forma tornam-se seres pouco pensantes, não são críticos, não conhecem a realidade, não leem”. E por isso acredita que “os trabalhos de casa são um ponto de ligação entre a escola e a casa”.

"É uma coisa horrorosa, é um castigo"

Adelino Calado foi professor de Educação Física durante décadas e dirigiu o Agrupamento de Escolas de Carcavelos. Aqui implementou um sistema de não haver trabalhos de casa.

"A forma como é encarado o trabalho para casa, como ele é lançado desde o princípio da escolaridade, é uma coisa horrorosa, é um castigo", diz. "Normalmente, o que se ouve dizer aos professores da primária é 'portas-te mal e levas x cópias para casa'" e, desta forma, "associa-se a uma coisa que é fundamental para toda a vida, que é estudar, a um castigo".

Na verdade, apesar de ter acabado com os trabalhos de casa, os alunos continuaram a trabalhar em casa - e deu um exemplo de quando o 1º ciclo trabalha as operações matemáticas. "Em vez de se mandar contas intermináveis", porque não perguntar "os teus pais vão às compras?, tens muitas coisas na dispensa?, quantos pacotes?, quanto pesa cada pacote?". Isto permitia atribuir tarefas, promover algumas tarefas "que não eram associadas a trabalhos de casa".

E, ao mesmo tempo, "faz com a família seja também envolvida naquilo que são as aprendizagens dos jovens". Admite que a ideia demorou muito tempo a implementar mas acredita que "é possível e é desejável dar significado àquilo que eles aprendem - e deixa de ser o TPC clássico, que é uma chatice".

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